POR MÁRIA POMBO
“As melhores coisas da vida acontecem quando menos se espera”. Esta é uma frase sobejamente conhecida e reproduzida, que pode ser utilizada em diversas ocasiões e permite dar algum conforto e esperança quando algum ente querido está cabisbaixo e nos falta a imaginação. E a mesma é perfeita para introduzir a importância das actividades e brincadeiras não estruturadas e não organizadas por adultos, nos tempos livres das crianças. Ou, por outras palavras, esta ideia reflecte bem o modo como os imprevistos são importantes para desenvolver, nas crianças, competências como a criatividade, a capacidade de resolução de problemas e a resiliência.
E esta importância é ainda maior se pensarmos que actualmente o calendário escolar das crianças não termina quando acabam as aulas e que existe uma vasta lista de actividades onde estas participam (como desporto, dança, música e outras tantas), e também se reflectirmos nas facilidades que a tecnologia oferece em termos de ocupação de tempos livres, e nas múltiplas respostas que o Google dá a uma qualquer questão, permitindo que as crianças (e os adultos) não percam muito tempo a pensar nas respostas nem a procurar soluções por si próprias.
E o “Tempo para brincar” é precisamente o título (e o tema) de mais um estudo da Gallup, divulgado recentemente. “Como é que os seus filhos ocupam os seus tempos livres?” foi uma das perguntas realizadas pela reconhecida organização de pesquisa e análise em conjunto com a Melissa & Doug (uma empresa que produz brinquedos), entre Abril e Março deste ano, a mais de 1200 pais e cuidadores de crianças até aos 10 anos e residentes nos 50 estados dos EUA. A ideia foi perceber como é que as crianças ocupam actualmente o tempo livre, em que tipo de actividades participam, quem as organiza, quais são os locais mais comuns para a sua prática e o que é que os pais valorizam e pretendem desenvolver através das mesmas.
Para os investigadores, não existem dúvidas de que as crianças beneficiam, em muito, do tempo que passam a brincar por elas próprias, sem a intervenção de adultos, sem recurso a actividades organizadas e sem a utilização aparelhos digitais. Como já foi referido, a capacidade de resolver problemas, a cooperação, a criatividade e a resiliência são algumas das mais-valias desta prática, dentro e fora de casa. Complementarmente, e de acordo com a análise, tem vindo a crescer o número de especialistas que revelam que o tempo passado em frente aos diversos ecrãs é prejudicial ao saudável crescimento dos mais novos. O atraso no desenvolvimento da fala, uma maior dificuldade em expressar e entender as emoções, a diminuição da criatividade, problemas de peso e distúrbios de sono são as consequências negativas mais apontadas como decorrentes do excesso de tempo em passado com a utilização de aparelhos electrónicos.
Para os pais, a tecnologia pode ser prejudicial, mas é melhor que “o tédio”
Embora se queixem de que os seus filhos passam a maior parte do tempo livre em frente a dispositivos tecnológicos, muitos dos pais concordam que os mesmos são prejudiciais ao crescimento das crianças (sendo que, lá bem no fundo, até lhes dá jeito). Contudo, estes mesmos pais não reconhecem a importância e os benefícios de deixar que os miúdos se entretenham sozinhos, que se aborreçam e que encontrem, por eles próprios, formas de se divertirem sem o auxílio dos adultos e sem recurso a estes aparelhos. Ou seja, muito do tempo livre das crianças é passado em actividades organizadas, e nem os pais nem os filhos dão prioridade a experiências desenvolvidas livremente pelas próprias crianças, estando estas no fim da lista das “actividades preferidas”.
Por esse motivo, os autores do estudo revelam que muitas crianças podem não estar a desenvolver algumas das mais importantes capacidades que lhes permitem crescer, e desenvolver-se de forma saudável e alcançar o “sucesso” e a realização pessoal. É que, embora os pais reconheçam que actividades feitas pelas crianças, mesmo dentro de casa, promovem a criatividade e a resolução de problemas, estes consideram que as qualidades mencionadas não são tão importantes para o desenvolvimento dos mais novos como aquelas que os desportos organizados e experiências estruturadas oferecem, desvalorizando ainda o facto de que os jogos liderados e inventados pelos mais novos os ajudam a desenvolver competências sociais e pessoais (como a autoconfiança e a resiliência).
Ao todo, 60% dos pais afirmam que gostariam que os filhos passassem menos tempo a ver televisão ou a utilizar aparelhos tecnológicos, sendo as actividades ao ar livre as preferidas dos inquiridos. Contudo, o mau tempo, as preocupações com a segurança, a falta de oportunidades e experiências, e também o facto de os mais novos preferirem as actividades que os telemóveis e tablets oferecem, assumem-se como as principais barreiras identificadas e que levam a que a maior parte do tempo seja passado dentro de quatro paredes. Na verdade, e de modo preocupante, a utilização de aparelhos tecnológicos por parte de crianças tem vindo a alcançar níveis que estão bastante acima dos recomendados pela Academia Americana de Pediatria (AAP), como revelam os autores do estudo em análise.
O facto de os pais não concordarem com o tempo que as crianças passam em frente a ecrãs variados leva-os a sentirem-se “obrigados” a preencher o tempo livre dos seus filhos. Na realidade, 21% dos inquiridos concordam que o sentimento de tédio faz bem aos menores, e um terço afirma que, nesses momentos em que os seus filhos se sentem aborrecidos, a primeira estratégia é incentivá-los a descobrir coisas por si próprios. Esta conclusão vai ao encontro de uma outra, que está relacionada com o facto de os pais se preocuparem com o demasiado tempo livre que as crianças possam ter.
Pais desvalorizam os benefícios das actividades desestruturadas
Da análise realizada pela Gallup e pela Melissa & Doug, que resultou numa crítica aos pais e cuidadores da actualidade e numa chamada de atenção à sociedade, surgiram seis grandes conclusões.
O facto de os pais não valorizarem as brincadeiras desenvolvidas e praticadas pelas crianças, dentro de casa, é a primeira. Neste sentido, e no que respeita às actividades realizadas pelas crianças e sem o auxílio dos adultos, 62% dos pais afirmam preferir actividades no exterior, 34% optam por actividades no interior em que a criança brinque com outras crianças, e 18% escolhem actividades no interior em que a criança brinca sozinha. Todas as opções são “screen-free”.
No geral, a mesma percentagem de adultos prefere que os seus filhos ocupem os tempos livres com actividades fora de casa. Nesta parte da análise, é interessante observar as preferências dos adultos e a percepção que estes têm sobre as predilecções dos seus filhos. Vejamos: as actividades feitas entre adultos e crianças reúnem 37% das escolhas dos mais velhos e 31% da ideia que estes têm sobre as preferências dos mais novos. Contudo, 36% dos pais querem que os seus filhos participem em desportos organizados, e 35% preferem que eles façam parte de actividades estruturadas – e estas opiniões parecem não ser partilhadas pelos miúdos, já que, no entender dos adultos, apenas 20% destes escolhem fazer desporto e 14% optam por actividades estruturadas. Por seu turno, apenas 6% dos pais têm preferência pelos jogos em aparelhos electrónicos e outros 6% elegem a televisão e outros media, ao passo que 45% das crianças optam pelos dispositivos electrónicos e 43% não dispensam a visualização de filmes e séries no pequeno ecrã. A preferência pelas actividades dentro de casa, com outras crianças e sem aparelhos electrónicos, variam entre os 26% para as crianças e os 34% para os adultos.
Os pais minimizam os benefícios das actividades desestruturadas. De acordo com aquela que é a segunda conclusão do estudo, os pais afirmam que deixar as crianças brincar por elas próprias é uma tarefa que promove a criatividade e a resolução de problemas mas, e ao contrário do que se poderia pensar, não consideram que estas duas características sejam importantes para o desenvolvimento dos seus filhos. Mesmo que estas sejam consideradas como as mais benéficas, numa lista de 12, que os pais associam às actividades que dispensam monitores e ecrãs. Complementarmente, quatro em cada dez pais consideram que actividades “screen-free” promovem a autoconfiança, 33% indicam a resiliência e apenas 22% afirmam que estas promovem a disciplina – e estas características, que poucos pais mencionam, bem como as competências sociais, são precisamente aquelas que, de acordo com os especialistas, os miúdos podem desenvolver mais facilmente através de jogos inventados por si mesmos.
O que parece não bater certo neste “puzzle” é que a autoconfiança (com 60%) e as competências sociais (com 53%) são apontadas, pelos inquiridos, como as principais qualidades que pretendem que os seus filhos desenvolvam. Igualmente preocupante é o facto de apenas 31% dos pais elegerem a resolução de problemas e 14% escolherem a resiliência como características importantes que os seus filhos devem adquirir ou desenvolver. Também de acordo com os pais, as actividades estruturadas e os desportos organizados são essenciais para que as crianças desenvolvam as capacidades mais valorizadas pelos próprios, desvalorizando as actividades “livres”.
Pais preocupados, mas nem tanto…
A terceira conclusão do estudo diz respeito ao facto de mais de metade dos pais valorizar as actividades a “céu aberto”, mas muitos deles apontarem diversas barreiras para que as mesmas possam ser executadas. O mau tempo, a insegurança, a inexistência de amigos disponíveis para brincar nas redondezas, o facto de as crianças preferirem estar dentro de casa e os calendários muito preenchidos com outras actividades são as principais razões que os inquiridos apontam para não promoverem mais actividades ao ar livre com os seus filhos.
O facto de as crianças escolherem invariavelmente os aparelhos electrónicos (incluindo a televisão), quando estão em casa, é a quarta conclusão da análise da Gallup. Os pais estimam que estas passam, em média, cerca de 19 horas por semana a ver televisão ou a utilizar dispositivos tecnológicos, ao passo que não chega a 15 horas o tempo que passam sem ecrãs. As crianças entre os nove e os dez anos são as mais problemáticas e aquelas que mais ocupam o seu tempo com este tipo de dispositivos.
Embora as actividades que incluem ecrãs de variados tipos estejam no fundo das preferências dos pais, estes não se esforçam o suficiente para levar os filhos a escolher outras opções. O facto de os pais terem em conta que os filhos preferem a tecnologia em detrimento de outras actividades é a principal barreira apontada pelos próprios em termos de actividades que não envolvam monitores. A ideia de que as crianças precisam de ajuda para descobrirem coisas para fazer, a preferência das crianças por jogos ao ar livre, os horários muito preenchidos e a falta de espaço dentro de casa são os restantes motivos que levam os adultos a permitir que as crianças passem tanto tempo a utilizar aparelhos electrónicos.
Interessante é a quinta conclusão, a qual revela que os pais, particularmente de crianças mais novas, se sentem obrigados a preencher o tempo livre dos seus filhos. Para 21% dos inquiridos, é bom que as crianças se sintam aborrecidas. Nestas alturas, 33% revelam deixar que as crianças lidem com o tédio e procurem alguma coisa para fazer, e 27% preferem conversas com os filhos sobre possíveis actividades que possam desenvolver. Apenas 11% param o que estão a fazer para se dedicarem aos filhos e 4% permitem que estes vejam televisão ou utilizem equipamentos electrónicos (sendo que este último resultado parece “demasiado baixo”, tendo em conta os resultados acima apresentados sobre o tempo que as crianças passam junto destes aparelhos).
A última conclusão da análise da Gallup assume-se também como uma chamada de atenção para os pais, para as crianças e para os educadores um pouco por todo o mundo: as crianças estão a revelar sinais e comportamentos que resultam da falta de brincadeiras promovidas por si próprias. De acordo com o estudo, 66% dos inquiridos revelam que os seus filhos passam demasiado tempo a utilizar dispositivos tecnológicos. Complementarmente, os pais das crianças que passam mais de três horas diárias junto destes dispositivos começam a revelar preocupações relativamente ao nível de stress dos seus filhos, bem como no que respeita ao seu desempenho escolar e ao seu relacionamento com os outros. Este mesmo grupo de pais revela estar menos satisfeito com o espírito de equipa dos seus filhos, com a disciplina e com as competências socias que estes revelam (não) ter.
Por oposição, os pais dos miúdos que passam menos de três horas diárias a utilizar dispositivos tecnológicos revelam muito menos preocupações relativamente ao stress, ao desempenho escolar e às competências sociais dos seus filhos.
Pelos motivos apresentados, pode estar na hora de o leitor retirar, por instantes, os olhos dos seus filhos dos monitores e começar a abrir-lhes os horizontes através de actividades que puxem realmente pela sua imaginação, criatividade, perseverança e espírito de equipa. Dar às crianças a possibilidade de inventarem jogos, de improvisarem brinquedos, de se surpreenderem com os imprevistos e de encontrarem soluções para os pequenos problemas do seu dia-a-dia pode ser uma excelente forma de as educar, principalmente num mundo onde as respostas estão à distância de um clique. Para finalizar, os autores do estudo da Gallup lançam uma questão: “se a criatividade promove a inovação – uma competência fundamental para a economia da informação do século XXI – como é que os pais, as escolas e a sociedade cultivam criatividade nas crianças?”
Jornalista