Sente-se frustrado, cansado e já não pode ouvir falar da Covid-19? Começa a pôr em causa a utilidade da máscara ou da distância social para evitar o risco de contágio? Questiona-se sobre se deve ou não manter os sacrifícios exigidos pelos decisores públicos, que limitam a sua liberdade, em particular porque não vê resultados promissores nas medidas implementadas para conter a pandemia? Se respondeu afirmativamente a uma ou mais destas questões, não está sozinho. Faz parte de uma nova e preocupante batalha que não é apenas contra o vírus, mas igualmente contra o desespero, a exaustão e o ressentimento que se começa a instalar face a restrições ainda mais apertadas e sem data de validade. E que é profundamente preocupante e perigosa
POR HELENA OLIVEIRA

Quando o novo coronavírus se começou a disseminar por todo o mundo na passada Primavera, foram muitas as pessoas da generalidade dos países afectados que cancelaram casamentos e férias, deixaram de visitar os seus familiares idosos e se fecharam em casa com a ideia de que este período de isolamento, apesar de necessário, seria breve. Os até então não considerados “trabalhadores essenciais” foram aplaudidos nas mesmas varandas onde se cantava ou tocava algum instrumento, mãos costuraram máscaras, empresas colocaram a segurança dos seus empregados em primeiro lugar, tendo outras alterado por completo o seu modelo de negócio e passado a produzir equipamento de protecção, governos uniram-se face ao desconhecimento total do inimigo invisível que teriam de combater – a ideia de que estaríamos todos no mesmo barco originou um raro sentimento de solidariedade global.

Durante o Verão, que foi já palco de um manifesto cansaço da população e de uma tendência crescente para relaxar perante os perigos do vírus, e fosse por desejo ou necessidade, muitas pessoas optaram por gozar as suas férias e regressaram ao convívio com familiares e amigos, preparando-se para o regresso ao trabalho e às escolas numa aparente tentativa de resgatar, além das economias, alguma coisa parecida com a vida tal como era conhecida antes do surgimento da pandemia.

Todavia, e chegado o início do Outono, os rituais de esperança e união que ajudaram as pessoas a suportar um dos mais atípicos momentos das suas vidas – a primeira vaga do vírus – estão a dar lugar a sentimentos de exaustão e frustração. Enquanto as questões em torno do uso de máscara e outras medidas prudentes sempre foram muito menos politicamente enviesadas na Europa, especialmente quando comparadas com a América, a perspectiva de um Inverno sob restrições apertadas ou mesmo com um regresso ao confinamento está a suscitar novas frustrações e a dividir os partidos políticos também no Velho Continente, com resultados na divisão social.

De acordo com uma pesquisa efectuada pelo think tank Pew Research Center divulgada em finais de Agosto – altura em que o vírus parecia, pelo menos, ter dado algumas tréguas – e apesar das abordagens dos países para combater a propagação do vírus terem variado por toda a Europa, América do Norte, Austrália, Japão e Coreia do Sul, a maioria dos cidadãos questionados (com as devidas excepções) destas regiões acreditava que o seu país tinha feito um bom trabalho para lidar com a pandemia.

O inquérito, realizado em 14 economias desenvolvidas (Estados Unidos, Canadá, Bélgica, Dinamarca, França, Alemanha, Itália, Países Baixos, Espanha, Suécia, Reino Unido, Austrália, Japão e Coreia do Sul) entre Junho e inícios de Agosto, fez saber que uma média de 73% dos cidadãos inquiridos acreditava que o seu país tinha feito “o possível” para tentar travar a pandemia que, à data da publicação do mesmo, tinha infectado mais de 20 milhões de pessoas em todo o mundo e ocasionado a morte a centenas de milhares. Nesta avaliação, como seria de esperar, existiam algumas variações, nomeadamente nos Estados Unidos e no Reino Unido, países com elevados níveis de polarização política sobre as opiniões relativas à gestão desta crise por parte dos seus governos.

Depois de alguns meses conturbados, e à medida que a crise se aprofunda, o consenso outrora sólido em muitos países sobre a circunstância de todos os sacrifícios para combater o vírus serem válidos está a dar mostras de uma quebra preocupante. As medidas, entretanto diferenciadas para cada território, estão a ser contestadas e mesmo disputadas na justiça: os líderes nacionais e locais não se entendem, os grupos empresariais emitem avisos terríveis sobre a possibilidade de indústrias inteiras poderem entrar em colapso se as restrições forem longe de mais, multiplicam-se os protestos nas ruas, sendo que muito deste cepticismo público está a ser alimentado em muitos países pelo fracasso dos governos em cumprir as grandes promessas de “vitória” relativamente às medidas até agora avançadas. Talvez a indicação mais reveladora de as pessoas estarem confusas, frustradas, desesperadas e no ponto limite de obedecerem a orientações ou “ordens” resida no facto de o número de casos estar a aumentar muito rapidamente.

Na Europa, como sabemos, as infecções estão a aumentar de uma forma descontrolada, bem como o número de hospitalizações e óbitos. O Reino Unido voltou a impor novas restrições, em França colocaram-se as cidades em “alerta máximo”, ordenando o encerramento de bares, ginásios e centros desportivos, e em Espanha (que ultrapassou um milhão de infecções), na Bélgica e em Itália batem-se novos recordes no número diário de casos, o mesmo acontecendo em Portugal; a Irlanda voltou ao confinamento, sendo o primeiro país a fazê-lo. Entretanto, os líderes da República Checa descreveram o seu sistema de saúde como estando “em perigo de colapso”, uma vez que os hospitais estão sobrecarregados e ocorrem mais mortes do que em qualquer outro momento da pandemia, sendo que este mesmo risco assombra várias regiões. No nosso país, são vários os especialistas que reconhecem que a situação, agravada com o Outono, com a chuva e o frio a instalarem-se, está a ficar fora do controlo em várias unidades de saúde, particularmente no norte do território; os mesmos peritos concordam que sem novas medidas, e muito mais restritivas, o cenário irá agravar-se e poderá ser caótico.

Mas há uma grande ressalva, pois a reacção dos cidadãos parece estar a ser diferente. Ainda a tentar digerir os custos económicos, emocionais e físicos dos bloqueios nacionais que paralisaram as vidas e as economias um pouco por todo o mundo, começa a ser plausível que as pessoas possam não ser tão complacentes com as orientações dos governos como da primeira vez. Em alguns locais estão a ser aceites as novas restrições, ainda que com alguma relutância e talvez pelo facto de a alternativa de um novo confinamento ser ainda mais assustadora, mas a verdade é que existe um cepticismo cada vez mais pronunciado face a várias medidas que vigoram na agenda política, a par de um desentendimento cada vez mais notório entre os partidos e várias instâncias da sociedade civil, de que são exemplo, e no caso português, a polémica e a indignação face à proposta em tornar obrigatória a app de rastreio StayAway Covid (medida que o governo de António Costa deixou entretanto cair) e a utilização de máscaras na via pública.

Este fenómeno de “revolta” está a ser de tão rápido contágio que a própria Organização Mundial de Saúde (OMS), e dando resposta em particular a preocupações demonstradas por vários Estados-membros da União Europeia, publicou um documento, intitulado “Fadiga da Pandemia: Revigorar o público para prevenir a Covid-19”, que visa fornecer uma estrutura de planificação e de implementação de projectos para manter e reforçar o apoio dos cidadãos às medidas tomadas pelos seus governos para conter a pandemia. De acordo com o documento, estes sinais de “fadiga pandémica” são caracterizados pela desmotivação para obedecer a comportamentos de protecção recomendados, que têm vindo a emergir gradualmente ao longo do tempo e surgem afectados por um conjunto de emoções, experiências e percepções. A OMS reconhece igualmente que a denominada fadiga pandémica é uma resposta esperada e natural a uma crise prolongada de saúde pública, em particular porque a gravidade e a escala da pandemia da Covid-19 exigiram a implementação de medidas invasivas com impactos sem precedentes na vida diária de todos.

Nas várias partes do mundo onde o vírus está a ressurgir em força, os surtos e uma crescente sensação de apatia estão a colidir, criando uma combinação perigosa. A juntar aos negacionistas, às fake news e aos que consideram o vírus como um “instrumento político”, as autoridades sanitárias afirmam que a impaciência crescente é mais um novo e complexo problema que ameaça agravar ainda mais o que parece estar a transformar-se num Outono devastador. Os alarmes estão a soar, e de acordo com investigadores da OMS e que fizeram parte do estudo acima mencionado, estima-se que, pelo menos na Europa, cerca de metade da população esteja a padecer de “cansaço pandémico”, o que se traduz igualmente na procura de menos informação sobre o vírus, menor preocupação com os riscos e menos disponibilidade para atentar aos comportamentos recomendados.

Hans Kluge, director regional da OMS para a Europa, afirmou ao The New York Times que “os cidadãos fizeram enormes sacrifícios”. “Isto tem vindo a ser um custo extraordinário, que nos esgotou a todos, independentemente do local onde vivemos ou do que fazemos”.

Uma visão similar foi expressa igualmente por Vaile Wright, psicóloga da American Psychological Association (APA), que afirma que se “na Primavera, prevaleceu o medo e a sensação de ‘estarmos todos juntos nisto’, as coisas agora são diferentes, pois ‘o medo foi realmente substituído pela fadiga’”.

O peso da flexibilidade e adaptabilidade cultural

Num artigo publicado pela Harvard Political Review (HPR), que versa sobre a importância da cultura nas respostas sociais à Covid-19, sublinha-se que as investigações realizadas até agora no que respeita a esta temática apontam para o facto de os países com um quadro maioritariamente colectivista terem uma resposta mais rápida e eficaz, uma vez que os seus cidadãos têm maior probabilidade de cumprir as práticas de distanciamento social e de higiene que ajudam a reduzir a propagação. Por seu turno, nos países com cultura mais individualista mostra-se mais resistência ao cumprimento destas mesmas práticas. Não é assim surpreendente que os meios de comunicação social apontem a cultura extremamente virada para dentro dos EUA como a principal razão para que o país continue a bater o recorde de infecções – mais de 8 milhões confirmados no início desta semana – e do número de mortes (mais de 220 mil).

De acordo com um estudo realizado pela Social Science Research Network, e nos estados com níveis mais elevados de individualismo, o cumprimento [comparativamente a outros estados] das ordens de confinamento apresentaram uma redução de 41%, o mesmo sucedendo com a angariação de fundos relacionados com a pandemia que se traduziram numa diminuição de 48% face a estados menos conservadores. A juntar a tudo, o comportamento e as declarações políticas da administração Trump entraram em desacordo total com os alertas da comunidade médica e científica, o que faz dos Estados Unidos “um caso único” (talvez apenas assemelhado ao do Brasil) na forma como o país tem vindo a abordar a pandemia. A violação das liberdades individuais (v. Caixa), em conjunto com a “economia primeiro”, é o argumento mais utilizado para a não utilização de máscaras, para o incumprimento da distância social e das normas de cautela em relação à Covid-19.

Pelo contrário, existem “bons exemplos” de locais onde os esforços de contenção têm sido mais duros, mas aparentemente mais eficazes e mais bem aceites pela população. As infecções permaneceram relativamente baixas durante meses na Coreia do Sul, no Japão, na Nova Zelândia, na Austrália e na China, onde o vírus se manifestou pela primeira vez. No caso particular da China, e depois de uma dúzia de casos ter sido detectada na cidade chinesa de Qingdao, as autoridades tentaram na semana passada testar a totalidade dos seus 9,5 milhões de residentes. Como acrescenta ainda o artigo da HPR, enquanto algumas sociedades respondem à Covid-19 reforçando as normas culturais tradicionais, outros países desenvolvem o seu tecido social para melhor controlarem o impacto do vírus. Ou pelo menos tentar.

Assim, e de acordo com um comunicado publicado pela agência Reuters no início desta semana, a Europa e a América do Norte deveriam seguir o exemplo da Ásia e do hemisfério sul para travarem a onda crescente de novas infecções. Quem o sugere é Mike Ryan, especialista em emergências da OMS. Para este responsável, o aumento de taxas de transmissão nos países europeus e na América está relacionado, “em boa parte”, com o fracasso da quarentena imposta a pessoas expostas ao novo coronavírus. Dando como exemplo o Japão, a Austrália, a China ou a Coreia do Sul, Mike Ryan recorda que estes países não deixaram de persistir nas medidas de prevenção do contágio, impondo a quarentena obrigatória a todos os contactos das pessoas infectadas. Acrescenta que “as populações destes países demonstram maiores níveis de confiança nos seus governos, os quais, por sua vez, mantiveram medidas duras de combate ao vírus durante mais tempo”. Ou ainda, e conforme sublinha Siddharth Sridhar, professor assistente de microbiologia na Universidade de Hong Kong no artigo já citado do The New York Times, “são muito poucas as pessoas [aqui] contra as medidas do governo”. Pelo contrário, “só nos manifestamos contra o governo se este não fizer o suficiente para conter o vírus”.

Como reforça a HPR, as reacções da sociedade à acção governamental para combater a Covid-19 dependem em grande medida da cultura em causa. “As pessoas criam as sociedades em que vivem… E cada país tem de encontrar, de certa forma, um novo tipo de estrutura [para lidar com a pandemia]”, explica Jody Tangredi, especialista em relações interculturais, acrescentando que uma das atitudes que realmente difere de cultura para cultura é, exactamente, a forma de reagir às regras”. “Há países e culturas onde os cidadãos realmente não gostam de regras, sendo que os que aceitam mais normas e regulamentos e tendem a seguir a estrutura da sua sociedade pertencem ao tipo de culturas consideradas como mais rígidas e restritivas”, acrescenta.

Essencialmente, o facto de as sociedades terem uma visão do mundo mais individualista ou mais colectivista tem impacto no grau mediante o qual aceitam melhor ou pior o envolvimento do governo e as orientações ou normas que deste procedem. E, como seria de esperar, este facto reflecte-se na relação da cultura com o regime que se encontra no poder e acaba por determinar, pelo menos em parte, a abordagem que se faz da pandemia.

A verdade é que estamos perante um novo e crucial desafio: convencer as pessoas de que, e mais uma vez, a responsabilidade de abrandar a propagação do vírus não é apenas das autoridades competentes, mas reside sobretudo nos comportamentos de cada um e de todos, sob pena de esta segunda (ou terceira) vaga ser ainda bem pior do que a precedente.


Para que servem as liberdades civis em tempo de pandemia?

A proposta de decisão para tornar obrigatória em Portugal a aplicação Stayaway Covid pode ter surpreendido alguns pelo apoio que obteve vindo de pessoas que se julgava serem democratas. Na realidade, “uma maior disposição para abrir mão de direitos e liberdades” aumentou perante a exposição aos riscos da saúde na actual pandemia. Essa disponibilidade para “renunciar aos direitos diminui à medida que as preocupações com a saúde diminuem e as preocupações aumentam” no sentido de esses direitos não serem repostos
POR tictank.pt

A constatação está no estudo “Civil Liberties in Times of Crisis“, publicado já este mês por investigadores da Harvard University e da Stanford University, a partir de 370 mil respostas em 15 países (Austrália, Canadá, China, França, Alemanha, Índia, Itália, Japão, Holanda, Singapura, Espanha, Coreia do Sul, Suécia, Reino Unido e EUA).

Eles detectaram “quatro resultados principais. Primeiro, muitos em todo o mundo revelam uma clara disposição de trocar as liberdades civis por melhores condições de saúde pública. Em segundo lugar, consistente em todos os países, a exposição a riscos para a saúde está associada a uma maior disposição dos cidadãos em negociar com as liberdades civis, embora os indivíduos mais desfavorecidos economicamente estejam menos dispostos a fazê-lo. Terceiro, as atitudes em relação a tais compromissos são elásticas à [recepção da] informação. Quarto, documentamos um declínio gradual e, em seguida, um nivelamento na disposição geral dos cidadãos de sacrificar direitos e liberdade à medida que a pandemia progride, embora a correlação subjacente entre a preocupação dos indivíduos com a saúde e as suas atitudes em relação aos compromissos tenha sido notavelmente constante”.

Os investigadores perceberam que os cidadãos não têm as liberdades civis como “sagradas” nem sequer “desejam negociá-las por melhores condições de saúde pública”, pelo que sucedeu ao longo da evolução da pandemia, “especialmente antes de meados de Junho de 2020”.

Mas, com o tempo, “a diminuição da disposição em sacrificar direitos e liberdades apresenta um dilema dinâmico complexo em relação à implementação efectiva de restrições duradouras relacionadas com a saúde pública e a protecção das liberdades civis”.

A acompanhar essa dinâmica está “a crescente preocupação” de ver que os seus direitos e liberdades possam não ser restaurados após a crise, algo que deve alertar as políticas dos governos.

Nesse sentido, os investigadores apontam duas linhas principais de orientação para essas políticas. Em primeiro, devem-se “fornecer aos cidadãos ferramentas para compreender a necessidade da intervenção política”, para se poder “conter a pandemia, mesmo que tal envolva a renúncia a alguns direitos individuais”.

Em segundo lugar, “são necessárias respostas políticas imediatas que frequentemente envolvem a redução das liberdades individuais”. No entanto, é necessário garantir que essas restrições são suspensas após passar a crise.

*Foto Hjem (CC BY-NC-SA 2.0)
Artigo “Para que servem as liberdades civis em tempo de pandemia”. © tictank.pt. Republicado com permissão.

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