Na nossa vida conhecemos pessoas especiais. Muitas vezes são pessoas que amamos, como os nossos pais, companheiros, irmãos ou filhos. Outras vezes são pessoas com quem não temos laços de parentesco, mas que provocam uma reação emocional profunda. São pessoas com um amor intenso pela humanidade, que irradiam esse amor nas palavras e gestos. Foi isso que senti quando conheci o Dr. Mukwege
POR CLÁUDIA PEDRA

Fui convidada pela AGEAS (muito obrigada Katrien e Steven!) para entrevistar o Dr. Denis Mukwege, na sua passagem por Portugal. Reagi em descrença pela honra maior de conhecer um homem que traz esperança à humanidade. De poder conversar com ele. Como ativista de direitos humanos, é um homem que muito me inspirou. Aqueles heróis pessoais que sonhamos conhecer um dia, e pensamos que jamais iremos ter essa oportunidade.

Enquanto preparava a entrevista, tive ocasião de ler ainda mais sobre a sua complexa vida. Como cresceu no Congo, durante conflitos armados constantes. Como percebeu desde cedo, como a desigualdade minava o seu país, ou como a ganância pelos recursos naturais motivava homens armados a fazer coisas indescritíveis. Como morriam pessoas sem o mais básico dos cuidados. O seu contexto moldou-o. Cresceu na adversidade e foi isso que o fez querer ser médico; para poder curar com as suas mãos o que a maldade humana tinha ferido. Li muitas coisas sobre ele, desde a sua infância à idade adulta, e intui que o tempo da entrevista seria claramente insuficiente para explorar uma vida de dedicação à causa humana. Condensar em 60 minutos quase setenta anos de vida extraordinária, é um feito muito difícil.

Quando as primeiras respostas surgiram, a audiência ficou silenciosa. Não é fácil ouvi-lo sem ter essa reação. As lágrimas também surgiram em alguns rostos. Descreveu ao pormenor o que sentiu quando viu a primeira vítima de violência sexual e o que testemunhou. Viu o inimaginável. Não queria acreditar que outro ser humano fosse capaz de tal horror, sem estar demente. Ao longo do seu tempo no hospital, nos três meses seguintes, mais 45 mulheres chegaram na mesma situação. Percebeu que era um padrão e não uma situação excecional. A missão da sua vida tornou-se assim clara. Não poderia deixar impune os violadores, nem deixar de socorrer as suas vítimas.

Durante décadas como médico, passou por experiências que muitas pessoas não aguentariam. Desde tratar milhares de mulheres com feridas horrendas de violações e violência sexual, cuja descrição pormenorizada agoniza até o mais insensível dos seres, até chegar ao hospital e ver que homens armados tinham matado os seus colegas e até pacientes na cama de hospital onde padeciam. Como qualquer ser sensível sentiu-se assoberbado pela violência. Foi difícil encontrar a motivação para continuar.  Mas continuou. Trabalhou com as mulheres vítimas de violência sexual de forma holística, tratou-as como cirurgião, deu-lhes acesso a apoio psicológico, deu-lhes apoio legal. Será exatamente aí onde encontrou mais oposição dos torcionários. Afinal empoderar mulheres para poderem ver o seu estatuto de vítima conseguido, e receber a reparação a que tinham direito, expunha a maldade dos homens que as tinham posto nesta situação, e expunha tragédias maiores, como o facto de a violação ser usada como uma arma de guerra. Foi na sua ação política, como ativista de direitos humanos, que os agressores viram a ameaça maior; mais do que no homem que reconstrói, como médico, mulheres estraçalhadas pela violência. Por isso, um dia a violência chegou-lhe à porta de casa, com homens armados a ameaçarem a sua família, e com a morte de um funcionário dedicado. Sentiu-se na obrigação de proteger a sua família e de sair do país. Foi o que fez. O Congo perdeu o médico, ativista dos direitos das mulheres.

Mas o hospital Panzi, que ajudou a fundar, não terminaria assim. As muitas mulheres que ajudou a salvar, não só com a reconstrução do corpo, mas também da mente, não estavam dispostas a desistir. Muitas em pobreza extrema, sem dinheiro extra para poderem doar, juntaram-se para poder pagar a sua viagem e trazer de volta o homem que lhes tinha ajudado a regressar à vida. Vendo o esforço dessas mulheres, sentiu o imperativo moral de voltar. A responsabilidade de voltar. E assim o fez, apesar das difíceis circunstâncias.

Tentou elucidar o público incauto para a gravidade do que se passava no seu país e na sua região do mundo. Pouco a pouco, o mundo começou a percebê-lo. Vieram os prémios, sendo o mais notório o Prémio Nobel da Paz, em 2018. Usou toda essa exposição para falar da violência sexual, da violação como arma de guerra, para descrever a enormidade da desumanidade a que são sujeitas as mulheres que trata. Encetou programas comunitários e promoveu a educação dos homens, para que mais nenhuma mulher seja sujeita ao que diariamente trata no seu hospital (*).

Sobre o Congo, sente que a o mundo não compreende a realidade do que lá se passa. Que o conflito não é algo do passado; está bem presente. Com cerca de sete milhões de pessoas deslocadas internamente, é fácil de compreender que a vida é muitas vezes insustentável em certas regiões do seu país, e nada mais resta do que fugir. Infelizmente, a violência sexual grassa, de tal forma, que nem nos campos de deslocados cessa. Faz por isso duras críticas à comunidade internacional por deixar que essa seja a realidade de milhões de pessoas, negligenciadas nas paragonas dos jornais do mundo. Afinal, se os governos investissem mais na educação de direitos humanos e na prevenção da violência, não seriam precisos médicos especializados na reparação da violência sexual.

Ao longo da entrevista oscilámos entre a vida pessoal e profissional do Dr. Mukwege. Como qualquer pessoa motivada pelas causas, é muitas vezes indissociável. Não existe o médico sem o feminista, defensor acérrimo dos direitos humanos das mulheres. Não existe o feminista sem o médico que reconstrói corpos. Um não existe sem o outro.

Apesar de uma vida de dedicação aos direitos das mulheres, recebeu ele próprio algumas acusações de estar dedicado a uma causa que não lhe deveria pertencer. De, como homem, ser a personificação do agressor. Porque para muitas mulheres é a realidade que sempre conheceram. O Dr. Mukwege responde a isso explicando que a defesa dos direitos das mulheres é um imperativo de defesa da humanidade. Não compreender isso é não compreender o papel que as mulheres têm neste mundo. E nem todos os homens são violadores, embora em certos lugares o possa parecer. Sente por isso que os homens têm uma obrigação maior, e é a eles que apela, pedindo que se juntem a ele nesta causa.

Até a violência sexual deixar de ser uma arma, há ainda muito a fazer.  Pessoas como Dr. Mukwege e as pessoas da sua equipa fazem um trabalho admirável. Tão especial que é difícil de explicar em alguns parágrafos. Acima de tudo é impossível de condensar numa conversa de 60 minutos.

No meio das descrições gráficas da sua experiência como médico, fiz-lhe uma pergunta sobre a motivação e a esperança. Depois de testemunhar o que pior pode fazer um ser humano, como nos levantamos todos os dias da cama, dispostos a enfrentar mais um dia? O sorriso aflorou-lhe os lábios enquanto falava das mulheres extraordinárias que o rodeavam. Mulheres que não se focalizavam na vingança, mas em proteger as suas comunidades, em prevenir que o horror se repetisse. Essas mulheres, vão tentando mudar mentalidades, uma pessoa de cada vez. Essas mulheres motivam e inspiram. E a sua ação funciona.

Como ativista de direitos humanos eu própria, já estive do outro lado da pergunta da motivação. Perguntaram-me múltiplas vezes, o que me faz continuar apesar da maldade, apesar do horror que já testemunhei, apesar das ameaças. E é exatamente o mesmo. O facto de haver pessoas excecionais que todos os dias desenham soluções. Umas pequenas, outras grandes, mudando o mundo no sentido certo, uma ação de cada vez. Ao escrever isto também o sorriso aflora aos meus lábios. A esperança reside aí. Vemo-la diariamente na Stone Soup.

O tempo da entrevista chegou ao fim, e senti que poderia continuar mais algumas horas ou até dias. Havia tanto para conversar. Tanto para aprender. De coração cheio, levantei-me das cadeiras onde nos tínhamos afundado, e pousei o microfone. Senti-me tentada a abraçá-lo, como se nos conhecêssemos desde sempre, para lhe agradecer o seu trabalho, mas estendi-lhe a mão. Senti a sua mão reparadora e olhei-o nos olhos, observando o sorriso largo e sincero. Percebi porque aquelas mulheres sem meios, não tinham desistido até o trazer de volta. Afinal nem sempre temos a oportunidade de estar na presença de alguém assim.

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Managing Partner da Stone Soup Consulting e Directora da Associação de Estudos Estratégicos e Internacionais (NSIS - Network of Strategic and International Studies)