Os miúdos andam a fazer greve às aulas. Os miúdos resolveram unir-se para lutar contra a inércia dos mais velhos. Os miúdos andam a desafiar o sistema. Os miúdos querem ter voz no processo democrático. Os miúdos querem salvar o seu futuro, já que ninguém o faz. Os miúdos estão nas ruas e os adultos perderam o direito moral de os criticar
POR HELENA OLIVEIRA

“Existe uma aceitação confrangedora e diária do facto de vir a existir um apocalipse em algum momento da nossa vida e ninguém estar a fazer verdadeiramente nada para lhe pôr cobro. Assim, somos nós, os mais novos, que sentimos a necessidade de salvar o nosso próprio futuro, já que mais ninguém o faz” (Natalie Rotstein, estudante universitária, activista do Sunrise Movement)

“Os estudantes desta escola há anos que debatem o que é viver com a ameaça das armas nas nossas vidas” (Emma González, uma das precursoras do movimento March for Our Lives)

Na passada semana, o mundo foi palco de um fenómeno que está em modo de contágio e que está a fazer eco um pouco por todo o mundo.

No dia de São Valentim, a 14 de Fevereiro último, assinalou-se um ano passado sobre a morte de 17 estudantes em Parkland, no estado americano da Florida, vítimas de mais um tiroteio. Nesse mesmo dia, o website March for Our Lives foi pintado de preto. Na mesma semana, e não só nos Estados Unidos, mas em locais como o Reino Unido, o Japão, a Austrália, a Bélgica, a Alemanha, a Suécia, a Suíça, e em outras dezenas de países, milhares de estudantes faltaram às aulas para alertar para os potenciais danos catastróficos provocados pelas alterações climáticas e para gritarem ao mundo que os adultos estão a falhar na protecção das gerações mais novas, colocando em risco o seu futuro num planeta ameaçado. Para 15 de Março, e em Portugal também, estão já marcadas concentrações, a nível mundial, que levarão às ruas ainda mais jovens que irão recordar aos adultos que o tempo está a escassear e que o relógio não volta para trás.

Todos estes movimentos mostram que o activismo juvenil está cada vez mais vivo e interventivo e que as novas gerações não planeiam ficar de braços cruzados à espera que as suas reivindicações – as quais não têm apenas a ver com a questão das armas nos Estados Unidos ou com as alterações climáticas em todo o mundo, mas com vários outros desafios que os afligem – caiam, mais uma vez, no saco roto dos senhores que detêm o poder e a possibilidade de fazerem algo. Estes jovens estão a posicionar-se como “futuros líderes” e sentem-se forçados a agir em prol de questões para as quais as gerações mais velhas não demonstram a vontade necessária para lutar.

Greta Thunberg, à porta do Parlamento Sueco, no início da sua luta solitária contra as alterações climáticas – © DR

“Parem de se comportar como crianças irresponsáveis”

Se olharmos para trás, foram inúmeros os momentos da História que testemunharam a rebeldia dos mais jovens face a variados assuntos. Mas o que parece distinguir este erguer da voz dos mais novos na actualidade prende-se com o facto de estes estarem decididos a lutar no interior dos processos políticos já existentes e não se limitarem a demonstrar o seu descontentamento contra os mesmos. E há várias razões que o sustentam, estejamos a falar do movimento anti-armas March for Our Lives, das manifestações contra a catástrofe climática (e dos muitos movimentos já existentes que advogam a defesa de um futuro melhor) ou de outros temas que assombram os jovens como o desemprego, a desigualdade ou os elevados custos da educação.

Num interessante artigo publicado pela The Conversation e sob o título “Greves climáticas nas escolas: por que motivo os adultos já não têm o direito de contestar as acções radicais perpetradas pelos seus filhos” (em tradução livre), o seu autor, Rupert Read, filósofo e também ele defensor de uma acção urgente contra as alterações climáticas, e a propósito das muitas críticas que se têm feito sentir por parte dos “adultos” face a estas greves, toca num ponto crucial da história, evocando a teoria da desobediência civil, tema de particular interesse para o filósofo John Rawls. De acordo com este último, a desobediência civil, e numa sociedade democrática, assenta na premissa de que só é justificável desobedecer à lei quando todas as outras alternativas estiverem esgotadas e quando a injustiça contra a qual se protesta for grave.

Ora, assegura Rupert Read, neste caso em que os alunos estão a fazer greve (estas manifestações têm vindo a ocorrer com maior frequência desde Agosto de 2018) “não existe qualquer dúvida de que a injustiça – a ameaça – é grave”, escreve, acrescentando ainda que “nem sequer existe algo mais grave”, e que também parece razoável afirmar que outras alternativas já foram, realmente, esgotadas. “Afinal de contas, há décadas que as pessoas tentam acordar os governos para a ameaça climática e continuamos a ser uma sociedade que não está a acompanhar o caminho traçado mesmo por uma organização conservadora como é o IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas]”.

E, como se poderá ver mais à frente neste artigo, a verdade é que não estamos perante um bando de miúdos que resolveu “baldar-se” às aulas, mas sim a testemunhar um movimento activista – composto por crianças e jovens – que está a conseguir “assustar” os mais velhos.

A “sofisticação” do activismo juvenil presente é espelhada pelos resultados que, em apenas um ano, foram atingidos pelo movimento March for Our Lives. Por exemplo, a jovem Emma Gonzalez não só ficou conhecida como um dos rostos da tragédia de Parkland – o seu discurso comovente correu mundo -, mas também e como escreve uma jornalista do The New Yorker num artigo que assinala o aniversário desta tragédia, como a proclamadora do “primeiro discurso com repercussão nacional por parte de um membro da sua geração”.

Palavras similares poderão ser adjudicadas a Greta Thunberg, a jovem de 16 anos que ficou conhecida, no Verão passado, pelo seu protesto solitário à porta do parlamento sueco, apelando aos líderes políticos para agirem no âmbito das alterações climáticas. A “ascensão” de Greta Thunberg foi meteórica. Em Dezembro de 2018, e ao ser uma das oradoras na Conferência Climática das Nações Unidas, acusou, e ao lado do secretário-geral António Guterres, os líderes mundiais de “se comportarem como crianças irresponsáveis; em Davos, e num discurso dirigido a todos os poderosos e “financeiramente bem-sucedidos”, começou e acabou por alertar que a”a nossa casa está a pegar fogo”, referindo ainda que “não quero que se sintam esperançados, quero que entrem em pânico” e, esta semana, no dia 21, viajou de comboio (sim, por causa das emissões) para se encontrar em Bruxelas com o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker.

No caso do March for Our Lives, o que aconteceu em apenas um ano não deixa dúvidas sobre a força que o movimento – e os jovens que o integram – está a ter nos Estados Unidos. E, como refere o artigo do The New Yorker, “desde o início, o que distinguiu os estudantes do March for Our Lives foi o facto de estes acreditarem que o agravamento da epidemia da violência por causa das armas poderia ser, realmente, travado”. Poucos dias após o tiroteio, os alunos reuniram-se de imediato com representantes políticos do estado da Florida e um mês depois, a 14 de Março, centenas de milhares de pessoas manifestaram-se em frente ao Capitólio naquele que foi considerado o maior protesto juvenil (com muito adultos à mistura) em Washington desde a guerra do Vietname. A “marcha” não ficou por aqui e um ano depois, os Estados Unidos vêem, e pela primeira vez em muito tempo, um conjunto de novas medidas e leis relacionadas com a posse de armas que comprovam a força demolidora destes jovens.

Já no que respeita ao rastilho ateado por Greta Thunberg, e como afirma Bill McKibben, fundador da 350.org, ao The Guardian, os activistas climáticos veteranos estão boquiabertos com o que se atingiu em tão pouco tempo. “O movimento lançado por Greta é uma das coisas que maior esperança acalenta nos meus 30 anos de trabalho sobre a questão climática”, afirma, acrescentando que o mesmo não só realça a importância do desafio geracional das alterações climáticas, “como desafia os adultos a provarem que são, na realidade, adultos”.

© Ecowatch.org

Por que estão os adultos tão inaptos para proteger os seus filhos?

A resposta à pergunta acima parece óbvia: falta de vontade. Ao longo dos últimos 12 meses, cerca de 1200 crianças e jovens foram mortos por armas de fogo nos Estados Unidos, um número que não inclui 900 a 1000 mortes adicionais relacionadas com suicídios de jovens também com armas.

Por outro lado, e no que respeita às alterações climáticas e à crise da biodiversidade, não é possível esquecer o preocupante alerta de que o planeta dispõe de apenas 12 anos para impedir que o limite do valor do aquecimento global não ultrapasse os 1,5 graus Célsius, tal como alertaram as Nações Unidas e depois da divulgação do mais recente relatório do IPCC, o mesmo acontecendo com um estudo produzido pelo World Wildlife Fund, conduzido por 59 países, e que afirma que a humanidade perdeu, desde 1970, 60% dos mamíferos, aves, peixes e répteis.

As situações, se bem que completamente diferentes, servem para ilustrar a inércia dos adultos face a problemas que estão a ser tomados nas mãos dos mais novos.

No primeiro caso, e passada a fase dos protestos, cedo o activismo juvenil se transformou num movimento político. Os jovens não se limitaram a fazer ouvir a sua voz nas ruas e nos media sociais, mas encetaram, de imediato, reuniões públicas, em conjunto com a formação de alianças com outros grupos de jovens activistas pelo controlo das armas, de que são exemplo o Good Kids Mad City, e o Peace Warriors, bem como com vários grupos de sobreviventes de tiroteios em massa em Santa Fe, no Texas ou em Aurora, no Colorado, entre outros.

E, como refere o The New Yorker, a sua acção não se limitou a um compromisso para que se “acabasse” com estes tiroteios nas escolas, mas sim a educar o público sobre as variadas formas através das quais a livre posse de armas contribui também para aumentar a probabilidade de acidentes fatais em actos de suicídio, violência doméstica e lutas entre gangues. Mais ainda, os membros do March for Our Lives têm percorrido vários estados com o intuito de registar jovens eleitores, instando-os a votar, e a lutar pelos seus direitos. Os resultados já se fizeram sentir nas últimas eleições intercalares nos Estados Unidos onde o número de votantes entre os 19 e os 29 anos cresceu em 31% (um crescimento recordista desde as eleições intercalares de 1982). Para as próximas eleições presidenciais em 2020, escreve-se também no artigo já citado que os jovens activistas do March for Our Lives estão a optar por defender causas e não candidatos individuais, e que em conjunto com outros movimentos como o Moms Demand Action e o Everytown for Gun Safety, podem já hastear grandes bandeiras de vitória(s). De acordo com o Giffords Law Center to Prevent Gun Violence e em 2018, foram assinadas 67 leis anti-armas em 26 estados.

Por seu turno, as amplas greves às aulas que se fizeram sentir na passada semana contribuíram também para que alguns passos na luta climática tenham sido dados, em particular no interior das fronteiras de alguns dos países que a elas aderiram. Por exemplo, e como relata o The Guardian, na Austrália , os estudantes grevistas exigiram uma acção política imediata para travar, por parte do gigante empresarial Adani, a exploração de uma mina em Queensland e a mudança da utilização dos combustíveis fósseis para energias 100% renováveis. Na quinta-feira, 14 de Fevereiro, e aproveitando a greve, três estudantes activistas, um com 11 anos e dois outros com 14, conseguiram falar com o líder da oposição no parlamento federal australiano, ao mesmo tempo que o primeiro-ministro Scott Morrison condenava publicamente as faltas às aulas. Pior ainda foi a reacção do ministro dos Recursos, Matt Canavan, que afirmou que “o melhor [que os alunos] vão aprender com estes protestos é como se juntarem a uma fila de desemprego”, tendo sido de imediato criticado.

Uma consequência de peso ainda maior ocorreu na Bélgica, depois de milhares de estudantes estarem a sair às ruas há quatro semanas consecutivas e apoiados por cerca de três mil cientistas, como se pode ler num outro artigo publicado pelo Euroactiv, e com a certeza de “que iremos continuar até termos a certeza de que vamos ser ouvidos”, como referiu uma das coordenadoras da plataforma Youth4Climate. A ministra do Ambiente viu-se obrigada a demitir-se depois de ter falsamente declarado que, segundo os serviços secretos, as crianças em greve estavam a ser dirigidas por “poderes anónimos” num complot contra si mesma, tendo sido de seguida desmentida pelas próprias forças de segurança.

Já a Suíça foi palco de um dos maiores protestos, estimando-se que 65 mil pessoas tenham saído às ruas para exigir que o governo declare de imediato um “estado de emergência climática” e que implemente políticas que conduzam a uma economia de carbono zero até 2030.

Na Alemanha, os jovens activistas também não tem dado descanso à sua causa, com mobilizações semanais em pelo menos 50 cidades.

© DR

“Enquanto adultos, perdemos o direito moral de fazer outra coisa [a não ser apoiar]”

As reacções aos protestos das gerações mais jovens – e convém não esquecer que muitos dos activistas são crianças do 1º ciclo que sabem bem pelo que estão a lutar – tem, e como seria de esperar, dividido os mais velhos.

Como escreve o filósofo Rupert Read, da Universidade de East Anglia, “enquanto adultos, falhámos categoricamente às nossas crianças” e posicionámo-las “num caminho para um ‘futuro’ no qual a sociedade como a conhecemos pode colapsar”. E é por isso que defende que estes devem ser humildes o suficiente para não dizer aos jovens o que estes devem fazer, mas antes apoiá-los incondicionalmente e perguntar de que forma os podem ajudar na sua luta pela sobrevivência.

E o apoio dos adultos começa a ser visível. No Reino Unido, 224 académicos assinaram uma manifestação pública de solidariedade para com a luta dos jovens, declarando que o “abuso planetário por parte dos humanosé, de uma forma bem real, negligência infantil”.

Na Bélgica e como acima mencionado, um grupo de mais de três mil cientistas assinou também uma carta aberta como forma de apoio aos jovens grevistas, começando por afirmar que estes activistas “têm simplesmente razão”.

Em termos gerais, e por parte dos governos, as greves climáticas têm também dividido as hostes. Os estudantes queixam-se de uma “atitude paternalista” na medida em que apesar de “acharem muito bem” que os jovens se manifestem em prol do seu futuro, as acções tardam em chegar, apesar de ser explícita a ideia defendida pelos jovens que se está a falar de um problema sistémico e grave e não apenas de um “estilo de vida” a adoptar. Todavia, e em vários dos locais onde as manifestações estudantis têm tido lugar, os alunos têm conseguido, de um modo geral, chegar à fala com representantes políticos os quais, e pelo menos, não lhes têm fechado as portas e têm estado dispostos a ouvir as suas preocupações e reivindicações.

Por seu turno, as alas partidárias mais à (extrema) direita têm sido particularmente críticas desta “fuga às aulas” motivada pela ausência de soluções eficazes para o combate às alterações climáticas. Num artigo publicado na ECOWatch, assinado por um investigador e uma professora em Estudos Educacionais e Educação para a Sustentabilidade, respectivamente, é dado o alerta para o facto de “os movimentos neo-conservadores e populistas existentes nos Estados Unidos, na Europa e na Austrália continuarem a disseminar mensagens que negam as evidências científicas das alterações climáticas, ao mesmo tempo que as abordam em termos morais, religiosos e políticos”. E, para ambos, a questão é ainda mais grave quando o próprio sistema educativo não apoia a causa defendida por estes estudantes.

Uma pressão para que as alterações climáticas, em conjunto com as suas causas e consequências, ocupem um espaço cada vez mais relevante nos currículos escolares é uma outra questão que está a gerar cada vez mais debate e a ganhar adeptos. Para os dois educadores, e para além do problema climático merecer apenas algumas linhas nos manuais escolares, a maior dificuldade reside no facto de as escolas, comunidades e governos raramente se envolverem com as ideias e experiências dos mais novos no que a este tema diz respeito.

Todavia, e em declarações ao EuroActiv, o comissário europeu para a Acção Climática e Energia, Miguel Arias Cañete, mostra-se optimista: “as marchas pelo clima que têm tido lugar ao longo dos últimos meses acentuaram a luta contra as alterações climáticas e a adopção por parte da UE de medidas para lidar com este desafio global, o qual representa uma preocupação crucial para a maioria dos cidadãos”. A boa notícia é que Cañete está convencido de que as alterações climáticas deverão transformar-se num tema chave das eleições europeias que terão lugar em Maio deste ano.

E, espera-se, o mesmo acontecerá com o tema das armas na campanha para as eleições primárias nos Estados Unidos em 2020.

Assim, e como sugere fortemente o filósofo já mencionado neste artigo, Rupert Read, é tempo de dar voz aos mais novos no sistema democrático.

NOTA: À semelhança do que vai acontecer em cidades de todo o mundo, Lisboa está também a preparar a sua Greve Climática Estudantil para o dia 15 de Março.

Editora Executiva