POR HELENA OLIVEIRA
Em 2008, o famoso professor de Psicologia e Economia Comportamental, Dan Ariely, autor de bestsellers como Predictably Irrational, The Upside of Irrationality ou The Honest Truth about Dishonesty e um dos oradores que figura no top dasTed Talks com maior número de visualizações, escreveu um paper, o qual iria dar forma a um livro e a um filme – (Dis)Honesty: The Truth About Lies e até a um Projecto. O paper e subsequentes trabalhos sobre o tema tinham como premissa principal a ideia de que as pessoas pensam sempre em si mesmas como honestas. Mas e como sabemos, a desonestidade geralmente é paga – por vezes muito bem paga – e a verdade é que a maioria das pessoas vive em permanente tensão para resolver esta dualidade.
A pesquisa em causa demonstrou que as pessoas, no geral, se comportam com desonestidade suficiente para dela lucrarem mas, e ao mesmo tempo, com honestidade suficiente também para se iludirem a si mesmas face à integridade que têm ou julgam ter. Ou seja, um “pedacinho” de desonestidade dá um “gostinho” de lucro sem estragar a visão positiva do nosso “eu”. Ariely e a sua equipa demonstraram também neste estudo que existem dois mecanismo que permitem esta “manutenção do conceito do eu”: uma desatenção às normas morais e uma categorização “maleável” do que é considerado como honesto ou desonesto.
Quase dez anos mais tarde, Heather Mann, investigadora na área do comportamento e empreendedora social, em conjunto com Ximena Garcia-Rada estudante de doutoramento em Harvard, publicaram recentemente um outro estudo, no qual Arely também participou, e que visa aferir não a diferença existente de normas para comportamentos desonestos face a diferentes sociedades (que é objecto de estudo comum) mas se esta variação está relacionada com outras diferenças que surgem como tendências principais no comportamento dos indivíduos face à desonestidade. E, para já a notícia é que Portugal foi um dos cinco países escolhidos para a realização desta pesquisa.
As autoras, e os restantes membros da equipa, compararam a desonestidade individual tendo como universo de análise 10 amostras de participantes de cinco países nos quais o nível de corrupção e valores culturais apresentam distinções. Em cada um dos países em causa, foi administrada uma tarefa simples de fazer rolar um dado a estudantes universitários e a clientes “normais” de cafés. Um grupo separado pertencente a cada um dos países em causa previu que a desonestidade iria variar entre os vários países, demonstrando ideias preconcebidas face à desonestidade do seu próprio pais. Mas contrariamente às previsões provenientes das amostras independentes, a desonestidade observada mostrou ter limites na sua magnitude e similaridades entre os países. Adicionalmente, de acordo com um artigo assinado pelas autoras responsáveis, as conclusões do estudo apontam para a inexistência de relações significativas entre a desonestidade e a tarefa atribuída aos participantes dos vários países, nem indicadores macro que o comprovem, incluindo níveis de corrupção e valores culturais. Ou, e em suma, o que sugere o estudo é que a desonestidade é um fenómeno “global”, ou seja, que os indivíduos são, similarmente desonestos no seu âmago.
Mas atentemos a mais detalhes.
Os cinzentos da nossa moralidade
Enquanto crescemos, é-nos ensinado a distinguir entre o bem e o mal, entre o que está certo e o que está errado. Como acontece com outros valores, vamos interiorizando todos estes conceitos e, se tudo der “certo”, aprendemos a ter uma resposta adequada quando os nossos valores morais são desafiados. Mas, e como alertam as autoras, se ao princípio tudo parece ser uma questão de preto e branco, à medida que vamos avançado, e que a vida vai passando por nós, cedo aprendemos que são muito diferentes as tonalidades de cinzento que o mundo nos apresenta. E, como sabemos, geralmente os comportamentos desonestos vêm acompanhados de recompensas e “até” as pessoas “boas” quebram regras. Por vezes, e independentemente da definição de “gravidade”, esta quebra de regras não é assim tão prejudicial: quem nunca olhou por cima do ombro do colega vizinho para copiar num teste ou quem nunca fez alguns malabarismos nas declarações das finanças para poupar um pouco em impostos?
Na verdade, são muitos os investigadores que têm vindo a demonstrar – não sendo difícil nós próprios termos acesso a essa realidade – que as pessoas enganam, roubam, mentem ou ludibriam para ganhar recompensas externas, como dinheiro – mas com o “cuidado” suficiente para que possam preservar a “boa imagem moral” perante si mesmas, tal como enunciado no estudo The theory of self-concept maintenance já anteriormente mencionado.
E foi com base nesta ideia que as autoras, em conjunto com Dan Ariely, formularam a seguinte hipótese: até que ponto existe uma tendência inerente a agir de forma desonesta moldada pelo contexto cultural em que vivemos? Dado que existem também vários estudos que comprovam variações, por países, no que respeita aos seus níveis de corrupção, valores culturais e normas de desonestidade em particular, e de que é exemplo o plágio de trabalhos universitários, as autoras ficaram interessadas em aferir o grau de acordo com o qual essas diferenças culturais poderiam estar relacionadas com as tendências subjacentes aos indivíduos para praticar actos desonestos. Ou pegando na sua questão de partida: entre diferentes países, quão consistente é a tendência para comportamentos (pelo menos) ligeiramente desonestos?
Assim, e em conjunto com lars Hornuf, Juan Tafurt e o já mencionado Ariely, as autoras levaram a cabo um estudo intercultural que envolveu a recolha de dados de mais de dois mil indivíduos em cinco países: China, Colômbia, Alemanha, Portugal e Estados Unidos
Apesar de todos estes países serem modernos e com sociedades de larga escala – ou pelo menos assim são considerados – obviamente que todos eles registam diferenças ao nível geográfico, de corrupção e em termos de valores culturais. Em cada um dos países, as investigadoras tiveram em linha de conta duas amostras distintas: estudantes de universidades públicas e público em geral que frequenta cafés, o que lhes permitiu comparar a desonestidade em ambas as amostras e entre o universo de cidadãos analisado nos vários países.
Com base numa simples experiência de lançar dados a ideia era criar um dilema entre seguir as regras ou ganhar mais dinheiro fazendo batota e com ajuda de um simples iPad, a tarefa envolvia “fazer rolar” um dado virtual 20 vezes seguidas. Em cada uma das vezes, os participantes foram instruídos para seleccionarem mentalmente um lado do mesmo – o de cima ou o de baixo – antes de o fazerem rolar e recordar a sua escolha. Depois de o fazerem, viam o resultado do dado (o número de pontos da parte de cima e da parte de baixo), sendo depois questionados sobre qual o lado que tinham escolhido previamente. Os participantes ganhavam 10 cêntimos por cada ponto na face “reportada”, como forma de os incentivar a “declarar” como certa que tivesse mais pontos. E aqui eram confrontados com a decisão de reportarem honestamente qual lhes tinha realmente calhado – e o número de pontos – ou de mentirem para ganharem mais dinheiro. As autoras chamam a atenção para o facto de não ser possível distinguir a desonestidade do factor sorte, o que implica que a decisão sobre fazer batota nunca ser revelada. Todavia, quando os resultado são agregados de acordo com as 20 tentativas para cada participante e entre todos os participantes de cada amostra, a proporção média das jogadas favoráveis numa amostra pode ser comparada com a sorte (50%) sendo possível, desta forma, avaliar a magnitude da desonestidade.
Adicionalmente, foi conduzido do um estudo de “previsibilidade” com amostras separadas dos mesmos países analisados, tendo-se pedido para se estimarem os níveis de desonestidade no próprio país de origem e nos demais. A ideia era avaliar as duas seguintes hipóteses: 1) as previsões dos níveis de desonestidade na tarefa experimental e se esta apresentaria variações entre os países analisados e, 2) e qual a variação real de comportamento desonesto nas diferentes amostras.
Antes de revelarem os resultados, as autoras pedem aos leitores que tentem adivinhar as seguintes questões: Qual a proporção de jogadas que as pessoas reportaram como sendo mais favoráveis? Até que ponto se pensa que os níveis de desonestidade variam entre as amostras de participantes dos diferentes países? E qual dos países – China, Colômbia, Alemanha, Portugal e os Estados Unidos –alberga os participantes mais desonestos?
Universitários portugueses foram os que menos batota fizeram
Inquirida a amostra de participantes dos cinco países em análise que foram convidados a prever os níveis de desonestidade, as respostas foram os seguintes: quando questionados sobre os resultados que esperavam ser obtidos na tarefa de rolar os dados, foram previstos níveis moderados de desonestidade, estimando-se que os participantes iriam seleccionar os resultados mais favoráveis em 70% das jogadas; os inquiridos previram igualmente que a desonestidade iria variar de acordo com os países, sendo que as suas estimativas tiveram como base a percepção da corrupção e dos valores culturais dos mesmos; os participantes demonstraram, também, um preconceito claro contra os seus próprios concidadãos, ou seja,”apostando” que os cidadãos dos seus próprios países seriam os mais desonestos (sem excepção).
Todavia, e depois de analisados os resultados, as conclusões não foram equivalentes.
A desonestidade prevaleceu, mas num âmbito limitado. A proporção média de “faces mais favoráveis” reportada na amostra total foi de 58% e as médias para todas as 10 amostras em causa ficaram significativamente abaixo dos 50% – a percentagem estimada se os participantes fossem completamente honestos. Apenas alguns dos participantes reportaram maiores ganhos na maioria das jogadas, indicando que fazer batota teve como base o inflacionamento, não muito significativo, dos resultados reportados pelos participantes.
Por seu turno, os indivíduos que participaram no estudo nos diferentes países – e comparando as amostras de estudantes versus a do público em geral apresentaram resultados similares na sua tendência para se comportarem de forma desonesta. Quando avaliadas as dez amostras, a proporção média reportada de ganhos substanciais manteve-se entre os 53% e os 63%.
Um dado interessante diz respeito ao facto de as diferenças entre os estudantes e o público em geral serem mais representativas do que entre os vários países analisados. Em todos os países – e com uma excepção honrosa para Portugal – os estudantes testados nas universidades comportaram-se de forma mais significativamente desonesta do que os cidadãos testado nos cafés.
Para já, duas grandes conclusões, o estudo demonstrou existir uma tendência para fazer batota, mas limitada, nos cinco países, e a amostra das “estimativas”esperava níveis de desonestidade mais vincados do que os que realmente se comprovaram.
Mas e então por que motivo a batota reinou mais entre os estudantes do que nos seus concidadãos? As autoras oferecem algumas explicações possíveis, apesar de não serem muito convincentes: o facto de serem mais jovens, com menor poder de compra e com níveis académicos superiores e de terem sido testados num ambiente significativamente diferente – laboratórios das universidades – face aos que o foram em mesas de café.
De acordo com as autoras, as notícias e os media populares tendem a propagar a visão da “maçã podre” , ou seja, a de que existem pessoas boas e pessoas más, e que estas últimas são as que optam por comportamentos errados. Assim, quando lemos histórias de burlas, fraude ou adultério, é-nos muito fácil abanar com a cabeça, criticar o estado geral das coisas e saborear o nosso status de “boa maçã”-
Mas, uma outra visão da moralidade, interiorizada na economia clássica, é a do modelo de “actor racional”. De acordo com este conceito, apenas somos honestos para evitar uma potencial punição. E a visão de “actor racional” remonta muitas vezes a Adam Smith, um dos “progenitores” da economia tradicional, e com base no seu livro “A Riqueza das Nações”, contradizendo, contudo, a sua obra anterior a esta “A Teoria dos Sentimentos Morais”, no qual desenvolvia a noção de que não somos apenas egoístas e calculistas.
Para as autoras, a sua investigação sugere uma alternativa a estas duas noções. Com base na teoria da manutenção do conceito do eu, os resultados a que chegaram sugerem a tendência de “fazer batota até um certo limite”, comum aos cinco países auscultados e considerada robusta nos mesmos. Um pouco por todo o mundo, parece que a generalidade das pessoas tem por norma cumprir regras – mas que consegue facilmente “torneá-las” desde que tal não implique mudar a visão que têm de si mesmas.
A verdade sobre a mentira, o filme e a realidade
“A verdade é que todos temos o potencial para sermos desonestos”. Quem o afirma é Dan Ariely, professor da Duke Univerity, sendo esta a ideia provocadora que corre no documentário “(Dis)Honesty — The Truth About Lies,”, estreado em 2015 e do qual o especialista em psicologia comportamental é produtor e também “actor”
Em traços gerais, o documentário entrelaça histórias pessoais de pessoas anónimas e de figuras públicas, opiniões de especialistas na área da investigação comportamental e material cinematográfico de arquivo para revelar por que motivo as pessoas mentem, como o fazem e quais as consequências possíveis destes actos desonestos. Mas o que rapidamente se torna claro é que é fácil passar de uma pequena “mentirinha” ao negro mundo da informação privilegiada, por exemplo, com efeitos obviamente mais graves.
Na verdade, e para além da longa pesquisa que Ariely faz há muito tempo sobre o tema, a verdade é que o filme foi, em grande parte, inspirado pelas graves perversões da crise hipotecária de 2008. Optando por evitar extremos – como o caso Madoff, por exemplo -, Ariely e a sua equipa preferiram antes narrar histórias de “pessoas como nós”, e não propriamente focando o documentário em “psicopatas ou em gente desesperada”.
O filme inclui, por exemplo, entrevistas com Marilee Jones, a antiga responsável pelas admissões do prestigiado Massachusetts Institute of Technology (MIT), a qual mentiu sobre as suas credenciais académicas, com um antigo ciclista profissional, Joe Papp, que admitiu a sua culpa na distribuição e venda de drogas que aumentam a performance desportiva ou com Kelly Williams Boler, um mãe do Ohio que mentiu sobre a sua morada para que as filhas pudessem frequentas uma escola melhor noutro distrito (em Portugal, esta mentira é tão frequente que nem sequer entra na categoria dos “actos ligeiramente desonestos”, sendo um bom exemplo da diferença de “valores culturais” acima mencionados).
Enquanto “guia” no filme, o especialista em psicologia e economia comportamental Ariely, afirma: “quando pensamos no que estas pessoas acabaram por fazer [no fim], acreditamos piamente que nunca conseguiríamos fazer algo similar”. Mas, e acrescenta, “quando se pensa no início da história em causa, facilmente concluímos que ‘até provavelmente poderíamos fazer o mesmo”. O que Dan Ariely quer dizer é que a mentira é uma ladeira inclinada, uma pista escorregadia e que é muito fácil, a partir de um “pequeno” acto desonesto sermos tentados a subir na escalada da gravidade dos mesmos.
Num artigo publicado na revista Variety, o crítico de cinema Dennis Harvey escreve: “qualquer período é uma boa altura para a mentira mas, e no presente, no actual espectro da moral ou da política, todos parecem concordar que estamos a viver num período de ‘renascimento da treta’”. Ou, e como demonstra o documentário, “as várias distorções recentes da verdade, levaram-nos, entre outras coisas, à guerra, deram cabo da economia e permitiram uma depredação potencialmente catastrófica do planeta, a qual continuará, de grosso modo, a não ser verificada”. E ao que parece, dois anos passados só parecem ter aumentado as muitas verdades que escondem as mentiras.
Veja o trailer e, se possível, todo o documentário disponível no Netflix.
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Editora Executiva