No mais recente debate da ACEGE, João César das Neves analisou “o essencial” da mensagem que o Papa deixou em Fátima, e explanou sobre as relações – e coincidências – entre a sua história e os grandes acontecimentos que mudaram o curso da História, no século XX. Para o professor, “os avisos que a Senhora nos fez em 1917 são hoje tão ou mais actuais”. E a solução que nos traz “são os três pilares da mensagem de Fátima: oração, penitência e consagração
POR GABRIELA COSTA

João Luís César das Neves foi o orador convidado a apresentar “Fátima: a sua influência nos homens e no mundo”, no último almoço-debate da ACEGE – Associação Cristã de Empresários e Gestores, realizado a 30 de Maio, em Lisboa. Numa reflexão marcada ainda pela peregrinação do Papa Francisco ao Santuário de Nossa Senhora do Rosário, neste Centenário das Aparições de Fátima, o professor catedrático da Universidade Católica Portuguesa analisou “o essencial” da mensagem que o Papa ali deixou, e explanou sobre as relações – e coincidências – entre Fátima e os grandes acontecimentos que mudaram o curso da história, no século XX.

De resto, a tarefa que o Papa nos deixou, diz César das Neves, foi a de meditarmos nesta outra maneira de olharmos para a mensagem de Fátima, diferente da perspectiva de outros papas que também visitaram o Santuário.

E, para iniciar essa meditação sobre Fátima aos olhos do Papa Francisco, o especialista em ética económica lança uma questão “estranha”, mas basilar: Quem é a aparição de Fátima? “Os Pastorinhos nunca tiveram dúvidas. Eles perguntaram, em Maio, quem Ela era, e Ela disse: Sou do céu. Depois, em Julho, disse: em Outubro direi quem Sou e o que Quero. E em Outubro, finalmente, apresentou-se como a Senhora do Rosário. Mas, como se sabe, Jacinta não se conseguiu aguentar e logo no primeiro dia disse: nós vimos Nossa Senhora”. Apesar de só terem a confirmação meses depois, Jacinta e Francisco Marto e Lúcia de Jesus “sabiam que era Nossa Senhora, e vale a pena ter consciência de que é isso que leva lá o povo”.

[quote_center]Os Pastorinhos sabiam que era Nossa Senhora, e vale a pena ter consciência de que é isso que leva lá o povo[/quote_center]

Ao contrário da maior parte das aparições, “sabemos tudo o que Ela disse em Fátima”. Mas sabemos agora, mais de vinte anos depois da primeira aparição, a 13 de Maio de 1917, e graças à revelação das memórias da Irmã Lúcia nos finais dos anos 1930, que permitiram começar a perceber “o que tinha acontecido realmente”. Revelação essa que, como é sabido, só ficou completa no ano 2000, com o anúncio do terceiro segredo de Fátima. Porém, “o povo não precisava disso. A maioria das pessoas nem leu as memórias da Irmã Lúcia. Vão a Fátima porque Nossa Senhora ali esteve, e vão lá para estar com Ela”.

O aviso e a solução de Fátima

Na saudação do Santo Padre proferida na Bênção das Velas, a 12 de Maio, Francisco levanta uma questão muito pertinente: Qual é a Maria que veio a Fátima? Quem é que nós procuramos em Fátima? Pode-se dizer que “a resposta, feita com as dicotomias de que o Papa gosta tanto, é um condensado de teologia Mariana”: Será a “Mestra de vida espiritual”, uma “Senhora inatingível”, a “Bendita por ter acreditado”, “uma santinha”, a “Virgem venerada” ou a “Virgem segurando o braço justiceiro de Deus”? Será “uma Maria melhor que Cristo”, misericordiosa?, questiona Francisco aos fieis na Capelinha das Aparições, em Fátima.

Para logo se indignar com o julgamento que não é feito à luz da misericórdia, afirmando: “Grande injustiça fazemos a Deus e à sua graça, quando se afirma em primeiro lugar que os pecados são punidos pelo seu julgamento, sem antepor […] que são perdoados pela sua misericórdia”. E comenta César das Neves: “o pecado é horrível. Mas Ele é que sofreu a pena que nós merecíamos. E, por isso mesmo, “temos de ter sempre em atenção a quem é que nós rezamos em Fátima”.

Ora, no contexto de Fátima, quem é então “a verdadeira Maria”? Diz Francisco: “é uma Mestra de vida espiritual, a primeira que seguiu Cristo pelo caminho estreito da cruz dando-nos o seu exemplo”; é “a Bendita por ter acreditado sempre e em todas as circunstâncias nas palavras divinas”; a “Virgem Maria do Evangelho venerada pela Igreja orante”. E, com estas palavras que não são dele – mas de Paulo VI, na sua visita ao Santuário Nossa Senhora de Bonaria-Cagliari, em 1970 – diz, de “uma forma claríssima, contundente”, como diria ele próprio: “na verdade, se queremos ser cristãos devemos ser Marianos”.

E o que a Senhora veio cá fazer? Na homilia de 13 de Maio, que integrou o rito da Canonização dos beatos Francisco e Jacinta Marto, o Papa referiu, “de uma forma que lhe é muito típica”, como diz César das Neves, que “a Virgem Mãe não veio aqui para que A víssemos”. Ou seja, “não veio cá para Se mostrar, mas para nos mostrar o inferno que nós construímos com uma vida sem Deus, às vezes profanando”-o

Segundo João César das Neves, a missão de Nossa Senhora em Fátima pode resumir-se a duas tarefas: um aviso e uma solução.

Em primeiro lugar, “Nossa Senhora veio avisar-nos. Vem falar a Fátima dos assuntos de que falam os jornais: vem falar da guerra, da Rússia, da perseguição à Igreja, de problemas concretos”.

E esta é uma questão essencial para entender o aviso de Fátima, explica César das Neves. “A Senhora não veio cá revelar novos dogmas de Fé, não veio cá para citar coisas novas”. Tem aparecido “sucessivamente” e “sempre com características comuns” à Igreja, mas “tem uma distinção notável” em Fátima, graças a três factores, de acordo com o autor de “O Século de Fátima”: o milagre do sol e a repercussão que teve, o que faz de Fátima um acontecimento nacional, indiscutivelmente, e rapidamente mundial; a continuidade dada pela Irmã Lúcia às aparições até à revelação do terceiro segredo, só no ano 2000; e a presença da Igreja no Santuário nacional, com seis visitas Papais, por parte de quatro papas, o que nos “distingue já dos outros santuários”, mas, e “mais extraordinário”, com a deslocação da imagem de Nossa Senhora da Capelinha a Roma, por três vezes.

No que respeita à importância da beata prima dos dois irmãos agora canonizados, o professor está convencido, mesmo com algum “atrevimento”, que o segundo século de Fátima vai ser o da Irmã Lúcia. O primeiro foi o dos Pastorinhos, mas “o que nós sabemos sobre Francisco e Jacinta foi Lúcia que contou, e foi ela a única pessoa que falou com Nossa Senhora”, recorda.

Portanto, “de facto o mistério está centrado na Irmã Lúcia”, e sobre ela pouco sabemos. Mais passaremos a saber, com o processo de beatificação, já iniciado mas longe de estar concluído, ou, por exemplo, com a divulgação do livro “O Meu caminho”, que Lúcia terá escrito e que ainda não está publicado, mas cuja existência foi revelada recentemente.

As coincidências de Fátima

O Papa Pio XII foi sagrado Bispo a 13 de Maio de 1917, o que fez dele o Papa de Fátima; João Paulo II levou um tiro a 13 de Maio de 1981; e “agora sabemos também que o [então] padre Jorge Bergoglio, a 13 de Maio de 1992, 75 anos após a primeira aparição, recebeu o telefonema do núncio apostólico a dizer que iria ser o Bispo Auxiliar de Buenos Aires. e sabemos porque uma jornalista o recordou ao Papa, durante a sua viagem de regresso a Roma, no final da peregrinação portuguesa.

[quote_center]A Senhora tem uma distinção notável em Fátima[/quote_center]

Como comenta João César das Neves, “Fátima tem esta enorme quantidade de coincidências (não quero chamar-lhes milagres) entre a sua história e a história do século XX mundial, a história de Portugal, a da Polónia… há uma grande quantidade de fenómenos coincidentes com Fátima”.

Na mesma viagem de regresso a Roma, e segundo relata o professor, em resposta a uma jornalista portuguesa sobre o que irá dizer a Donald Trump, depois de ter vindo a Fátima, o Papa diz: “Fátima tem uma mensagem de paz. Do que vou falar daqui em diante, com quem quer que seja? Da paz. O assunto é a paz”.

O mais “escandaloso” será “o fenómeno que lança a novidade do terrível século XX”, e que aconteceu “precisamente em 1917”, com dois factos concretos: a 2 de Abril a quebra do isolacionismo americano e a entrada dos EUA na Primeira Guerra Mundial; e a 6 de Novembro a Revolução de Outubro (soviética). E entre estes “dois acontecimentos que mudaram para sempre o planeta”, dão-se as seis aparições em Fátima, nota o professor.

O cenário que se segue é dramático: dá-se a Grande Guerra, os loucos anos 20, a depressão dos anos 30 e a Segunda Guerra Mundial, a qual “é um fenómeno quase cinematográfico, primeiro só com derrotas e depois só com vitórias”.

Sucede que em 1942, e coincidindo com a realização de três grandes batalhas determinantes e que “mudaram o curso do século XX” – a 4 de Junho a Batalha de Midway contra os japoneses, no Pacífico; a 23 de Outubro a investida britânica em El Alamein, numa batalha que marcou o início da derrota das forças do Eixo na África do Norte; e, a 19 de Novembro, o início da investida russa na batalha de Estalinegrado -, o Papa Pio XII faz pela primeira vez a consagração do mundo e da Rússia ao Imaculado Coração de Maria.

Numa mensagem radiofónica a 31 de Outubro de 1942, o Santo Padre consagrou à Santíssima Virgem Maria não somente a Igreja Católica mas toda a humanidade. Esta consagração é repetida, ao longo dos anos, por vários outros papas; e a Irmã Lúcia, em todos esses tempos, insiste que não foi feita como Nossa Senhora tinha pedido: “não está feita, porque falta a união com todos os bispos do mundo”, diz.

[quote_center]Na verdade, se queremos ser cristãos devemos ser Marianos – Francisco citando Paulo VI, em Fátima[/quote_center]

Até que a 25 de Março de 1984, depois de ter enviado uma carta a todos os bispos do mundo pedindo que fizessem a consagração com ele, e de ter pedido que a imagem da Virgem fosse a Roma, o Papa João Paulo II consumou a consagração do mundo e da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, de acordo com os desejos de Nossa Senhora, segundo confirmou a Irmã Lúcia. Um ano depois a 11 de Março de 1985 é eleito Gorbachev, que despoleta a reforma do regime comunista, levando à rápida dissolução de todo o bloco soviético.

Mas, como conclui o professor, “tudo isto é o passado”, e o que temos de questionar agora é “será que já acabou?”. De acordo com “o documento mais importante sobre Fátima”, “A Mensagem de Fátima”, da Congregação para a Doutrina da Fé (publicado pelo cardeal Ratzinger em 2000 a pedido do Papa João Paulo II, com a revelação do terceiro segredo), os acontecimentos sobre os quais trata a mensagem de Fátima “parecem pertencer já ao passado”. Na publicação que faz a análise teológica desta mensagem, assim defendem o Cardeal Angelo Sodano (decano do Colégio dos Cardeais do Vaticano) e o Cardeal Ratzinger, e, no prefácio, diz o Cardeal Bertoni (antigo secretário de Estado do Vaticano): “Fatima é, sem dúvida, a mais profética das aparições modernas”.

Porém, a verdade é que o fenómeno continua presente. Pois “basta olharmos à volta para vermos como esse problema, com outras questões, melhores ou piores, não está resolvido”. Os homens continuam a ofender a Deus, mas “Ele já está muito ofendido”, como anunciou a Senhora quando disse “direi quem Sou e o que Quero”.

Para o professor, “os avisos que a Senhora nos fez em 1917 são hoje tão ou mais actuais”. E exemplo disso são as questões relacionadas com o matrimónio homossexual, a despenalização do aborto e a discussão da eutanásia em Portugal, sobre as quais o Papa Francisco, questionado no mesmo voo de regresso a Roma, responde isto: “creio que é um problema político. A consciência católica não é uma consciência que pertença totalmente à Igreja. Creio que é falta de formação e também de cultura”.

A Fátima onde “temos Mãe”

João César das Neves, Professor catedrático da Universidade Católica Portuguesa e autor do livro “O Século de Fátima”

“A possibilidade que este mundo acabe reduzido a cinzas, num mar de chamas, hoje já não parece de forma alguma pura fantasia”, avisou o cardeal Ratzinger. O perigo é eminente. E, perante o mesmo, “a Senhora não veio cá só fazer um aviso: veio apresentar a solução para estes problemas. E a solução são os três pilares da mensagem de Fátima: oração (sobretudo o terço e os cinco sábados), penitência pelos pobres pecadores e consagração a Deus, em especial da Rússia, mas de todos nós”, discorre João César das Neves.

O Papa abordou este tema em Fátima, primeiro na Bênção das Velas – “sempre que rezamos o Terço […] o Evangelho retoma o seu caminho na vida de cada um, das famílias, dos povos e do mundo”–, e depois na homilia de 13 de Maio, onde cita as “Memórias” de Jacinta – “não vês tanta estrada, tantos caminhos e campos cheios de gente, a chorar com fome, e sem nada para comer? E o Santo Padre […] a rezar? E tanta gente a rezar com ele?”.

E agradeceu aos fiéis por rezarem com ele em Fátima: “irmãos e irmãs, obrigado por me acompanharem”. Ora, e como comenta o professor, “todos nós sabemos que o padre Bergoglio, arcebispo Bergoglio e agora Papa, passa a vida a dizer para rezarem por ele. Desta vez fez o contrário”. Em Fátima, como disse no Regina Cœli, já em Roma, “mergulhei na oração do santo povo fiel. Oração que lá corre há cem anos, como um rio, para implorar a protecção materna de Maria sobre o mundo inteiro”.

Como se sabe, “muita gente se impressionou com o silêncio do papa em Fátima, ao rezar, e o povo todo esteve calado com ele”. Sucede que “o Papa também ficou impressionado com isso”, como conclui César das Neves. Este primeiro pilar da mensagem de Fátima – a oração – “perpassou todos os principais momentos do papa em Fátima”.

[quote_center]O segundo século de Fátima vai ser o da Irmã Lúcia[/quote_center]

Curiosamente, o segundo e o terceiro pilares – penitência e consagração – “andaram sempre a par, como é tradicional na sua intervenção”. Na Saudação aos Doentes, que decorreu no final da Eucaristia em que canonizou Francisco e Jacinta, o papa, “muito contundente, põe-nos em cima dos ombros esta pergunta”: ”hoje a Virgem Maria repete a todos nós a pergunta que fez há cem anos aos Pastorinhos: quereis oferecer-vos a Deus?” A resposta “sim, queremos, dá-nos a possibilidade de entender e imitar as suas vidas”, remata.

Para o professor, “a penitência é central em Fátima”. E logo na segunda aparição do Anjo explicita. Mas, questiona, “como é possível que os nossos sacrifícios salvem os pecadores de ir para o inferno? Não faço ideia. Mas Nossa Senhora disse que sim e portanto é para fazermos. Queremos oferecer-nos a Deus, ou não?”.

Sobre esses sacrifícios reflecte também Francisco em Fátima, principalmente na saudação final: “queridos doentes, vivei a vossa vida como um dom”. Essa intervenção termina com “uma frase espectacular”, própria do papa Francisco: “não tenhais vergonha de ser um tesouro precioso da Igreja”. E nesta frase reside a mensagem de Fátima, conclui César das Neves. Os “sofrimentos que o Senhor nos quer mandar, abraçados com esta atitude que o papa descreve, são um tesouro para a Igreja, são a salvação dos nossos pecados, são aquilo que nos impede de cair no inferno”.

São a consagração, cujo resultado Francisco, na sua visita a Fátima, deduz em dois temas que são típicos da sua evangelização, desde o princípio, explica ainda: o primeiro é a ternura, citada na Bênção das Velas a partir da primeira Exortação Apostólica, “Evangellii Gaudium”, que “todos consideram o texto programático do pontificado”. A ternura “é a primeira missão que nos entrega”, sublinha.

[quote_center]Entre a entrada dos EUA na Primeira Guerra e a Revolução de Outubro dão-se as seis aparições em Fátima[/quote_center]

O segundo tema da consagração é a esperança, invocada na homilia do dia 13, como em tantas outras ocasiões em que Francisco lhe dá atenção. O nosso papel “é sempre de esperança”, – e “no estado [em que se encontra] a economia portuguesa é o que devemos fazer”, ironiza o também economista -, e a esperança é precisa sobretudo nos sofrimentos: “quando passamos através de alguma cruz, Ele já passou antes” (diz Francisco na homilia). Ou seja, recordemo-nos que cada vez que temos uma contrariedade, “não fomos nós que nos dignámos sofrer, foi Ele que veio ter connosco”, exorta César das Neves.

Portanto, a compreensão da mensagem de Fátima à luz dos extraordinários ensinamentos do Papa Francisco implica “sermos em todo o lado a Igreja missionária, acolhedora, livre, fiel, pobre de meios, rica no amor”, conclui o professor.

Sobre o que de mais importante o Papa Francisco veio dizer a Fátima, João César das Neves regressa ao ponto de partida da sua reflexão, ao anunciar que o grito, todos sabemos qual foi: “queridos peregrinos, temos Mãe”.

[quote_center]Do que vou falar daqui em diante, com quem quer que seja? Da paz. O assunto é a paz – Papa Francisco em Fátima[/quote_center]

E com esta frase que ecoou em Portugal e no mundo, o Papa deixou claro o que o professor começou por ressalvar. É que antes de mais, e desde sempre, a importância de Fátima começa na importância de Nossa Senhora. “Temos Mãe! Agarrados a Ela como filhos, vivamos da esperança que assenta em Jesus. […] Como uma âncora, fundeemos a nossa esperança nessa humanidade colocada nos Céus”. E “seja esta esperança a alavanca da vida”.

A luz que milhões de peregrinos procuram em Fátima acende-se com a presença da Virgem Maria. As pessoas acorrem a Fátima porque “no meio dos sarilhos horríveis do mundo, a Senhora veio cá abaixo. Temos mãe”.

Jornalista