“Há limites para o que os cidadãos podem aguentar”, disse, no final de 2010, Cavaco Silva, a propósito da apresentação da Campanha “Direito à Alimentação”, graças à qual os restaurantes vão poder doar refeições às instituições de apoio às pessoas carenciadas. Contornadas as questões de lei que impediam esta rede social – extensível às cantinas de escolas, hospitais, etc. – de actuar, resta ainda criar um regime de excepção para que não seja cobrado IVA sobre estas refeições. O VER conversou com o mentor da petição “Contra o Desperdício Alimentar” e com o presidente da Cáritas, sobre esta causa nacional António Costa Pereira, cidadão português, piloto de profissão, pode sentir-se orgulhoso de, sozinho, ter juntado uma pequena multidão à volta de uma causa social cada vez mais real no País: a fome. Contra ela, era “moralmente obrigatório” dissociar dois conceitos – Saúde Pública e Desperdício Alimentar -, ligados entre si através de “uma lei absurda”: um diploma comunitário de 2002, transposto para a legislação nacional ao abrigo da Lei de Saúde Pública, que obrigava, até há bem pouco tempo, ao desperdício diário de 35 a cinquenta mil refeições diárias, segundo as estimativas de António Pereira. A realidade é que todos os dias um grande número de refeições, completas e em perfeitas condições de consumo, são deitadas fora nos refeitórios de empresas, escolas, universidades, hospitais, prisões e restaurantes, alegadamente “por razões de saúde pública”. E enquanto uns mandam o que sobra para o lixo, outros – cada vez mais portugueses – procuram nele o alimento mínimo para a sua subsistência. “Confortáveis na nossa abundância, perdemos de vista o mundo real” A partir daí, os apelos remetidos à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) tiveram eco – com esta a garantir apoio para “vir a ser parte da solução”; arrancou, em Oeiras, um projecto-piloto para formação e garantia da distribuição dos alimentos em boas condições de segurança, envolvendo a ASAE; os cinco grupos parlamentares reuniram com António Pereira (o CDS-PP apresentou mesmo uma moção contra o desperdício alimentar que a Câmara de Lisboa aprovou por unanimidade, permitindo à autarquia a criação de um programa que evite que as sobras de muitos dos restaurantes e cantinas de Lisboa vão parar ao lixo); e o presidente da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal manifestou-se disponível para envolver os restaurantes nesta acção nacional de doação de alimentos às pessoas carenciadas.
A Associação avançou mesmo com o lançamento, a 10 de Dezembro de 2010, da “Carta do Direito à Alimentação” e de uma campanha de solidariedade social dedicada ao “Direito à Alimentação”, que merece o alto patrocínio do presidente da República. Cavaco Silva louvou esta iniciativa “destinada a combater um dos flagelos que, de modo envergonhado e silencioso, se tem propagado pelos estratos menos favorecidos da sociedade portuguesa: a falta de acesso a uma alimentação condigna”, considerando que esta “constituí um verdadeiro exemplo de como as instituições da sociedade civil podem dar um valioso contributo para um Portugal mais coeso, mais unido e solidário”. Através da Campanha Nacional para o Direito à Alimentação – DA, que arranca oficialmente no dia 4 de Abril, a AHRESP assume a responsabilidade social de criar uma Rede Nacional de Solidariedade, dirigida às famílias e aos cidadãos carenciados de alimentação, digna e suficiente. Pretende-se que adiram a esta iniciativa todas as empresas e instituições privadas e públicas, através de apoios, contributos e donativos. Desde a produção agro-pecuária, passando pela indústria e a distribuição alimentar, e indo até aos estabelecimentos de hotelaria, restauração e bebidas, todas as empresas e instituições podem participar no programa, através da adesão voluntária, garantida pela operação do BUE – Balcão Único Empresarial. Para o presidente da AHRESP, Mário Gonçalves, perante a actual conjuntura, é urgente reforçar a cooperação com as cerca de 4.500 instituições de Solidariedade Social existentes em Portugal, confrontadas, muitas vezes, com a rotura das suas capacidades: o Balcão Único Empresarial “vai promover a adesão e operação em rede de proximidade dos nossos fornecedores e dos nossos próprios estabelecimentos, para, de forma articulada, congregar donativos, entregando-os aos municípios para estes os fazerem chegar, directamente, ou através das instituições de solidariedade do seu concelho, aos grandes destinatários da nossa preocupação, os carenciados de alimentação digna e equilibrada”. O programa visa exclusivamente a alimentação, e vai utilizar várias valências, desde os produtos alimentares e as senhas de refeição, até às refeições confeccionadas. Apesar do prazo para a inscrição dos municípios no site da campanha (www.direitoalimentacao.org) – manifestando a sua disponibilidade para aderirem à primeira fase – terminar apenas no próximo dia 20, “é já significativo o número de adesões”. Em paralelo, e enquanto se aguarda a conclusão desta fase, o que leva a que ainda não estejam definidos os locais prioritários onde a campanha irá decorrer, já há um grande número de estabelecimentos que manifestaram a sua disponibilidade para aderir à campanha. O que está feito… Mais exigentes ou não, os portugueses são, por natureza, generosos, e talvez por isso se indignem facilmente com as injustiças sociais. Com a ajuda das redes sociais, muitos milhares apoiam esta causa dedicada à doação de refeições a quem mais precisa, que depende agora da criação de um regime de excepção na lei para que os restaurantes não tenham de pagar treze por cento de IVA sobre o que doarem durante a Campanha Direito à Alimentação. O impacto da iniciativa tem sido, de resto, bem visível no pouco habitual destaque dado ao tema pela comunicação social. Depois do êxito da petição – que se mantém online para, caso a “interpretação da lei” continue a não permitir uma operação “fazível” de aproveitamento das refeições, poder avançar para a Assembleia da República; e para manter na agenda política a consciência da “nova realidade no país: a existência de muitos novos pobres, que têm fome”) – o desafio lançado por António Pereira à Câmara Municipal de Oeiras, para, em coordenação com a ASAE e articulando todas as IPSS e empresas do concelho, recolher, acondicionar, distribuir e entregar todas as refeições em condições que sobram nos refeitórios, restaurantes, supermercados e outras estruturas do concelho, deverá em breve ser replicado para outros municípios. Na sua opinião, será “mais eficaz que o projecto funcione em parcerias locais, com a ‘condução’ das Câmaras Municipais, pois cada local tem os seus problemas e as suas soluções próprias”. À semelhança de Oeiras, também a Câmara Municipal de Lisboa abraçou este projecto e já foi nomeada uma equipa camarária para começar o trabalho. Em câmaras como a do Funchal, Mealhada, Setúbal, Loures ou Anadia foram apresentadas, votadas e aprovadas moções para “Acabar com o Desperdício Alimentar” nos concelhos.
…E o que falta fazer Dentro de poucas semanas começarão a ser conhecidos os resultados concretos nos primeiros municípios que desenvolverem este projecto. É importante que todos os concelhos deles possam beneficiar, diz o mentor do movimento contra o desperdício Alimentar, bem como que os cidadãos sintam que é possível fazer algo que “depende em grande medida da capacidade que cada um de nós tiver de dar à sociedade aquilo que tem faltado: ideias, soluções e envolvimento”. Confiante, acredita que apenas com “vontade, trabalho e coordenação” é possível potenciar esta causa, para a qual “todos temos de deixar de nos abster”. Como é sabido, Portugal está a atravessar um dos períodos socioeconómicos mais complicados da sua história e tem de ser nestes momentos que a sociedade mais terá de contribuir para ajudar o país, diz. Foi o que fez a AHRESP, ao envolver centenas de restaurantes associados nesta causa, dando um sinal de alento aos cidadãos necessitados, que “serve de exemplo a seguir por todos”. Entretanto, já depois de todo o esforço envolvendo muitas pessoas e entidades interessadas e solidárias com esta causa, surgiu a questão das refeições doadas poderem ser taxadas de IVA. Para António Pereira “seria de uma crueldade e cegueira burocrática que tal pudesse vir a acontecer, pois inviabilizaria este projecto que não visa o lucro mas, tão-somente, ajudar os portugueses que neste momento tão necessitados estão”. Como disse o presidente da República, “há limites para o que os cidadãos podem aguentar”, recorda, e, cada vez mais, os portugueses precisam de ver exemplos muito concretos de ajuda. Entrevista Em entrevista ao VER, Eugénio Fonseca considera “óbvia a oportunidade” desta iniciativa que visa suprir quaisquer carências alimentares, numa altura em que a Crise está a privar muitos portugueses de ter acesso a uma subsistência digna. Na opinião do presidente da Cáritas Portuguesa, o dinamismo gerado à volta da petição demonstra “a evidência da validade do princípio da subsidiariedade”, graças ao qual foi possível fazer com que o país não ficasse indiferente “perante a denúncia de escandalosos desperdícios alimentares”. De que importância se reveste, na actual conjuntura socioeconómica, uma iniciativa que deverá permitir oferecer refeições a 50 mil carenciados? A maioria com salários baixos que não permitiram poupanças, muitos com contratos precários que não lhes retiraram o direito a determinadas formas de protecção social, como é o subsídio de desemprego. Todos estes, rapidamente, ficaram privados de aceder a bens indispensáveis à sua digna subsistência. Um dos factores que tem repercussões imediatas na vida das pessoas é a alimentação. Começa-se por deixar de se adquirir produtos de maior qualidade até à redução do número de refeições. São variados e gravosos os efeitos nefastos desta privação no equilíbrio do ser humano, nomeadamente a precarização da saúde e a diminuição do rendimento laboral e escolar. É, por isso, indispensável qualquer iniciativa que vise a superação da fome ou de qualquer tipo de carência alimentar. Porém, o estar próximo não é só uma questão geográfica mas, sobretudo, de sensibilidade. A AHRESP é uma organização grande, com um nível muito vasto de abrangência que tem enormes desafios a enfrentar. Mesmo assim não foi indiferente a um problema que talvez não fosse prioritário no âmbito da sua intervenção. Mas percebeu que, face às enormes dificuldades que estavam a viver milhares de concidadãos, não poderia ficar indiferente perante a denúncia de escandalosos desperdícios alimentares e que uma das soluções – a mais imediata – passaria pela co-responsabilização dos seus associados. Que perspectivas tem a Cáritas de aumentar o apoio às famílias mais carenciadas, através da integração nesta rede nacional de solidariedade? Por outro, os portugueses já deram provas mais do que suficientes da sua pronta generosidade para com quem se encontra a passar mal. Tendo a possibilidade de dispor destes recursos, ficarão mais disponíveis outros para responder a carências de tipo diferente.
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Jornalista