Com o mundo a dar sinais de uma profunda instabilidade, o famoso acrónimo que há cerca de 40 anos tem servido para descrever a realidade deixou de ser suficiente para lhe conferir sentido ou para indicar futuros potenciais cenários que ajudem a solucionar os principais desafios que vivemos. A verdade é que o nosso mundo evoluiu e parece ser necessária uma nova terminologia, uma nova linguagem que explique as mutações disruptivas de que está a ser alvo. O acrónimo BANI [frágil, ansioso, não-linear e incompreensível] é a proposta para substituir a volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade do seu antecessor VUCA
POR HELENA OLIVEIRA

Ao longo dos últimos 40 anos que o acrónimo VUCA (volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade) tem vindo a ser usado para descrever o mundo em que vivemos e a servir como uma espécie de bússola orientadora, em vários domínios, para dar sentido aos desafios que, globalmente, vamos enfrentando. Inicialmente introduzido pela Academia Militar do Exército dos EUA para descrever o mundo multilateral mais volátil, incerto, complexo e ambíguo resultante do período que se seguiu ao final da Guerra Fria, foi utilizado, e por exemplo na área da gestão, pela primeira vez em 1987, com base nas teorias de liderança de Warren Bennis e Burt Nanus. Desde então, o termo foi amplamente generalizado e é tido em consideração em muitas áreas, em particular na liderança estratégica, mas também na gestão empresarial no geral, nas organizações sem fins lucrativos, na educação, bem como nas políticas pensadas para a resolução dos problemas globais.

Todavia, não só há quem reconheça que, por ser excessivamente utilizado acabou por perder o seu verdadeiro significado, como também deixou de fornecer respostas úteis a uma questão básica: de que forma é possível lidar, de forma razoável, com as actuais circunstâncias? Com o mundo a dar sinais de uma profunda instabilidade, o famoso acrónimo deixou de ser suficiente para lhe conferir sentido ou para indicar futuros potenciais cenários. A verdade é que o nosso mundo evoluiu e parece ser necessária uma nova terminologia, uma nova linguagem que explique as mutações disruptivas de que está a ser alvo.

Com formação académica em História e Antropologia, Jamais Cascio poderá vir a ficar (mais) conhecido pela autoria do acrónimo substituto do VUCA o qual, apesar de ainda pouco popularizado, começa a ser crescentemente mencionado desde que a Covid-19 deu origem ao período mais aleatório das nossas vidas (apesar de já existir antes do surto pandémico e frequentemente associado às alterações climáticas, por exemplo). Cascio é um reconhecido “futurista”, autor de vário livros e fundador do think tank Institute for the Future, cuja pesquisa se centra na intersecção entre as tecnologias emergentes, os dilemas ambientais e as transformações culturais.

O novo acrónimo – BANI – que representa os termos Brittle, Anxious, Nonlinear e Incomprehensible [frágil, ansioso, não-linear e incompreensível], pretende responder, na sua opinião, à era de verdadeiro caos em que presentemente nos movemos.

Como explica em vários artigos publicados em diversos meios, esta era de caos rejeita intensamente, quase violentamente, a estrutura. Não se trata apenas de instabilidade, mas sim de uma realidade que parece resistir activamente a qualquer esforço que se empreenda para se tentar compreender o que realmente se está a passar. Para o investigador, “este momento actual de caos político, catástrofes climáticas e pandemia global – e muito mais – demonstra claramente a necessidade de uma nova forma de dar sentido ao mundo. Os métodos que temos desenvolvido ao longo dos anos para reconhecer e responder às perturbações comuns parecem cada vez mais dolorosamente inadequados quando o mundo parece estar a desmoronar-se. E é difícil ver o quadro geral quando tudo insiste em colorir fora das linhas”, afirma.

Claro que sempre existiu incerteza e complexidade no mundo, como também sempre foram concebidos sistemas razoavelmente eficazes de compreensão e adaptação a esta normal desordem quotidiana. Como escreve Cascio, “desde instituições de peso como ‘lei’ e a ‘religião’ às normas e valores habituais, até modelos empresariais efémeros e estratégias políticas, muito do que pensamos como aquilo que compõe a ‘civilização’ é, em última análise, um conjunto de implementações culturais que nos permitem domesticar a mudança”. E, acrescenta, “se conseguirmos tornar os processos disruptivos compreensíveis, a ideia é que talvez consigamos também manter sob controlo as suas piores implicações”.

Todavia, e no que respeita ao conceito VUCA, Cascio afirma sem reservas que o mesmo está obsoleto, não distinguindo diferenças importantes, sendo que a sua utilização para descrever a realidade proporciona uma percepção cada vez menor e menos objectiva.

Assim, e como defende, e dado que estamos perante um novo paradigma, é igualmente necessária uma nova linguagem. E se considerarmos o VUCA como insuficiente, precisaremos então de um novo enquadramento que faça sentido não só para o mundo actual, mas também para as consequências contínuas que dele advirão. Tal enquadramento permitir-nos-ia ilustrar a escala das perturbações do caos em curso, bem como considerar que tipos de respostas seriam potencialmente úteis para as compreender. Idealmente, serviria como uma plataforma para explorar novas formas de estratégias adaptativas. Assim, e se o mundo se socorria de cenários e modelos próprios do VUCA para chegar a este tipo de respostas ou estratégias, que tipo de ferramentas serão necessárias para nos ajudarem a compreender este caos agravado?

O mundo BANI

Estabelecido como um paralelo intencional ao acrónimo VUCA, o BANI assume-se como uma abordagem que serve para articular as situações cada vez mais comuns em que a simples volatilidade ou complexidade surgem como insuficientes para se compreender o que está a acontecer; em que as condições que as caracterizam não são simplesmente instáveis, mas sim caóticas; em que os resultados não são apenas difíceis de prever, mas sim completamente imprevisíveis; e cujos acontecimentos não são meramente ambíguos, mas incompreensíveis.

E é por isso que Cascio acredita, em conjunto com um número já considerável de seguidores, que o BANI é uma forma de melhor enquadrar, e responder, ao actual estado do mundo. E se é certo que algumas das mudanças que estão a ocorrer na política, no ambiente, na sociedade e nas tecnologias são familiares – disruptivas mas, de alguma forma, similares a outras que já presenciámos e lidámos anteriormente -, a verdade é que muitas das convulsões agora em curso não são familiares, mas sim surpreendentes e completamente desorientadoras, manifestando-se mediante formas que não se limitam a aumentar o stress que experimentamos, antes o multiplicando.

Cascio explica os quatro termos que compõem o mundo BANI.

FRAGILIDADE [B, de Brittle]

Quando algo é frágil, é susceptível a falhas súbitas e catastróficas. O que é frágil pode até ser ou parecer forte, até atingir um ponto de ruptura, onde tudo se desmorona facilmente. A fragilidade é, assim, uma força ilusória. E um sistema frágil num mundo BANI pode até indicar que tudo está bem ao longo de um período determinado de tempo, mesmo quando se encontra à beira do colapso. Por outro lado, os sistemas frágeis não falham graciosamente, antes estilhaçam-se. A fragilidade surge frequentemente dos esforços para maximizar a eficiência, extraindo de qualquer que seja o sistema em causa o seu último fragmento. Por exemplo, a fragilidade pode ser encontrada em monoculturas, onde o cultivo de uma única cultura significa produção máxima, até que um insecto que apenas afecta uma determinada espécie ou estirpe destrói todo o campo cultivado. Como exemplifica, “vemos fragilidade na maldição dos recursos’, quando os países ou regiões são ricos em apenas um recurso natural útil concentrando-se por isso inteiramente na sua extracção e em que uma mera mudança tecnológica poderá ditar a sua completa inutilidade”. Ou seja, a fragilidade emerge da dependência de um único ponto crítico de falha, e da relutância – ou incapacidade – em se deixar qualquer excesso de capacidade, ou folga, no sistema.

Claramente que a fragilidade não é um desenvolvimento novo mas, no passado, as consequências de falhas catastróficas eram mais ou menos limitadas regionalmente. No mundo actual geopolítico, económico e tecnologicamente interligado, uma ruptura calamitosa num país pode causar um efeito de “contágio” em todo o planeta e estamos a assistir à manifestação da fragilidade mediante formas novas e surpreendentes.

“Quantos dos sistemas fundamentais dos quais dependem a sobrevivência humana podem agora ser razoavelmente considerados como “frágeis?”, questiona. Redes energéticas? Comércio global? Alimentação? Se a fragilidade resulta da ausência de uma “almofada” para falhas, então quaisquer sistemas que dependam da produção máxima correm o risco de colapso se essa produção cair. Uma vez que os nossos sistemas centrais estão frequentemente interligados, é inteiramente possível que a falha de um componente importante possa levar a uma cascata de falhas.

E, infelizmente, pensar neste tipo de coisas leva a um sentimento natural de ansiedade.

ANSIEDADE (A, de Anxiety)

A ansiedade traz consigo uma sensação de impotência, um receio de que, não importa o que façamos, será sempre a coisa errada, estando igualmente intimamente ligada à depressão e ao medo. Num mundo ansioso, todas as escolhas parecem ser potencialmente desastrosas. A ansiedade pode também conduzir à passividade, na medida em que não podemos fazer a escolha errada se não optarmos por nada, certo? Ou pode manifestar-se como um desespero, traduzido na percepção terrível de que perdemos a oportunidade de tomar uma decisão crítica, a qual não se vai repetir. Ou integra ainda um outro sentimento terrível de que existe uma possibilidade muito real de as pessoas de quem dependemos possam tomar uma má decisão que nos deixará a todos muito pior do que antes.

Cascio escolhe o ambiente mediático em que vivemos como um bom exemplo concebido para aumentar a ansiedade, na medida em que nos estimula de uma forma que gera excitação e medo. A apresentação da informação pelos meios de comunicação social centra-se no imediato em detrimento do que é fidedigno. Estamos rodeados do que é apelidado como má informação, uma categoria ampla de mau conhecimento que engloba a desinformação, os exageros, a pseudociência, as notícias falsas e muito mais, sendo esta má informação a cristalização do que desencadeia ansiedade.

Para o investigador, alguns de nós podem adaptar-se a este ambiente criando uma espécie de má informação defensiva, envenenando o fluxo de dados com falsidades intencionais sobre nós próprios, piorando as coisas mas, pelo menos, mantendo algumas delas sob o nosso próprio controlo. Ou adaptamo-nos à mesma abraçando e elevando algumas figuras carismáticas, ou odiando e troçando de outras, ao mesmo tempo que classificamos cada acontecimento como sinal de uma conspiração ou de uma contra-conspiração. E saber que o mundo tem mestres secretos no controlo de todas as coisas tem, e infelizmente, um efeito calmante notável para muitos.

E, neste espírito, chegamos à não-linearidade.

NÃO-LINEARIDADE (N, de Nonlinear)

Num mundo não-linear, a causa e o efeito são presumivelmente desconectados ou desproporcionais, com a possível interferência de outros sistemas e que podem causar enormes atrasos entre as causas e os efeitos visíveis. Assim, e num mundo não linear, os resultados das acções tomadas, ou não tomadas, podem acabar por ser extremamente desequilibrados. Pequenas decisões acabam por ter consequências maciças, boas ou más.

E, como afirma o investigador do Institute for the Future, estamos em plena crise de não-linearidade com a Covid-19.  A escala e o alcance desta pandemia vão muito além da experiência quotidiana, com a velocidade a que a infecção se disseminou durante os seus primeiros meses a ser verdadeiramente extraordinária. Por outro lado, acrescenta Cascio, o conceito de “achatamento da curva” é inerentemente uma guerra contra a não-linearidade.

A ruptura climática é outro problema não-linear. Vemos à nossa volta, com crescente intensidade e frequência, exemplos do mundo real que mostram os impactos das alterações climáticas induzidas pelo aquecimento global… e ainda mal subimos um grau Celsius em relação aos níveis pré-industriais.

Todavia, e como alerta Cascio, existe algo que poucas pessoas sabem: o que estamos a assistir agora é principalmente o resultado das emissões de carbono até aos anos 70 e 80 do século XX. Como explica, há uma inércia maciça no sistema climático global, e as consequências não se manifestam imediatamente, ou seja, existe um longo intervalo entre a causa e o efeito total.

Isso significa que mesmo que tivéssemos feito tudo o que estava previsto no Protocolo de Quioto assinado há quase 25 anos, estaríamos provavelmente a assistir ao tipo de caos climático actualmente em curso. E isso significa que poderíamos deixar de “lançar” qualquer emissão de carbono na atmosfera agora mesmo e ainda assistiríamos a um aquecimento adicional durante pelo menos mais uma geração, bem como temperaturas elevadas contínuas durante séculos. O cérebro humano simplesmente não evoluiu para pensar a esta escala, afirma o investigador.

Mas a Covid-19 e o clima do planeta não são os únicos exemplos. A não-linearidade, especialmente sob a forma de causa e efeito desproporcionados, é também claramente visível no mundo da política, especialmente na política internacional. Como também na economia, desde a rápida difusão da financeirização e a criação de novos instrumentos financeiros até aos sistemas de comércio algorítmico hipercinético. As exigências de crescimento incessante são, em última análise, um requisito de não-linearidade. Mais importante ainda, diz, a não-linearidade é omnipresente nos sistemas biológicos. O crescimento e colapso das populações, a eficácia da vacinação, o comportamento dos enxames, e, como referido, a propagação de pandemias – todos estes eventos têm um aspecto fortemente não-linear. Como escreve, “do exterior, são fascinantes de observar; do interior, são absolutamente perturbadores, como estamos agora a descobrir”.

E, muitas vezes, são completamente incompreensíveis.

INCOMPREENSIBILIDADE – (I, de Incomprehensible)

Assistimos a acontecimentos e decisões que parecem ilógicos ou sem sentido, seja porque as suas origens datam de há demasiado tempo, seja porque são inconcebíveis ou simplesmente demasiado absurdas. “Porque é que o fizeram?” “Como é que isso aconteceu?” Tentamos encontrar respostas, mas as respostas não fazem sentido. Além disso, a informação adicional não é garantia de uma melhor compreensão. Mais dados – mesmo os Big Data – podem ser contraproducentes, sobrecarregando a nossa capacidade de compreender o mundo, tornando difícil distinguir o ruído da informação. Incompreensibilidade é, com efeito, o estado final da “sobrecarga de informação”.

Uma forma de a incompreensibilidade se manifestar, diz Cascio, é com sistemas e processos que parecem estar quebrados, mas que ainda funcionam, ou não funcionam sem qualquer lógica ou razão aparente. A incompreensibilidade parece ser intrínseca ao tipo de machine learning /sistemas de inteligência artificial que estamos a começar a construir. À medida que estes sistemas se tornam mais complicados, aprendem mais, fazem mais, mais difícil se torna compreender exactamente como tomam as suas decisões. Os programadores sabem que existe uma teia de lógica em acção, mas têm dificuldade em perceber exactamente como é que essa teia é moldada. Não podemos simplesmente ignorá-la; regulamentos, como os da União Europeia, exigem cada vez mais que os utilizadores de sistemas algorítmicos sejam capazes de explicar como e por que é que estes sistemas chegaram às suas conclusões.

E isto não é apenas um enigma tecnológico. À medida que a IA se torna mais presente na nossa vida diária, temos de prestar muita atenção às formas como algoritmos complexos podem levar a resultados racistas, sexistas e a outros resultados tendenciosos. O código que aprende “de nós” pode igualmente aprender mais do que as lições e regras pretendidas. Mas, e para já, uma grande parte de tudo isto reside ainda no reino da incompressibilidade.

Os futuristas e a tendência para os cenários apocalípticos

De acordo com Jamais Cascio, uma parte considerável dos que trabalham no campo da imaginação do futuro acusa uma dificuldade em ver o mundo através de uma moldura que nõ seja apocalíptica. Não é porque o desejem fazer desta forma, mas porque outros enquadramentos lhes parecem inadequados ou falsos. O perigo deste impulso é que pode facilmente tornar-se um gatilho para a rendição, um deslizamento para o desespero. Tal perigo não se limita aos futuristas; para tantos em todo o mundo, as coisas são demasiado estranhas, demasiado fora de controlo, demasiado vastas e demasiado frágeis para sequer começarem a imaginar respostas adequadas.

Não tem de ser assim, defende Cascio. Como garante, o sistema BANI oferece uma lente através da qual se pode ver e estruturar o que está a acontecer no mundo. Pelo menos a um nível superficial, os componentes da sigla podem mesmo sugerir oportunidades de resposta: a fragilidade pode ser satisfeita pela resiliência; a ansiedade pode ser aliviada através da empatia e da atenção; a não-linearidade precisa de contexto e flexibilidade e a incompreensibilidade pede transparência e intuição. Estas podem ser mais reacções do que soluções, mas sugerem a possibilidade de se poderem encontrar as respostas necessárias.

Talvez a verdade é que o novo acrónimo BANI dê nome ao pavor que muitos de nós sentimos neste momento. Mas, reforça o investigador, a estrutura mostra que o que estamos a ver não é uma aberração temporária, mas sim uma nova fase.

Todavia, também Cascio está convencido de que algo denso e potencialmente avassalador está a acontecer. Todos os nossos sistemas, desde as redes globais de comércio e informação até às ligações pessoais que temos com os nossos amigos, famílias e colegas, com o undo no geral, estão a mudar e terão de mudar. Fundamentalmente. Completamente. Dolorosamente, por vezes. E, para tudo isto, é necessário uma nova linguagem, na medida em que é algo que vai, definitivamente, exigir uma nova forma de pensar a explorar.

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