POR GABRIELA COSTA
O “imposto Coca-Cola”, assim apelidado pela indústria do consumo, vai mesmo entrar em vigor com o novo Orçamento do Estado (OE2017). Abrangendo refrigerantes e bebidas com baixo teor alcoólico (superior a 0,5% de volume e inferior — ou igual — a 1,2%), o novo imposto sobre bebidas adicionadas de açúcar “ou outros edulcorantes” varia aproximadamente entre os oito e os 16 cêntimos por litro – 8,22 euros e 16,46 euros por cada 100 litros -, em função do grau de açúcar presente: para um teor de açúcar inferior a 80 gramas por litro, o imposto será de 8,22 euros por hectolitro; para uma quantidade de açúcar igual ou superior a 80 gramas por litro, a taxa dispara para 16,46 euros.
De sublinhar que a receita obtida com o imposto “é consignada à sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde”. De acordo com a proposta do OE2017, disponível desde o dia 14 de Outubro, “os encargos de liquidação e cobrança incorridos pela Autoridade Tributária são compensados através da retenção de uma percentagem de 3% do produto do imposto, a qual constitui receita própria”.
Excluídas desta adição das bebidas açucaradas ao Imposto sobre o Álcool e Bebidas Alcoólicas (IABA) ficam as bebidas à base de leite, soja ou arroz, as de cereais, amêndoa, caju e avelã, os sumos e néctares de frutos “e de algas ou produtos hortícolas” e as bebidas consideradas alimentos para as necessidades dietéticas especiais, ou suplementos dietéticos. Quando estes produtos são usados como matéria-prima para outros produtos ficam também isentos do IABA.
O novo imposto inclui ainda mais um agravamento sobre a cerveja e as bebidas espirituosas, na ordem dos 3%. No caso das cervejas, as actuais taxas de 7,98 euros (entre 0,5 % e 1,2 % de volume de álcool adquirido) a 28,06 euros (superior a 1,2 % de volume de álcool e superior a 15° Plato, a concentração do mosto) por hectolitro aumentam no próximo ano para, respectivamente, 8,22 euros e 28,90 euros. Já nas bebidas espirituosas, a actual taxa do imposto aplicável, 1.327,94 euros por hectolitro, passa para 1.367,78 euros.
Ao contrário do que chegou a ser anunciado, o imposto sobre o vinho não vai sofrer alterações, continuando sem qualquer tributação ao nível do IABA. Em causa está a sua relevância para a agricultura portuguesa, paralelamente ao peso muito importante que tem nas exportações, como disse recentemente à imprensa o ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, Capoulas Santos.
Face às medidas constantes na versão preliminar do Orçamento do Estado para 2017, o ‘fat tax’ fica ainda, na larga maioria da sua aplicação sobre os alimentos com excesso de açúcar, sal e gorduras saturadas, na prateleira. O imposto esteve em cima da mesa das negociações do Governo, que pretendia criar “impostos especiais sobre o consumo que depende de escolhas individuais”, nas palavras de António Costa (proferidas numa entrevista recente ao Público), mas a intenção de, a par com produtos de luxo e tabaco, taxar álcool e alimentos nocivos à saúde, como refrigerantes, fast-food e snacks, ficou-se pelo ‘imposto Coca-Cola’ e pelo agravamento do preço de algumas bebidas alcoólicas, como a cerveja, o gin ou a vodka.
Já em Setembro o Governo recuava em relação à intenção, anunciada em Maio, de introduzir uma taxa sobre estes produtos, ao revelar que iria criar um grupo de trabalho com representantes do sector alimentar e dos consumidores para aplicação de um imposto indirecto sobre os mesmos.
[quote_center]A receita obtida com o novo “imposto Coca-Cola” é consignada à sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde[/quote_center]
Para o comissário europeu da Saúde e Segurança Alimentar, açúcar, sal e gorduras não são mais do que “produtos de risco” cuja taxação pode e deve ser aprovada, em benefício da saúde e do orçamento de um país. Numa visita realizada a 14 de Outubro a Oeiras, na inauguração de um laboratório de referência do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, Vytenis Andriukaitis afirmou ser “um grande fã de promover todas as medidas, especialmente impostos, para os produtos de factor de risco, como açúcar, sal, gorduras saturadas, tabaco e álcool, claro”. À agência Lusa o comissário europeu defendeu que “esta é a direcção certa para levar a sociedade a perceber que a aplicação de medidas como a taxa sobre o açúcar significa que se quer que as pessoas fiquem mais saudáveis”.
Na sua opinião, lado a lado com o combate ao abuso de álcool e de tabaco, “que são assassinos”, há que prevenir doenças como a obesidade e a diabetes, que atingem hoje “muitas pessoas”. E isso faz-se recorrendo a “todos os instrumentos de taxação”, a forma mais eficaz para “manter a sociedade mais saudável e também um orçamento mais saudável, porque há a possibilidade de angariar mais dinheiro para tratar as pessoas”, acredita.
E, a avaliar pelas recomendações de um relatório da Comissão Europeia sobre cuidados de saúde e sustentabilidade das contas públicas, divulgado a 7 de Outubro, Andriukaitis tem razão.
Intitulado Joint Report on Health Care and Long-term Care Systems and Fiscal Sustainability, o documento elaborado pela Direcção-Geral para os Assuntos Económicos e Financeiros da CE, em parceria com o grupo da Comissão de Política Económica que estuda o envelhecimento da população europeia, sugere o aumento de impostos sobre o consumo de álcool, tabaco e bebidas açucaradas em Portugal para ajudar a travar o preocupante crescimento do número de portugueses com problemas de saúde, previsto para as próximas décadas.
Trata-se de 1,1 milhões de pessoas dependentes em 2040, mais 200 mil que o total da população nacional que actualmente tem “fortes limitações no dia-a-dia por problemas de saúde”. E uma assustadora parcela de 13,4% dos portugueses que, em 2060, estarão dependentes de outros, naquela que será a quarta taxa mais elevada da União Europeia, estima a CE.
As conclusões do estudo revelam mesmo que nas próximas décadas a população doente e dependente, em Portugal, vai crescer quase 60%. Os efeitos do envelhecimento da população nas contas do Estado serão proporcionalmente agravados: o País deverá um dos mais fustigados por um descontrolo nas despesas públicas com saúde, que, em 2060, atingirão mais 2,5 pontos percentuais do PIB, contra mais 0,9%, na média europeia.
[quote_center]O imposto sobre o açúcar, sal e gorduras deve ser aprovado em benefício da saúde e do orçamento – Comissário Europeu da Saúde e Segurança Alimentar[/quote_center]
Perante este dados, o relatório alerta para a necessidade de Portugal prosseguir “as reformas efectuadas com sucesso, nos últimos anos”, como a proibição de fumar em espaços públicos fechados, medida que representou um avanço significativo na promoção da saúde e do envelhecimento saudável. E enuncia os enormes desafios que temos pela frente, nesta matéria, por exemplo ao nível do alargamento dos cuidados primários nos centros de saúde, diminuindo o recurso aos hospitais, ou da melhoria da qualidade e resposta dos serviços de ambos os estabelecimentos; mas também ao nível da melhoria da segurança nas estradas; e do desenvolvimento de acções que previnam doenças, como mais rastreios ou a promoção de estilos de vida saudáveis.
Sobre este último tópico, a Comissão Europeia diz concretamente que as autoridades portuguesas “podem considerar medidas complementares como o aumento dos impostos especiais de consumo sobre o tabaco, álcool e bebidas açucaradas”.
Política fiscal emagrece números da obesidade
Também a Organização Mundial de Saúde (OMS) defende a tributação de alimentos prejudiciais à saúde, não propriamente a pensar na saúde fiscal dos Estados, mas interessada na redução do consumo deste tipo de alimentos e do seu impacto na saúde, concretamente no aumento da obesidade, da diabetes e das cáries dentárias.
Afinal, perante os números assustadores da obesidade a nível global, divulgados este mês através do relatório “Políticas fiscais para a Dieta e a Prevenção de Doenças Não Transmissíveis“, todas as estratégias parecem servir para promover estilos de vida mais saudáveis: um em cada três adultos tem excesso de peso, e esta é uma doença cuja prevalência mais do que duplicou desde 1980.
Ainda não foi desta que se introduziu em Portugal um ‘fat tax’ alargado aos inúmeros produtos embalados, pré-cozinhados, de fast food, etc. com excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas, mas o novo imposto sobre as bebidas açucaradas vem de encontro ao apelo feito exactamente nesse sentido, e com vista à redução do consumo de açúcar, pela agência das Nações Unidas para a saúde.
Num comunicado divulgado a 11 de Outubro, que cita o referido relatório, a organização calcula que uma política fiscal que aumente, pelo menos em 20%, o preço a retalho das bebidas açucaradas, resultará numa redução proporcional do seu consumo. Sucede que, como explica a OMS, esta redução significa uma menor ingestão de “açúcares livres” e de calorias, logo uma melhoria nutricional, e logo uma consequente diminuição do número de pessoas a sofrer de excesso de peso, obesidade, diabetes e cáries dentárias.
[pull_quote_left]Em 2060, 13,4% dos portugueses estarão dependentes de outros por problemas de saúde, a quarta maior taxa da UE[/pull_quote_left]
O consumo de açúcares livres [monossacarídeos (como a glucose e a frutose) e dissacarídeos (como a sacarose ou o açúcar de mesa)] incluídos em produtos como bebidas açucaradas, “é um factor importante no aumento global da obesidade e da diabetes”, pelo que “se os governos taxarem produtos como as bebidas açucaradas, podem reduzir o sofrimento e salvar vidas. Podem também reduzir os custos da saúde e aumentar receitas para investir nos serviços de saúde”, defende Douglas Bettcher, director do departamento de Prevenção de Doenças Não-transmissíveis da OMS, citado no comunicado.
De referir que “nutricionalmente, as pessoas não precisam de qualquer açúcar na sua dieta. A OMS recomenda que, se as pessoas consumirem açúcares livres, mantenham a sua ingestão abaixo de 10% de todas as suas necessidades energéticas, reduzindo-a abaixo dos 5% para benefícios sanitários adicionais. Isto equivale a menos de uma dose (250 ml) diária de uma das bebidas açucaradas normalmente consumidas”, como acrescenta Francesco Branca, director do departamento de Nutrição para a Saúde e o Desenvolvimento da organização.
É, pois, necessário insistir nos números: em 2014 mais de um em cada três adultos em todo o mundo tinha excesso de peso. Ou seja, 39% da população tinha excesso de peso. A prevalência global da obesidade, com 11% dos homens e 15% das mulheres actualmente considerados obesos, mais do que duplicou desde 1980. E, mais grave: 42 milhões de crianças com menos de cinco anos têm excesso de peso ou obesidade, um aumento de cerca de 11 milhões nos últimos 15 anos.
Também o número de pessoas a viver com diabetes tem vindo a aumentar – de 108 milhões em 1980 para 422 milhões em 2014. A doença terá sido directamente responsável por 1,5 milhões de mortes só em 2012, divulga a OMS.
Além de propor a tributação dos alimentos e bebidas para os quais existem alternativas mais saudáveis, o relatório propõe a atribuição de subsídios aos legumes e frutas frescas, os quais permitam reduzir os preços em 10 a 30% com vista ao aumento do seu consumo.
[quote_center]Mais de um em cada três adultos em todo o mundo tem excesso de peso[/quote_center]
A OMS destaca ainda o exemplo de dois países nesta matéria: a Hungria, que aplicou um imposto sobre produtos com elevados níveis de açúcar, sal ou cafeína; e o México, que impôs um imposto sobre o consumo de bebidas não alcoólicas com açúcar adicionado, tal como a nova taxa que fará com que os consumidores portugueses despendam, a partir de 2017, mais cinco cêntimos numa lata de refrigerante.
Produzir mais com menos, distribuir mais por mais
“O clima está a mudar: a comida e a agricultura também devem mudar”. Foi com este lema que se celebrou, um pouco por todo o mundo, a 16 de Outubro, o Dia Mundial da Alimentação. A data assinala o aniversário de fundação da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), em 1945. Mais de 150 países do mundo organizam diversos eventos e a iniciativa tornou-se numa das mais destacadas do calendário da ONU.
Este ano o tema escolhido coloca em destaque uma nova visão sobre a alimentação, como forma de preservar o meio ambiente, contrariando os crescentes efeitos das alterações climáticas. De sublinhar que são os pequenos agricultores familiares – que produzem a maior parte dos alimentos que consumimos – aqueles que estão entre os mais afectados pelas altas temperaturas, as secas e os desastres decorrentes de uma meteorologia adversa relacionada com as mudanças climáticas.
As estimativas indicam que o número de habitantes do planeta vai superar os nove mil milhões de pessoas em 2050. Perante este crescimento, a FAO prevê que a produção mundial de alimentos terá de aumentar em 60%, para poder atender às novas necessidades alimentares.
Numa mensagem que assinala o Dia Mundial da Alimentação, o Papa Francisco recorda os “800 milhões de pessoas que ainda passam fome” actualmente. O texto, endereçado à FAO, questiona o actual modelo de desenvolvimento socioeconómico global: “já não basta impressionarmo-nos e comovermo-nos diante de quem, em qualquer latitude, pede o pão de cada dia”, diz o Papa. “É necessário decidir e actuar. Muitas vezes, também enquanto Igreja Católica, recordamos que os níveis de produção mundial são suficientes para garantir a alimentação de todos, com a condição de que haja uma justa distribuição”, apela.
Alertando também para as consequências das alterações climáticas, Francisco pede que o Acordo de Paris “não fique somente nas palavras, mas se transforme em corajosas decisões concretas”. Nomeadamente em relação aos “migrantes climáticos” que engrossam “as filas desta caravana dos últimos, dos excluídos, daqueles a quem é negado um papel na grande família humana”.
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Convidando o mundo a prestar atenção à sabedoria dos produtores rurais, o Papa avisa ainda que “está a crescer o número dos que pensam que são omnipotentes e podem ignorar o ciclo das estações ou modificar indevidamente as diferentes espécies de animais e plantas, provocando a perda desta variedade que tem – e há de ter – uma função”. Mas, na realidade, em causa está “um modelo de produção que beneficia somente pequenos grupos e uma pequena porção da população mundial”. É preciso mudar de rumo, para que “o desenvolvimento não seja somente uma prerrogativa de poucos nem os bens da criação sejam património dos poderosos”, denuncia.
Já o secretário-geral da ONU destaca que os mais vulneráveis às mudanças climáticas são os que vivem na miséria. Na sua mensagem para assinalar este dia Mundial, Ban Ki-moon recorda que cerca de 70% dos mais pobres dependem da agricultura de subsistência, pesca ou pastoreio para obter renda ou comida. E quase 800 milhões de pessoas passam fome no mundo, como divulga a FAO.
[quote_center]A produção mundial de alimentos vai ter que aumentar em 60% para responder às necessidades alimentares dos nove mil milhões de habitantes, em 2050[/quote_center]
Para o responsável das Nações Unidas, a produção mundial de alimentos está ameaçada pelas mudanças climáticas, factor agravado pelo crescimento da população, que obrigará a “satisfazer uma exigência crescente por alimentos”. No entanto, “em todo o mundo, temperaturas que quebram recordes de calor, níveis crescentes dos oceanos e secas e cheias mais frequentes e severas causadas pelas mudanças climáticas já estão a afectar ecossistemas, a agricultura e a capacidade da sociedade de produzir os alimentos de que precisamos”, acusa, preocupado.
Apelando aos Estados-membros para que incluam a adaptação da agricultura nos seus planos de preparação para as transformações do clima, desenvolvendo sistemas de produção de alimentos mais resilientes, inclusivos e sustentáveis, Ban Ki-moon pede “a todos os governos e seus parceiros para que adoptem uma abordagem holística, colaborativa e integrada para lidar com as alterações climáticas, a segurança alimentar e o desenvolvimento social e económico igualitário”.
Um grande desafio que encontra resposta nos objectivos definidos para o Dia Mundial da Alimentação: aumentar a sensibilidade geral para o problema da fome no mundo; chamar a atenção para a produção agrícola de alimentos e estimular os esforços nacionais, bilaterais, multilaterais e não-governamentais para este fim; promover a transferência de novas tecnologias para os países em desenvolvimento; fortalecer a solidariedade internacional e nacional na luta contra a fome, subnutrição e pobreza e dedicar especial atenção ao progresso nas áreas da alimentação e agricultura; encorajar a participação da população rural, particularmente das mulheres e das camadas sociais mais desfavorecidas, nas decisões e actividades que influenciam as suas condições de vida; e encorajar a cooperação técnica e económica no seio dos países em desenvolvimento.
Jornalista