POR MÁRIA POMBO
O tema da inovação social já não é, felizmente, uma novidade. Contudo, o mesmo causa ainda alguma estranheza a muitos cidadãos que consideram que os projectos e produtos que são criados neste âmbito devem ser gratuitos e não gerar lucro. Foi para desmistificar esta e outras questões que a iniciativa Portugal Inovação Social (PIS) e a Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) organizaram, no dia 10 do presente mês, um Workshop aberto à comunicação social, inteiramente dedicado a este tema. O mesmo serviu também para divulgar a conferência europeia “Novas Perspectivas para a Inovação Social”, organizada em conjunto pela Comissão Europeia e que terá lugar na FCG nos próximos dias 27 e 28 de Novembro.
De acordo com Filipe Almeida, a inovação social e a inovação tecnológica diferenciam-se pelos seguintes motivos: a primeira resolve problemas sociais e não tem como principal objectivo a obtenção de lucro; a segunda, pelo contrário, resolve problemas materiais, é promovida pelo sector privado e o lucro é o seu principal fim.
Complementarmente, o presidente da PIS referiu que é possível combater problemas sociais pelos meios tradicionais, através da criação de creches, lares de idosos, casas-abrigo para vítimas de violência, etc., os quais são financiados exclusivamente pelo Estado e são normalmente gratuitos para a população. Contudo, esta não é a única via: problemas como o desemprego, as barreiras culturais e linguísticas, a exclusão social de pessoas com incapacidade, e outros, “podem ser resolvidos através de iniciativas que contam com o apoio do sector público, privado e, acima de tudo, cooperativo e social”. Estas novas respostas – que dão origem à inovação social – são “diferentes das convencionais, eficazes no combate aos problemas sociais e eficientes na utilização de recursos”.
Actualmente, a estrutura de missão Portugal Inovação Social apoia 38 projectos, sendo que dez destes são financiadas pela FCG, que se assume como o principal investidor social em Portugal – e que, através do seu Programa de Desenvolvimento Humano, tem vindo a apoiar variadas iniciativas que têm como objectivo resolver algum problema social.
No evento, foram apresentados quatro destes projectos. O ColorADD, o EKUI e o SPEAK contam com apoio através das denominadas Parcerias para o Impacto. Neste sentido, a PIS financia 70% de cada projecto, sendo os restantes 30% da responsabilidade de investidores sociais.
Já o Bootcamp da Academia de Código (que é o quarto projecto) recebe apoio através dos Títulos de Impacto Social (sobre os quais o VER já escreveu). De acordo com este mecanismo de financiamento, o foco não é o projecto em si mas o seu resultado. Assim, existe um contrato entre o sector público, o privado (que financia o projecto, numa fase inicial) e a organização que promove o projecto, a qual se compromete a cumprir um determinado objectivo. E o sector público só reembolsa os investidores privados se o objectivo, inicialmente acordado, for cumprido, sendo o seu fracasso assumido pelo sector privado.
Dar cor ao mundo através de símbolos
O ColorADD é um sistema de identificação de cor e consiste em atribuir símbolos às cores, tornando-as perceptíveis para daltónicos. Na sua apresentação, Miguel Neiva, criador deste sistema único a nível mundial, distribuiu alguns óculos que imitam o daltonismo, para que os jornalistas presentes pudessem compreender o nível de exclusão que sente um em cada dez homens e uma em cada 200 mulheres.
O designer explicou que este é um problema que afecta mais de 350 milhões de pessoas em todo o mundo. Bullying nas escolas, postos de trabalho em risco, insegurança nas praias (por não se conseguir identificar a cor das bandeiras), dificuldades nos transportes públicos (devido à cor das linhas) e nos hospitais (já que também aqui os serviços e as prioridades estão identificados com cores) são alguns dos principais problemas que os daltónicos enfrentam.
Para combater este problema, a equipa do ColorADD decidiu atribuir um simples símbolo a cada cor primária, um ao preto e um ao branco. Explicou ainda que “da mesma forma que nos ensinam a misturar as cores, podemos misturar os símbolos”, reforçando que “cinco símbolos são suficientes”. Assim, tal como se consegue criar, por exemplo, o verde através da combinação do amarelo com o azul, é possível identificar um conjunto alargado de cores que, de outro modo e até então, eram completamente imperceptíveis para quem vive com esta característica.
O criador deste código referiu que “um juízo de valor é sempre negativo” e que, se o seu foco é a inclusão, este não é um projecto para daltónicos mas sim para todos os cidadãos, já que “a maneira mais fácil de chegar a 500 pessoas é levando o projecto a 10 milhões” . Miguel Neiva sublinhou também que “se quisesse ajudar, criava o ColorAID, mas isto não é uma ajuda, é pegar no básico, nos símbolos, e fazer o bem”.
Este código já existe em diversos objectos e a estratégia da organização passa por licenciá-lo às marcas, através de um pagamento, para que estas os possam utilizar nos seus produtos. O primeiro UNO com estes símbolos já foi lançado nos Estados Unidos, pela Mattel, a empresa que detém o jogo de cartas mais popular do mundo. Mas em Portugal o mesmo já pode ser visto, por exemplo, no Hospital de S. João e no Metro do Porto, em algumas bandeiras de praias, no semáforo nutricional de diversos produtos do Continente, e nos manuais escolares do 5º e 6º ano.
De acordo com Miguel Neiva, “o lucro não é um objectivo, mas é um meio para chegar a mais pessoas”, daí que a criação de receita seja importante. O único sector em que o ColorADD é gratuito é o da educação, e a regra é que este projecto não é exclusivo para ninguém, devendo ser acessível a todos.
Após quatro anos a testar o código em variados produtos, o objectivo agora é escalar. Em jeito de balanço, e indicando que o ColorADD também dá lucro às empresas, Miguel Neiva referiu que “na primeira semana em que a Matel lançou o UNO nos Estados Unidos, registou-se um milhão de partilhas de imagens nas redes sociais, e a empresa já registou 65% de aumento de vendas”. O jogo com o código chega à Europa em Novembro.
Com uma cartinha apenas se promove a aprendizagem
O segundo projecto apresentado foi o EKUI. Trata-se de uma linha de material didáctico que promove uma comunicação sem barreiras e, por isso, inclusiva. Através de cartas, de uma app ou de um kit que pode ser utilizado na sala de aula, é possível levar a alfabetização a todos. Cada carta apresenta uma letra e pressupõe que a sua aprendizagem seja feita através de quatro métodos: a escrita, o alfabeto fonético, a língua gestual e o braille, chegando assim a todas as crianças.
Esta ideia surgiu em 2003, quando Celmira Macedo, professora de educação especial, percebeu que as crianças aprendiam mais facilmente o alfabeto se associassem cada letra a um gesto. E este exercício é válido tanto para crianças surdas como para alunos que sofrem de dislexia, sendo também vantajoso para aqueles que não têm qualquer dificuldade de aprendizagem mas que, deste modo, melhoram os seus níveis de memória e aprendem mais facilmente.
Para Celmira Macedo não existem dúvidas: “se há uma criança com problemas de comunicação, 50 outras pessoas têm esse problema porque não a entendem”. De acordo com a criadora do EKUI, a escrita, o alfabeto fonético, a língua gestual permitem aprender mais depressa, e o braille “é fundamental porque educa para a diferença, permitindo que daqui a 20 anos as crianças sejam mais conscientes”.
É que as dificuldades de aprendizagem originam o abandono escolar precoce e impossibilitam muitas pessoas a aceder ao mercado de trabalho, aumentando o nível de pobreza. De acordo com a professora de educação especial, “preocupamo-nos com os telhados da educação mas esquecemo-nos dos seus alicerces, que são aprender a ler, a escrever e a brincar com sucesso”, condições que são essenciais para a inclusão social e para a construção de uma sociedade mais justa.
Celmira Macedo explicou também que, para as crianças que têm dificuldades de aprendizagem, “as soluções alternativas custam milhares de euros, ao passo que uma caixa do EKUI custa apenas 14 euros”, revelando que, através deste método, conhece já duas alunas que deixaram de precisar de ir às sessões de terapia da fala.
O modelo de negócio deste projecto é simples: cada kit vendido dá para produzir dois novos kits, sendo que um deles é para vender e o outro é para oferecer a famílias carenciadas. É esta a estratégia da criadora deste projecto para que o mesmo seja utilizado por todas as pessoas que necessitam de ajuda.
Os produtos EKUI foram lançados em 2015, contando actualmente com o apoio do Instituto Politécnico de Leiria e do Instituto Piaget de Almada. A ideia agora é crescer, chegando a mais pessoas e desenvolvendo novos produtos.
[su_youtube url=”https://youtu.be/4ymsMFMhUUc” width=”660″ height=”220″]Ligar pessoas e culturas, aprendendo e ensinando idiomas
Ligando pessoas de diferentes culturas através do desejo de aprender e ensinar uma língua, o SPEAK foi o terceiro projecto apresentado no evento. Quebrar a barreira linguística, os preconceitos em termos culturais e as dificuldades de criar uma rede de apoio em países estrangeiros são os principais objectivos deste programa. A ideia é que uma pessoa que, por vontade própria ou pelas circunstâncias da vida, chegue a um país que desconhece consiga relacionar-se com outras pessoas, de modo, por exemplo, a saber onde e como pode ter acesso a comida, encontrar uma casa ou quarto ou ir ao médico.
Para participar, cada pessoa tem que ter o desejo de aprender uma língua que desconheça e/ou ensinar um idioma que domine, não sendo necessariamente a sua língua materna. Para isso basta fazer o registo na plataforma e escolher as suas preferências. Esse registo dá acesso a diversos materiais de apoio, permitindo também o contacto com os restantes utilizadores. As aulas são em ambiente offline, e decorrem em cafés ou noutros lugares que, num determinado horário, não estão ocupados, de modo a que a sua utilização seja gratuita ou tenha o menor custo possível.
Em Portugal, a participação no projecto tem um custo de 29 euros e dá acesso à participação num curso de 18 horas e em todos os restantes eventos promovidos no âmbito do projecto. Contudo, e na sua apresentação, Mariana Brilhante, representante do projecto, sublinhou que “se alguém não puder pagar, pode participar do mesmo modo”, não devendo o dinheiro ser um impedimento aos que pretendem aprender uma língua.
O SPEAK marca presença em sete cidades portuguesas, estando também em Berlim (Alemanha) e em Turim (Itália). Ao todo, este projecto conta com 9500 participantes de 125 países, os quais aprendem e ensinam um total de 12 idiomas.
Este é um projecto que, estando aberto a todas as pessoas, tem vindo a promover essencialmente a integração de migrantes refugiados que chegam a Portugal, trabalhando em colaboração com o Alto Comissariado para as Migrações. O mesmo reuniu já um conjunto de investidores, como a FCG, o Fundo Bem Comum e a Fondazione CRT (italiana) e está a trabalhar para conseguir crescer mais ainda, chegando a mais países e a mais pessoas.
[su_youtube url=”https://www.youtube.com/watch?v=jAa32hsmwt8&feature=youtu.be” width=”660″ height=”220″]Uma academia que combate o desemprego
O Título de Impacto Social escolhido para participar no Workshop foi o Bootcamp da Academia de Código. Trata-se de um curso intensivo de linguagem de código (essencialmente Java), junto de desempregados que não conseguiram emprego nas suas áreas de formação, promovendo precisamente a empregabilidade. Durante 14 semanas, a ideia é que os participantes – que não têm que ter conhecimentos específicos de código, valorizando-se mais a sua motivação e capacidade de entrega – se dediquem inteiramente a esta área, de modo a poderem ocupar uma vaga numa das áreas, em Portugal, onde é enorme a carência de trabalhadores com as competências adequadas.
De acordo com o seu representante, João Magalhães, “nem todos os sectores estão a acompanhar a evolução tecnológica: a educação foi criada no século XIX, os professores são do século XX e os alunos já são do século XXI”. O Bootcamp da Academia de Código pretende precisamente dar aos alunos as ferramentas que as escolas “tradicionais” ainda não conseguem dar, garantindo uma taxa de empregabilidade na ordem dos 85% dos participantes.
Um dos problemas identificados foi que, tratando-se de desempregados, os participantes não podiam pagar o curso. Este facto originou a criação de um sistema de pagamento em mensalidades ou apenas depois de os alunos terem começado a trabalhar. Nos próximos três anos, e com o montante conseguido por via dos TIS, a Academia de Código compromete-se a formar cerca de 200 pessoas, promovendo o emprego, junto de parceiros, de 50% destas.
No evento, João Magalhães explicou ainda que “na Academia, o impacto para os desempregados é imediato porque arranjam emprego, mas daqui a poucos anos, estes continuam a trabalhar, pagam impostos e isso traduz-se num impacto a longo prazo para a sociedade”.
Em jeito de conclusão, no final do encontro, Filipe Almeida referiu que a iniciativa Portugal Inovação Social procura “novas respostas para problemas sociais persistentes”. Cada um ao sei jeito, os quatro projectos apresentados ajudam a diminuir a exclusão social de variados grupos: pessoas daltónicas, crianças com dificuldades de aprendizagem, migrantes e desempregados. E consciente de que este é um tema do qual ainda muitas pessoas desconfiam, o presidente da PIS garantiu que “o principal motivo de resistência é a ignorância”.
Leia também:
– a entrevista que Filipe Almeida deu ao VER sobre a iniciativa Portugal Inovação Social;
– a entrevista que Luís Jerónimo deu ao VER, no âmbito do Programa de Desenvolvimento Humano da Fundação Calouste Gulbenkian.
Jornalista