POR HELENA OLIVEIRA
Afinal, como devemos considerar os robots no trabalho do futuro que, entretanto, já é presente? Como inimigos que vão roubar os nossos meios de subsistência ou como “colegas” que funcionarão como úteis parceiros para os que, entre nós, estarão envolvidos em tarefas que exigem competências interpessoais, analíticas e criativas, mas também de natureza física e de destreza manual?
No que respeita ao futuro do trabalho, esta tem sido uma das questões mais debatidas por um conjunto diferente de actores, sendo que as análises já realizadas nem sempre pendem para o mesmo lado. O que já sabemos é que já são muitos os empregos na actualidade – e muitos mais no futuro próximo – que estão a exigir competências que combinam o know-how tecnológico, a resolução de problemas e o pensamento crítico, em conjunto com outro tipo de características mais socio comportamentais e de que são exemplo a perseverança, a colaboração e a empatia.
Ou e em suma, o que está realmente a sofrer mutações extraordinárias é a própria natureza do trabalho e foi com base nesta temática que o Banco Mundial lançou o seu habitual World Development Report para 2019. Como sabemos, ao longo do último século, as máquinas têm vindo a substituir os trabalhadores humanos em muitas tarefas. Mas, e no geral, a tecnologia tem criado mais postos de trabalhos do que aqueles que tem destruído. Por outro lado e como sabemos, o progresso tecnológico ajudou em grande escala ao aumento da esperança de vida, à disseminação de melhores cuidados de saúde e mais educação em todas as partes o mundo, sendo que uma esmagadora maioria de pessoas viu também os seus rendimentos a aumentar. Todavia e ainda assim, os medos relativamente ao facto de os robots poderem aumentar significativamente os níveis de desemprego continuam a pairar sobre as nossas cabeças e a dominar os debates sobre este futuro inevitável.
[quote_center]O que está realmente a sofrer mutações extraordinárias é a própria natureza do trabalho[/quote_center]
Intitulado The Changing Nature of Work, o relatório de desenvolvimento global do Banco Mundial responde a um conjunto de questões mais do que pertinentes, as quais conferem um panorama geral de resposta à pergunta mais temida sobre o que o futuro nos reserva. “A natureza do trabalho está a mudar…, mas de que maneira?” é o tema do primeiro capítulo; o impacto para as empresas decorrente do aumento da automação e da “digitização” é analisado no segundo; o capítulo 3 apresenta o novo Índice de Capital Humano, também elaborado pelo Banco Mundial e que visa dar orientações aos governos face às profundas alterações da procura de determinadas competências e dos investimentos que têm de ser feitos a este propósito; como preparar as pessoas que actualmente se encontram no mercado laboral face não só às disrupções que emergem do progresso tecnológico, mas também às suas oportunidades é o tema do capítulo 4; o tema seguinte analisa as diferentes e necessárias aprendizagens para tipos distintos de trabalhadores; à luz das alterações dos mercados laborais e da crescente informalidade, repensar os sistemas de protecção social é a proposta do capítulo 6 e, por último, o relatório tenta responder à pergunta que vale bem mais do que um milhão de dólares: como é que esta natureza em mutação do trabalho pode ser explorada para aumentar a inclusão social e a que custo?
Sem podermos analisar todos estes temas de fundo, existem algumas mensagens que podem ser reproduzidas, sendo que a primeira é formulada em tom optimista pela economista-chefe do Banco Mundial, Pinelopi Koujianou Goldberg, numa entrevista à Bloomberg: “o medo de que os robôs eliminem empregos não é, até agora, suportado pelas evidências”.
Novos modelos laborais e o valor crescente das competências cognitivas
As preocupações sobre o futuro do trabalho continuarão, com toda a certeza, a fazer parte dos temas mais discutidos em 2019. Nas economias avançadas, a ansiedade tem o seu foco no impacto que a tecnologia terá ao “varrer empregos”, existindo também uma visão generalizada de que a desigualdade crescente, composta pelo advento de economia “gig” (trabalhadores em regime de freelance), trará desafios gigantescos à sociedade. Mas e como já enunciado, estas preocupações parecem não ter fundamento. Pelo menos para já. É verdade que em algumas economias avançadas e em alguns países de rendimentos médios os trabalhos na área da produção estão a ser perdidos devido à automação, mas também é verdade que a tecnologia oferece oportunidades significativas para a criação de novos postos de trabalho, para aumentar a produtividade e para oferecer serviços públicos mais eficazes.
Por outro lado, o objectivo deste relatório é mais abrangente do que a mera estimativa da quantidade de empregos que a tecnologia pode criar ou destruir, focando-se antes nas alterações a que as próprias empresas estão votadas e de que forma é que as políticas públicas se deverão reorientar para terem capacidade de resposta a estes novos desafios.
[quote_center]No geral, a tecnologia tem criado mais postos de trabalhos do que aqueles que tem destruído[/quote_center]
Através da inovação, a tecnologia gera também novos sectores e novas tarefas. E comparativamente a outras vagas de inovação tecnológica anteriores, algumas características da actual onda de progresso tecnológico são absolutamente notáveis. A tecnologia digital permite às empresas inovarem e aumentarem a sua escala de forma célere, desafiando os padrões de produção tradicionais e esbatendo as fronteiras das empresas. Adicionalmente, novos modelos de negócio – em particular as plataformas digitais – evoluem rapidamente, passando de meras start-ups a gigantes globais, muitas das vezes com poucos empregados e activos tangíveis.
Contudo, esta nova organização industrial coloca questões preocupantes relacionadas com os campos da privacidade, da competitividade e dos sistemas de impostos, ao mesmo tempo que a ascensão dos mercados-plataforma permite que os impactos da tecnologia atinjam mais pessoas e com uma rapidez jamais alcançada. Por outro lado, estas mesmas plataformas estão a alterar fundamentalmente a forma como a pessoas trabalham e os termos contratuais de trabalho, através da denominada “economia gig”,na medida em que os indivíduos e as empresas precisam apenas de uma ligação de banda larga para comercializar bens e serviços. Também é bom não esquecer que estas mesmas plataformas oferecem oportunidades económicas a milhões de pessoas que não vivem em países industrializados ou em áreas industriais.
O relatório do Banco Mundial estima que, globalmente, o total da população freelancer ronde os 84 milhões, o equivalente a quase 3% da força laboral mundial que ascende aos 3,5 mil milhões de pessoas, mas alerta para o facto de que um trabalhador freelancer pode ter, igualmente, um trabalho assalariado. Todavia, estas alterações na natureza do trabalho, que são mais pronunciadas nas economias desenvolvidas da Europa e da América do Norte devido ao facto de a penetração da tecnologia ser mais pronunciada e os mercados laborais mais desenvolvidos, têm vindo a constituir uma preocupação crescente.
[quote_center]O aumento da economia gig está já a fazer soar alarmes na medida em que se esbatem as fronteiras que dividem o trabalho formal do informal[/quote_center]
O aumento da economia gig está já a fazer soar alarmes em particular nas zonas acima referidas e na medida em que se esbatem as fronteiras que dividem o trabalho formal do informal: em ambos os casos, os trabalhadores encontram-se em empregos de baixa produtividade, com leis laborais muito pouco claras face às funções e responsabilidades do empregador versus as dos empregados. Ou seja, na esmagadora maioria dos casos, este segmento de trabalhadores não tem acesso a qualquer tipo de benefício, não existindo pensões, seguros de saúde, subsídios de desemprego e nenhuma outra das protecções oferecidas aos trabalhadores em regime contratual “normal”.
Complementarmente, e nas regiões acima mencionadas, as alterações que se fazem sentir na procura de competências acabam por afectar as mesmas pessoas. A tecnologia tem vindo a reduzir desproporcionalmente a procura de trabalhadores menos qualificados ao mesmo tempo que valoriza cada vez mais as competências cognitivas, actualmente em “alta”.
O panorama geral aponta para um aumento da procura de competências cognitivas não-rotineiras e socio comportamentais tanto nas economias avançadas como nas emergentes e a procura de competências específicas para uma determinada função – rotineiras – está a declinar. Por último, o valor relativo a combinações de diferentes tipos de competências está também a acusar um crescimento significativo. Estas alterações são demonstradas não só através da substituição de velhos por novos empregos, mas também via as alterações nos perfis de competências em trabalhos já existentes.
Como refere o relatório e desde 2001, a quota de emprego em ocupações intensivas que requerem competências cognitivas não-rotineiras e socio comportamentais aumentou de 19% para 23% nas economias emergentes e de 33% para 41% nas economias avançadas.
Assim, para satisfazer a procura destas competências tão necessárias ao mercado laboral são necessárias estruturas fortes de capital humano e programas de aprendizagem ao longo da vida. E de acordo com o relatório e sublinhado várias vezes é o facto de o investimento no capital humano constituir a prioridade para os governos se a ideia for retirar o máximo proveito desta natureza em mutação do trabalho. Contudo, mais informação e uma melhor avaliação são necessárias para aumentar a sensibilização para esta urgência. Para atingir este objectivo, o relatório levou também em conta o Índice de Capital Humano que avalia a relação existente dos investimentos em saúde e educação e a produtividade dos trabalhadores do futuro.
[quote_center]O valor relativo à combinação de diferentes tipos de competências está também a acusar um crescimento significativo[/quote_center]
Neste ranking, que é liderado por Singapura, Coreia do Sul e Japão e que integra vários países europeus em lugares cimeiros, Portugal posiciona-se na 16ª posição (com uma pontuação de 0,78 -numa escala de 0 a 1) em 157 países, não deixando assim o nosso país de fora dos riscos associados ao futuro do trabalho. Ou seja, os governos terão, e com urgência, de repensar os sistemas de protecção social, com o Banco Mundial a defender um rendimento mínimo garantido.
O que os governos não podem deixar de fazer
A análise sugere três áreas por excelência em termos de políticas prioritárias para os governos: o investimento em capital humano e na aprendizagem ao longo da vida; o aumento da protecção social e a mobilização de receitas através de impostos que consigam oferecer um “espaço fiscal” para o financiamento público exactamente deste capital humano e da protecção social. Mas foquemo-nos no capital humano que se assume como o factor que talvez exija uma urgência maior.
De acordo com o relatório, as evidências demonstram que os retornos da educação são elevados quando a tecnologia está em mudança. A saúde é outra componente importante do capital humano e, quando ambas são iniciadas precocemente, as suas diferentes dimensões complementam-se entre si. Os indivíduos e as famílias negligenciam muitas vezes o capital humano devido à ausência de informação, por causa de normas sociais ou devido a custos proibitivos.
[quote_center]A tecnologia tem vindo a reduzir desproporcionalmente a procura de trabalhadores menos qualificados ao mesmo tempo que valoriza cada vez mais as competências cognitivas[/quote_center]
Por estas razões, os governos têm um papel crucial na construção deste capital humano, não só enquanto fornecedores de saúde, educação e financiamento, mas também enquanto reguladores da acreditação e controlo de qualidade desses mesmos fornecedores. E a forma como os países lidarem com esta mutação do contexto laboral no curto prazo dependerá de quão rápida e pertinentemente for a oferta de mudança de competências.
Um dos problemas é que os sistemas de educação tendem a ser resistentes à mudança, o que significa que uma boa parte deste reajustamento da oferta tem de acontecer fora do ensino obrigatório. A primeira infância, a educação terciária (ensino superior) e a aprendizagem dos adultos fora do contexto laboral são factores crescentemente importantes para ir ao encontro da procura de competências nos mercados laborais do futuro. A forma mais eficaz de adquirir as competências exigidas pelo mercado laboral é começar cedo. Investimentos precoces em nutrição, saúde, protecção social e educação estabelecem bases sólidas para a aquisição futura das competências cognitivas e socio comportamentais, ao mesmo tempo que tornam a aquisição destas mesmas competências mais resilientes à incerteza face ao futuro. Por exemplo, e pegando na educação pré-escolar – particularmente no que respeita à melhoria da igualdade de oportunidades – está comprovado que por cada dólar adicional investido em programas na primeira infância existe um retorno entre os seis e os 17 dólares.
Actualmente, estes investimentos têm uma expressão muito limitada, especialmente no que respeita às crianças pobres e desfavorecidas, as quais iriam beneficiar em muito dos mesmos e dar prioridade a estes investimentos teria um retorno muito significativo para as economias, desde que o acesso e a qualidade fossem garantidos.
No que respeita à educação superior, esta torna-se crescentemente importante à medida que as economias se tornam mais globalmente integradas e tecnologicamente avançadas. O retorno médio privado desta educação ronda os 15,8%.
[quote_center]O investimento em capital humano é uma das grandes prioridades para qualquer governo[/quote_center]
Suplementarmente, as mudanças no contexto do trabalho tornam também a educação terciária mais atractiva em três aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, a tecnologia e a integração aumentaram a procura por competências cognitivas de ordem elevada que são transferíveis nas mudanças de emprego, mas que não podem ser adquiridas somente através do ensino. Essa procura crescente melhorou os pacotes salariais para os detentores de educação superior, ao mesmo tempo que reduziu a procura de trabalhadores menos qualificados. Em segundo lugar, a educação terciária aumenta também a necessidade de procura da aprendizagem ao longo da vida. Dos trabalhadores espera-se que tenham múltiplas carreiras e não somente múltiplos empregos ao longo da sua vida. E a educação terciária – com a sua ampla variedade de oferta de cursos e de modelos flexíveis como a aprendizagem online e as universidades abertas – vai ao encontro desta procura crescente. Em último lugar, a educação terciária – especialmente as universidades – torna-se mais atractiva no mundo do trabalho em mudança servindo como uma plataforma para a inovação.
Como a natureza do trabalho vai sofrendo mudanças, muitos trabalhadores são apanhados na encruzilhada das disrupções de competências e não é de estranhar que a actual população activa se mostre ansiosa face às perspectivas de trabalho. Um passo que permite diminuir esta ansiedade é a educação para adultos através da requalificação e do aumento de competências de trabalhadores que não estão nem a estudar nem a trabalhar. Todavia e segundo o relatório, esta abordagem demonstrou ser muito mais promissora na teoria do que na prática, existindo três formas de a melhorar: um maior número de diagnósticos sistemáticos dos constrangimentos específicos que estes adultos enfrentam; uma educação, formação e instrução que é feita à medida do cérebro adulto; e a oferta de modelos flexíveis que se ajustem aos estilos de vida destes mesmos adultos.
A aprendizagem dos adultos é um canal substancialmente importante para o reajustamento de competências no futuro do trabalho, mas o alerta do relatório vai para a urgência de esta ter de ser repensada séria e rapidamente.
Editora Executiva