Vem tudo isto e a história deste engenhoso fidalgo da Lusitânia a propósito da crença e da capacidade de fazer os outros acreditarem em artes mágicas ou em misticismo de chão de aldeia de há cem anos; pode ser engraçado, mas pode também ser bastamente funesto. A evolução dos saberes é mantida pelos preceitos da experiência e não pela escolha de cada um
POR PEDRO COTRIM

Vem o escrevente destas linhas dar conta de uma circunstância que lhe chegou recentemente por boca amiga. O raciocínio que comanda a fala desta boca amiga nunca chegou a deslindar se a história que se apresenta é verdadeira ou apócrifa.

Era uma vez um médico obstetra que exercia as suas artes antes de a ciência ecográfica ter atingido os cumes em que agora se passeia, sendo que nessas faldas não eram ainda feitos exames às futuras mães que permitissem vislumbrar a forma em que o ser para vir chegaria ao mundo, se num embrulho masculino, se num feminino.

Ora o bom doutor, que me diz a boca amiga ter sido um extraordinário praticante durante toda a sua longa carreira, olhava para a barriga da jovem que tinha à sua frente e fazia uma espécie de regra de três simples ou de noves fora nada, dizendo à portadora do potentado que iria dar à luz um menino ou uma menina, pois que ele tinha forma de saber. A expectante ficava com a vida ainda mais iluminada, pois sabia a partir deste então que a fonte de calor que carregava no ser era de um menino ou de uma menina. O atento doutor fazia um seguimento exímio de toda a gravidez e cuidava com todos os prodígios destas mães e dos seus nascituros.

Ora ainda o bom doutor escrevia na ficha da grávida exactamente o contrário do que lhe dizia na privança do gabinete, escrevendo menino quando verbalizava menina e vice-versa. E neste detalhe assenta toda a construção do que aqui se conta. Os meses passavam como sempre passaram e como sempre passarão e a biologia sucedia como sempre sucederá.

Tendendo o escrevente destas linhas a crer que um doutor tão esmerado não fosse alheio às ciências das probabilidades, que conheceram existência muito antes das ecográficas e que sempre nos disseram que a relação entre os nascimentos de bebés de um sexo ou de outro, hoje sói dizer-se de um género ou de outro, é praticamente de um para um, é de crer que o físico estimasse a metade das mulheres que lhe vinha averiguar o saber que o que traziam na sagrada barriga era um menino e que conjecturasse à outra metade que se tratava de uma menina.

Ora ainda os meses passavam e o milagre da existência era consubstanciado num choro de menino ou num choro de menina, tocado nas sacrossantas oitavas de quem nasce e que sabemos não ter igual nem em Mozart, nem em Beethoven, nem em Bach nem em qualquer outro ungido pelos deuses.

Dias depois chegava a agora consagrada mãe ao mesmíssimo gabinete do bom doutor, tendo a ciência muito proveitosa das probabilidades dado luz a resultados acertados em metade dos vaticínios, ficando a mãe muito grata ao tremendo físico pelo olho certeiro em relação à localização das gónadas do novo ser mais amado e por lhe ter acometido às preocupações que sempre habitaram as mães durante os nove meses mais extraordinários das suas vidas.

Dava-se o caso de em metade das situações a gravidez ter igualmente corrido em tons maravilhosos e de o neófito ao mundo ser precisamente do sexo, ou do género, como sói dizer-se e conforme asseverado linhas acima, contrário ao que o caroável doutor havia previsto verbalmente e a quem, de qualquer das formas, fizera um seguimento esmerado de toda a gestação, sendo que nesse caso a recém-mãe lhe agradecia, mas dizia, em tom de avulsa nota de rodapé, mas sabe, doutor, o doutor enganou-se, tive uma menina quando me disse que teria um menino, ou vice-versa a esta situação.

Ora nessa altura o nosso formidável doutor puxava da ficha que escrevera a respeito da grávida e dizia-lhe olhe que está enganada, entregando-lhe o que havia inscrito na ocasião. Como já aqui ficou dito que grafava o contrário do que sussurrara à então futura mãe, se não tivesse acertado por via vocal, acertava agora por via da grafia.

A recém mãe, acreditando ter ouvido mal na consulta que decorrera meses antes, e fazendo o nosso idioma aproximar muito os morfemas que compõem menino ou menina, ao contrário, por exemplo, do que sucede no idioma mais usado no mundo pós ciência ecográfica e muitas outras medicinas que nos trazem bons proveitos e boas esperanças, idioma que faz de um menino um boy e de uma menina uma girl, havendo neste caso menor margem para uma desatenção de escuta, passava a crer que ouvira mal na consulta e agradecia emocionada ao bom doutor o bom acerto e as boas artes com que a ajudara a levar a gravidez a bom parto.

O bom doutor acertava sempre, fosse na viva voz ou na consagrada feitura da ficha. São ensinamentos com mil anos e diz-se que alguns oráculos praticaram adivinhações com raposias desta ordem de modo a acertarem sempre nas suas clarividências.

Vem tudo isto e a história deste engenhoso fidalgo da Lusitânia a propósito da crença e da capacidade de fazer os outros acreditarem em artes mágicas ou em misticismo de chão de aldeia de há cem anos; pode ser engraçado, mas pode também ser bastamente funesto. A evolução dos saberes é mantida pelos preceitos da experiência e não pelas escolhas de cada um.

Tendo o escrevente destas linhas desempenhado na década de noventa funções de revisão no ido instituto nacional de meteorologia e geofísica, hoje em dia arredondado para um menos reverencial mas porventura mais poético instituto do mar e da atmosfera, chegavam-lhe às mãos relatórios de há mais de vinte anos, vale a pena sublinhar novamente, de há mais de vinte anos, nos quais a conclusão final era tudo menos conclusiva. Havia vieses que davam conta de alterações climáticas, havia vieses que sustentavam o contrário e havia ainda vieses que sustentavam que alterações, se as houvesse, não provinham de nascente antropogénica. Nesta altura a ciência dividia-se e o catastrofismo implícito em algumas teses fez com que muitos se afastassem da doutrina do então chamado aquecimento global.

Ora hoje em dia já não há afastamento sobre este assunto, e ora ainda a ciência compôs-se, avaliou-se, pôs-se em causa e chegou a consensos. No caso das ciências do mar e da atmosfera, é hoje bem sabido que existem alterações climáticas provocadas pela conduta humana.

Serve apenas este apontamento para exemplificar do que trata a ciência. Ora há teorias desavindas, ora há torneios de justa por uma opinião, ora há consensos. Há revisões de pares, há estudos cegos e duplamente cegos, há ciência das probabilidades e há muito empenho e engenho. A ciência compõe-se, avalia-se e põe-se em causa. Quem quiser saber mais tem Popper e Kuhn à disposição e é regalada a leitura destes senhores que nos fazem o favor de por nós averiguar as relevâncias.

E chegamos assim e por fim ao estilóbata da ordem dos dias. A falsa ciência não pode ter sequer um comprimento de Planck cúbico numa pandemia. Dar voz, a que se junta o medo que chegou com os anos vinte, a partidários de teorias que o saber fez caducar, é totalmente contra a escolástica nascida e criada há muitos séculos. E, sobretudo, põe em perigo o semelhante, seja ele mais ou menos querido. Junte-se ainda que acrescentar o termo «convencional» a medicina serve apenas para tentar enfuscar a ciência. Tampouco existe «engenharia convencional» ou «termodinâmica convencional», pois se as houvesse endoideceríamos todos debaixo de edifícios ou no meio de gases de jaez nunca imaginado.

Propagar curas milagrosas, promover placebos que custam mais de trinta dinheiros ou fomentar o uso de compostos tóxicos é leviano; aliás, é criminoso e compromete tudo aquilo por que estamos a lutar. Agora que a pandemia se torna a agravar e que Lisboa volta a apresentar algarismos alarmantes, importa novamente – e este advérbio é desnecessário – dar todo o palco a quem dedica a vida às ciências trazidas a prestar contas. Sucede que nos livros e nos filmes os maus ganham muitas vezes a estima do público por terem uma razão para agir, o que significa uma razão de vida. Para podermos continuar a consumir na ficção conteúdos nos quais os patifes triunfam e que tanto nos agradam, é essencial agora estar do lado dos bons, sendo que este agora significa o presente do passado, do presente e do futuro.

Vacinar, distanciar, mascarar, desinfectar. Verbos que nos são pedidos, mas que poderiam ser impostos. Não os cumprir pode trazer impostos pesados. Se os praticássemos com devoção nem seria necessário confinamento, ou então as grilhetas teriam sido muito mais leves. Já o disse a ciência. Ámen.

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