São avessos à cultura vigente da autopromoção, não passam o dia a contar o número de likes e de seguidores no Twitter e partilham três traços em comum: ambivalência face ao reconhecimento, gosto pela meticulosidade e um enorme sentido de responsabilidade. São os “invisíveis”, ou aqueles que preferem o anonimato, apesar de extremamente respeitados nas suas áreas profissionais
POR HELENA OLIVEIRA

A “doença” não é nova, mas tem vindo a contagiar um número crescente de pessoas. Na era do self e das selfies, e com ajuda inestimável das redes sociais, a obsessão por nós próprios e pelo reconhecimento dos outros – na maioria das vezes contabilizados pelo número de amigos, likes e partilhas no Facebook, ou de seguidores no Twitter – transformou-se numa busca incessante por aplausos. De acordo com muitos críticos da tecnologia, na actual versão da era digital, o “penso, logo existo” foi substituído por uma busca desesperada por atenção, sendo a existência e a auto-estima construídas por reconhecimentos externos.

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Todavia, são ainda muitos aqueles que, apesar de excelentes profissionais, nas mais diversas áreas, mais felizes e realizados se sentem, quanto mais anónimos permanecerem. E este é o mote para um livro imperdível, intitulado Invisibles: The Power of Anonymous Work in an Age of Relentless Self-Promotion, escrito por David Zweig, ele próprio um “invisível” e que é dedicado em particular a todos os excelentes profissionais que não precisam de ser publicamente reconhecidos para sentirem uma enorme realização pessoal e profissional.

David Zweig trabalhou, durante cinco anos, como verificador de factos para uma revista do prestigiado grupo Condé Nast. E, como conta à strategy + business e à revista The New Republic, “sempre que alguém lê um determinado artigo ou reportagem, nunca se questiona sobre quem verificou a veracidade dos factos contidos nos mesmos”. Ou, por outras palavras, esta profissão só se torna visível quando é encontrado um erro que não foi assinalado pelo verificador. Assim, e no mundo da altura em que se movia David Zweig – o qual, entretanto, se tornou colaborador de vários meios de comunicação prestigiados como a revista The Atlantic e os jornais The New York Times e o Wall Street Journal – quanto maior fosse a qualidade do seu trabalho, menos “reconhecimento” externo receberia, algo que não preocupava minimamente o autor, bem antes pelo contrário. “O mais interessante em ser um verificador era o facto de, quanto melhor fazia o meu trabalho, mais desaparecia mas, e mesmo assim, sentia-me completamente recompensado no final do dia”, afirmou.

Todavia, e percebendo que existia esta estranha e ambivalente relação entre a qualidade do seu trabalho e o reconhecimento face ao mesmo e vivendo num mundo em que quanto melhor é o trabalho que fazemos, mais atenção por parte dos outros recebemos, Zweig começou a pensar em outras profissionais que partilhavam esta “excelência” e “anonimato” em simultâneo.

E assim foi reunindo material para o seu livro, entrevistando e fazendo os perfis de vários profissionais “invisíveis”, de que são exemplo uma intérprete das Nações Unidas (Giulia Wilkins Ary , um perfumista, David Apel, que cria fragrâncias para marcas célebres como a Calvin Klein e a Ralph Lauren, um afinador de pianos de elite – que trabalha para a Orquestra Sinfónica de Pittsburgh, um anestesista com o curso de medicina tirado numa das mais prestigiadas universidades americanas, o técnico de som Pete Clemens, da famosa banda Radiohead, o engenheiro de estruturas responsável pela construção de alguns dos edifícios mais altos do mundo ou o cineasta vencedor de um Óscar da Academia, entre outros.

Mas afinal o que têm em comum estes profissionais de mão cheia, para além de uma enorme responsabilidade em cima dos ombros e um prazer declarado pelo anonimato?

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Motivações extrínsecas ou quando o sucesso não tem de ser traduzido em atenção
Apesar de pessoalmente modestos, e até tímidos, os invisíveis são, na maioria das vezes, líderes muito eficazes. E partilham, todos eles, pelo menos três traços.

O primeiro, e como já anteriormente referido, prende-se com uma ambivalência relativa ao reconhecimento. Ou seja, a corrida desenfreada pela atenção e reconhecimento por parte dos outros, não tem lugar neste conjunto de profissionais. Não é que não apreciem os elogios, sentindo-se felizes com o reconhecimento do trabalho que fazem por parte dos seus pares. A diferença é que não dependem deste reconhecimento nem é o mesmo que os estimula.

O que realmente motiva os invisíveis é o próprio trabalho. O orgulho que dele têm e a forma como o executam traduz-se no segundo traço em comum partilhado: uma enorme meticulosidade em tudo o que fazem, aliada a outro sentimento que os define, a responsabilidade e responsabilização que sentem em qualquer que seja a tarefa realizada.

Tal como explica Zweig na entrevista concedida à strategy + business, os invisíveis “gostam profundamente de estar imersos no seu trabalho”, sendo que a sua melhor recompensa reside no “bem-estar psicológico que advém do sentimento de uma tarefa cumprida com esmero ou da aceitação de novos desafios profissionais”. Sendo esta a sua melhor recompensa, e não a chamada de atenção para si próprios, os psicólogos definem-na como uma inspiração proveniente de motivadores intrínsecos, e não extrínsecos, como o dinheiro ou a atenção.

A propósito desta “propensão para a responsabilidade”, Zweig conta, à The New Republic, uma deliciosa história sobre um engenheiro que fez parte da equipa que inicialmente trabalhou com o prestigiado e “amigo da fama” arquitecto Frank Lloyd Wright. Este engenheiro e a equipa que o acompanhava sabiam que alguns dos projectos desenhados pelo famoso arquitecto não eram seguros. E sabiam igualmente o quão teimoso este era e que nunca iria reconhecer algum tipo de erro por ele cometido. Assim, em segredo, a equipa reforçou parte das estruturas de um determinado edifício enquanto este ia sendo construído, sabendo que nunca poderiam falar do assunto em público, mas tendo consciência que, graças ao verdadeiro amor que sentiam pelo seu trabalho, nunca poderiam ter deixado de o fazer. Como também afirma Zweig, “tendemos a associar a responsabilidade à pessoa que se senta no topo da pirâmide, ou àquela que mais (re)conhecida é, sendo que esta não está, necessariamente, relacionada com aquilo que aparece à vista”.

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Trabalhar nos bastidores e deixar o estrelato para os outros
Mas será que estes anónimos gostam mesmo de trabalhar nos bastidores ou fazem-no porque não tiveram outro remédio senão o de serem remetidos para a sombra? A resposta de Zweig a esta questão é clara. Todas estas pessoas [entrevistadas para o seu livro] são profissionais com educação superior, muito motivadas e ambiciosas, mas que simplesmente escolheram carreiras nas quais não se encontra muito reconhecimento público. Um outro caso relatado no livro é o de um anestesista, que frequentou uma universidade pertencente à Ivy League [a rede de oito universidades privadas mais prestigiadas dos Estados Unidos] e que poderia ter escolhido qualquer especialidade médica, mas que optou por uma área na qual pode executar o seu trabalho com toda a perfeição e responsabilidade que o mesmo exige, mas que não tem qualquer tipo de reconhecimento. Afinal de contas, um paciente quando acorda lembra-se do cirurgião que o operou e nunca do anestesista que o manteve vivo enquanto era operado.

Adicionalmente, a maioria destas pessoas é extremamente discreta. Segundo o autor, nem quando eram crianças requeriam qualquer tipo de atenção. Zweig relata também que um dos seus entrevistados, um designer gráfico muito talentoso, ao ganhar um determinado prémio em miúdo, se sentiu completamente desconfortável por ter os “holofotes” apontados para ele. Assim, continua, muitos dos “invisíveis” sempre demonstraram esta inclinação no sentido de fazerem apenas um bom trabalho, que os preencha e sirva de recompensa, sem terem de fazer qualquer tipo de alarido sobre o mesmo. O que é algo exactamente oposto à “maneira de fazer as coisas à americana”, bem como no que respeita à cultura do “eu sou muito bom e quero que todos saibam” que caracteriza uma quantia considerável de pessoas na actualidade.

E serão estas pessoas capazes de atingir posições de liderança? Apesar de o autor admitir que os verdadeiros “invisíveis” não procuram as recompensas extrínsecas da liderança – no sentido abrangente da palavra – como sejam a fama, o aparecer em capas de revista ou o de coleccionarem likes e partilhas nos media sociais, em conjunto com o facto de muitas das profissões por eles escolhidas não terem como trajecto normal o “vir a ser-se líder”, Zweig garante igualmente que os “invisíveis” podem ser – e são – líderes de excelência.

Mais uma vez, um exemplo do livro ilustra esta realidade. A história é a de Dennis Poon, o qual tem sido o engenheiro de estruturas responsável pela construção de alguns dos edifícios mais altos do mundo, nomeadamente da famosa Torre de Xangai, ainda em construção, mas com inauguração prevista ainda para este ano e que será o edifício mais alto da China e o segundo mais alto a nível mundial (a seguir ao Burj Khalifa no Dubai). Poon não é apenas responsável  por várias e vastas equipas de profissionais – engenheiros de estruturas, peritos em ventos, especialistas sísmicos, entre outros – como também é o seu trabalho assegurar a integridade estrutural das torres que custam milhares de milhões de dólares. Sendo esta uma responsabilidade tão elevada como os edifícios que supervisiona, e apesar de o público ter por hábito reconhecer apenas o trabalho do arquitecto, Poon regozija-se com a sua responsabilidade. “É uma honra”, afirmou a Zweig.

A busca pela qualidade é, talvez, o elemento mais importante nos invisíveis que se transformam em líderes. Tal como refere o autor na entrevista à strategy + business, existem inúmeras pessoas tímidas que não procuram reconhecimento externo e tantas outras que são extremamente meticulosas nas tarefas em que se empenham. Todavia, é esta disponibilidade – quase agressiva – para aceitar a responsabilidade que mais facilmente transforma um invisível num líder.

Mas não só. Uma outra característica dos líderes que preferem a invisibilidade é o facto de serem excelentes em reunir equipas e a conduzi-las no sentido de um objectivo comum, sem a necessidade de receber o crédito pelo trabalho que, em conjunto, foi realizado.

Contudo e como sabemos, a cultura organizacional vigente, em conjunto com a era que faz igualar a quantidade de atenção despertada ao nível de sucesso conseguido, não premeia aqueles que preferem fazer o trabalho na sombra do que brilhar nas luzes da ribalta.

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Ser invisível na cultura da autopromoção
São sinais do tempo e as explicações relativas a esta “selfie-obsessão” apontam para “uma constelação de forças contemporâneas modeladoras de comportamentos”, como escreve a revista Wired, num interessante artigo sobre a quase compulsão no que respeita a likes e a retweets. Na verdade, as plataformas sociais digitais como o Facebook foram exactamente concebidas para “extrair” o máximo de conteúdos “egocêntricos” dos seus utilizadores e o Twitter transformou o objectivo de adquirir o maior número de seguidores possível como um meio em si mesmo. O marketing pessoal e a gestão das nossas personalidades online acabaram por fazer desaparecer a linha entre o público e o privado, as empresas impingem os seus produtos e serviços através de esquemas promocionais que transformam os consumidores em profissionais de marketing e os reality shows televisivos e os vídeos que se tornam virais no YouTube contribuem para que toda a gente procure os já antigos e desejados 15 minutos de fama (ou menos, na verdade) proclamados por Andy Warhol.

E se não é de todo negativo vivermos numa saudável dependência dos outros, principalmente daqueles que nos acompanham na vida e são suficientemente honestos para nos dar a opinião que de nós têm, depender exageradamente da aprovação alheia condena-nos a uma existência escrava, obrigando-nos a perseguir, incessantemente, afirmações elusivas de forma a aumentar a nossa auto-estima. Pior ainda, essa permanente busca pela aprovação pode transformar-se num estado de dependência grave, análogo ao prazer e à euforia efémeros próprios de drogas e substâncias aditivas similares.

E é por tudo isto que o livro de David Zweig é, para além de muito bem escrito, uma prova de que nem toda a gente precisa de likes e de retweets para se sentir realizada, e que é possível que o simples sentimento de orgulho por fazermos um trabalho bem feito nos preencha e sirva de recompensa. E, como confessou um escritor fantasma [ghost writer, em inglês, aquele que, tendo escrito uma obra ou texto, não recebe os créditos de autoria – ficando estes com aquele que o contrata ou compra o trabalho] a Zweig, a sua fantasia é a de “sentar-se, num avião, ao lado de alguém que está a ler um dos seus livros e não lhe dizer nada ao longo de todo o voo”. “Só ficar a observá-lo enquanto lê, tentar perceber, através da sua linguagem corporal, quais as partes de que mais está a gostar… e ficar feliz com isso”. Anonimamente.

Editora Executiva