POR RUI ESPERANÇA
“O trabalho é o meio universal
de prover às necessidades da vida”
Leão XIII, Rerum Novarum
Acontece com este tema o que tem acontecido com diversos outros temas sociais e políticos: o que era uma conversa de esquerda há uns, poucos, anos, tem-se transformado numa questão central, apartidária e de pura decência. Sim, está-se a falar de direitos dos trabalhadores, mas será este, porventura, um tema propriedade exclusiva de uma determinada matriz política?
Está gasto dizer-se que a sociedade de modelo ocidental caminha para uma espécie de espiral epiléptica: ao mesmo tempo que cria instrumentos de trabalho que levam a um estado de (hiper) vigilância laboral por parte dos trabalhadores, exige permanências cada vez maiores dos mesmos nos seus locais de trabalho; do mesmo passo que automatiza e transforma processos dispensando o ser humano, onera em excesso os que ficam com um cada vez maior número de funções; em simultâneo com a exaltação do modelo social do bem-estar e bem viver, cria cada vez mais trabalhos precários e mal pagos; embora tenha herdado um quadro de valores bem definido, vai desvalorizando muitos deles em prol do progresso; enquanto idolatra os génios geek, não quer saber dos efeitos, muitas vezes perversos, das suas invenções; do mesmo modo que demoniza os sindicatos e as suas reivindicações, demonstra preocupações sociais (resta saber se reais). Enfim, a lista podia seguir por aí fora.
[quote_center]É precisamente nestas sociedades modernas, evoluídas, democráticas e respeitadoras dos direitos humanos que se tem vindo a assistir a uma depauperação de alguns dos direitos sociais de que são (eram?) beneficiários todos os que trabalham[/quote_center]
Recentemente e por diversas razões, dois temas fizeram-me pensar na evolução que a sociedade preconiza como inelutável: o direito dos trabalhadores a não estarem conectados permanentemente às suas entidades empregadoras e a situação contratual dos motoristas das plataformas electrónicas de transporte individual, jargão técnico que designa o Uber e o Cabify.
Algures durante o século XX, os países ditos civilizados adoptaram nas respectivas legislações laborais horários de trabalho que, simultaneamente, serviam à organização da empresa e à protecção dos trabalhadores. Os horários de trabalho permitiram às partes, desde sempre, percepcionar quando começavam e terminavam os tempos de trabalho, distinguindo-os dos tempos de “não trabalho”, conferindo, desse modo, evidente segurança e certeza aos trabalhadores no que respeita à organização e planeamento das suas vidas pessoais. Exactamente porque sempre foi este o espírito do Estado legislador, considerou-se justo premiar quem não se importava de ver estendido ou diluído o seu horário de trabalho, atribuindo-se um subsídio por tal facto.
Finalmente, sempre por forma a garantir um feixe mínimo de direitos, impediu-se que os trabalhadores pudessem recusar dias de férias, estabelecendo-se um número mínimo obrigatório. Tudo isto aconteceu para contrariar em grande parte os excessos decorrentes da Revolução Industrial, tendo as sociedades ditas modernas adoptado um acquis de direitos sociais que, inclusive, consagraram como o mínimo denominador comum na defesa da dignidade da pessoa humana.
Pois bem, é precisamente nestas sociedades modernas, evoluídas, democráticas e respeitadoras dos direitos humanos que se tem vindo a assistir a uma depauperação de alguns dos direitos sociais de que são (eram?) beneficiários todos os que trabalham, especialmente os que trabalham por conta de outrem, sujeitos que estão ao poder de vinculação e direcção dos seus empregadores. Na verdade, é neste tipo de sociedades que a competição profissional é cada vez maior e mais acicatada, em que os tempos de trabalho e de não trabalho se têm esbatido estrondosamente, onde há um sem-número de situações de real emprego subordinado mascarado de trabalho independente e onde têm proliferado formas ditas alternativas de emprego (quase sempre em prejuízo da pessoa-trabalhador). É, igualmente, et pour cause, também nestas sociedades que se tem criado um ambiente empresarial cada vez mais hostil e competitivo, em que um cada vez menor número de pessoas se esmera por conseguir abarcar com sucesso e distinção as funções que se encontravam, tempos antes, atribuídas a todos os que passaram entretanto a fazer parte de uma horda crescente de desempregados e sub-empregados. É, finalmente, também nestas sociedades que, embora não contando para a estatística do desemprego, há cada vez mais sub-emprego, esse fenómeno tão actual quanto crescente. Quem não conhece pessoas sobrequalificadas para os empregos que têm ou demasiado mal pagas para o que fazem, mas que, apesar de tudo, preferem não perder a carruagem do mercado de trabalho?
[quote_center]É verdadeiramente paradoxal que cada vez menos trabalhadores desempenhem cada vez mais funções, ao mesmo tempo que outros são despedidos por motivos de mercado ou estruturais como se não houvesse lugar para eles[/quote_center]
É verdadeiramente paradoxal que cada vez menos trabalhadores desempenhem cada vez mais funções, ao mesmo tempo que outros são despedidos por motivos de mercado ou estruturais como se não houvesse lugar para eles. É difícil conceber que aqueles que vão tendo trabalho estejam, em inúmeros casos, tão assoberbados por ele que não têm sequer capacidade para compatibilizar decentemente as suas vidas profissionais e pessoais. Quantas vezes, no âmbito da minha profissão, eu vejo trabalhadores com responsabilidades de chefia queixarem-se de que não têm mãos a medir para o trabalho que têm e que veriam com bons olhos a admissão de novos colegas que pudessem ajudá-los. Mas há sempre e invariavelmente a questão do budget: nunca ou raramente permite.
Por muitas voltas que se dê, o caminho da compatibilização entre o crescimento económico constante e a salvaguarda dos direitos e interesses das pessoas-trabalhadores é cada vez mais estreito, porque o modelo de crescimento perpétuo algum dia vai esbarrar contra a insusceptibilidade de alcançar mais e maior bem-estar, a escassez dos recursos naturais existentes no planeta e/ou, no limite, o número de pessoas existentes. O modelo não é infindável e sacrificará cada vez mais e mais, criando uma enorme esteira de danos colaterais se não for (radicalmente) alterado.
Por isso, a recente alteração legislativa em França no sentido de consagrar o direito dos trabalhadores a desligarem os acessos aos emails profissionais é uma medida que, sendo embora contra a corrente, vai no sentido correcto. Na verdade, a dignidade das pessoas-trabalhadores não se afere apenas pelas condições financeiras de que dispõem, mas também pela possibilidade de compatibilizarem as suas vidas familiares e profissionais e de consagrarem tempo a outras actividades para além do trabalho, sem que este fique em risco por tal motivo. Há também uma razão eventualmente mais prosaica relacionada com o facto de serem trabalhadores que passam a estar menos disponíveis para o trabalho, desse modo fazendo com que eventualmente os respectivos empregadores se vejam obrigados a contratar mais gente. É, pois, nesse sentido que afirmo sem hesitar que a imposição de um período diário em modo off é, à falta de uma auto-regulação eficaz e consciente, um dos possíveis instrumentos para o reequilíbrio do actual paradigma.
[quote_center]A recente alteração legislativa em França no sentido de consagrar o direito dos trabalhadores a desligarem os acessos aos emails profissionais é uma medida que, sendo embora contra a corrente, vai no sentido correcto[/quote_center]
Já quanto às plataformas electrónicas de transporte individual – que saúdo com grande entusiasmo como forma de combater o, aliás escandaloso, monopólio dos táxis –, o que se passa é profundamente atentatório dos direitos mais básicos de qualquer trabalhador. Senão vejamos: trabalhar, no mínimo, doze horas por dia para ganhar uma percentagem inferior a metade daquilo que a plataforma ganha (no caso da Uber) e que se traduz num ordenado (nem sequer juridicamente qualificado dessa forma) mensal que ronda os € 550,00, não me parece equitativo. Mas mais: a questão que se coloca não é apenas a da remuneração de quem conduz para a Uber, mas sim o modelo jurídico, e portanto de direitos e de obrigações, que condiciona a prestação desse serviço. Ao assumir-se como um intermediário entre quem presta o serviço (os condutores) e quem o utiliza, a Uber está a comprimir de forma inaceitável diversos direitos daqueles que para si trabalham, porque está a usar essas pessoas, submetendo-as a um número infindável de regras (conduta, tipo de condução, condições do automóvel, etc.) que os mesmos têm de cumprir sob pena de serem penalizados, o que, em boa verdade, dificilmente sucederia com um qualquer verdadeiro prestador de serviço e mais têm que ver com verdadeiros trabalhadores por conta de outrem.
Ora, sem retirar mérito a este tipo de serviço, o que suscita interesse é que os seus responsáveis assumem, também eles, uma posição extremamente agressiva para com todos aqueles que, no fundo, contribuem decisivamente para o seu sucesso, aproveitando-se do facto de existir sempre alguém disponível para aceitar trabalhar naquelas condições e sob tais regras. Ora, uma vez mais, à falta de valores éticos que se sobreponham à oportunidade (que talvez seja mais oportunismo), o quadro regulatório devia sujeitar as referidas situações à legislação existente, nomeadamente impondo limites e condições à prestação de trabalho. Por outro lado, convenhamos que, mesmo admitindo-se que os condutores dessas plataformas estariam sempre sujeitos ao pagamento de uma espécie de prémio a quem detém o exclusivo da solução, não parece aceitável impor condições de trabalho e de remuneração que, no mínimo, parecem desadequadas à dignidade dos trabalhadores. Dito de outra forma: se a Uber, a Cabify e todos os eventuais futuros concorrentes se consideram verdadeiros intermediários conforme dizem que são, deveriam dar, pelo menos, metade do que ganham aos condutores; pelo contrário, se assumissem o seu estatuto de empregadores, deveriam respeitar os direitos e as obrigações que se encontram contidos na lei. Porém, o que se vê é uma das partes querer o melhor de dois mundos, dando muito pouco em troca a quem é, na verdade, imprescindível para o seu sucesso.
[quote_center]O progresso é bom e recomenda-se, mas não devemos deixar de pensar que, no centro de tudo, está e tem de estar a pessoa humana[/quote_center]
Esta espécie de menorização da pessoa-trabalhador é, aliás, feita de forma transversal e, por vezes, sem que quem a faça tenha dela consciência. Recentemente, no Websummit que decorreu em Lisboa, alguém previa com grande entusiasmo que, daqui por uns poucos anos, as pessoas seriam quase todas substituídas por robôs e/ou máquinas capazes de executar as tarefas e de gerar a informação ainda presentemente executadas por seres humanos. É bom que se diga que, se esse é o caminho, seguimos alegremente para o desastre. O progresso é bom e recomenda-se, mas não devemos deixar de pensar que, no centro de tudo, está e tem de estar a pessoa humana: trabalhadores, prestadores de serviço, desempregados, estudantes, reformados, e é – e deve continuar a ser – para as pessoas e em prol das pessoas que a sociedade se organiza e evolui. O progresso, a tecnologia, assim como a riqueza e a prosperidade, não são nem devem ser um fim em si mesmo e não servem absolutamente para nada se não se destinarem ao bem-estar da sociedade vista como um todo e não apenas para proveito de alguns.
É, pois, por isso que advogo que o progresso e a utilização das novas tecnologias também devem ser delimitados pela dignidade da pessoa humana, sendo que essa dignidade não apenas se centra no bem-estar e no ócio, mas também na defesa do trabalho, sobretudo de um trabalho digno, e na salvaguarda da compatibilização das diferentes esferas da vida, permitindo uma correcta integração da pessoa-trabalhador.
Sócio da ACE – Sociedade de Advogados