Quando a ajuda internacional para o desenvolvimento enfrenta incertezas consideráveis, trazemos um olhar alternativo, através de uma experiência em Moçambique, mostrando como o empoderamento comunitário pode ser crucial para melhorar o ensino em regiões de extrema vulnerabilidade socioeconómica. A avaliação final realizada pela Stone Soup Consulting revelou como as metodologias participativas e sensíveis ao género, aliadas ao fortalecimento de estruturas escolares comunitárias, geram melhorias significativas, mesmo em escolas com graves problemas de infraestrutura e superlotação
POR MARIANA SEGRE

Perante o recente congelamento de verbas para o desenvolvimento internacional por parte dos EUA e do anúncio de encerramento de agências e iniciativas de ajuda humanitária, como a USAID – agência responsável por uma importante parte da ajuda humanitária global – acentua-se a necessidade de defender e ampliar o atual modelo de financiamento para o desenvolvimento. Moçambique é atualmente um dos países com maior índice de pobreza do mundo, enfrentando desafios significativos em diversas áreas, com especial gravidade na educação. Neste contexto, o fortalecimento de iniciativas comunitárias torna-se essencial para garantir melhorias duradouras no acesso e na qualidade da educação (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS 4).

Em maio de 2024, viajei para Moçambique, para desenvolver o trabalho de campo da Stone Soup para a avaliação final do projeto BETTER (Better Education Through Teacher Training and Empowerment Results), implementado entre 2015 e 2024 com financiamento da Global Affairs Canada e gestão da ONG canadiana CODE em parceria com a Associação Progresso. Estando focado no desenvolvimento de metodologias participativas e sensíveis ao género, o projeto desenvolveu-se essencialmente nos centros de formação de professores e em escolas primárias parceiras. Durante um mês, graças à visita a três províncias (Maputo, Tete e Niassa), foi possível constatar a realidade desafiante que enfrentam as comunidades locais no que diz respeito à implementação de um sistema de ensino de qualidade, um dos ODS (ODS 4) que fazem parte da Agenda 2030. Nos dias que passei em Moçambique, pude observar a falta de infraestruturas, a escassez de materiais escolares, salas de aula superlotadas, e verificar no terreno como tudo isso afetava o baixo aproveitamento escolar dos alunos moçambicanos.

A certa altura, pude presenciar, como, em algumas das comunidades, essas dificuldades eram vividas pelos alunos de educação primária. As crianças enfrentavam desafios acrescidos aos que já tinham de enfrentar as outras comunidades escolares: vi como essas crianças assistiam às aulas num espaço exterior junto de um mercado local, debaixo de uma árvore, e como eram constantemente interrompidas no seu desafio de aprender. Embora focadas e com atenção ao professor, que se esforçava para ensinar naquelas condições, eram muitas vezes distraídas pelo vai e vem de pessoas na sua vida quotidiana e nos afazeres das suas compras. Observei como os alunos, claramente sem as condições mínimas necessárias para a aprendizagem, não tinham outra solução, senão a de utilizar pedras como mesas de apoio. Pude ainda ver como, noutros casos, algumas turmas contavam com mais de 100 alunos, juntando-se numa imensa prole, em redor de um único professor para os orientar – um número impressionante e cinco vezes superior ao recomendado pela UNESCO.

Apesar das dificuldades, também encontrei motivos para celebrar, porque no final os resultados alcançados, com o contributo das metodologias participativas desenvolvidas neste projeto, acabaram por mostrar-se eficazes como ferramentas de apoio aos professores na gestão destas turmas numerosas e no consequente aumento do aproveitamento escolar dos seus alunos. Por exemplo, os alunos da terceira classe passaram a conseguir ler e escrever, o que normalmente não é observado em escolas que não adotam tais metodologias, de acordo com dados recolhidos no terreno. Pude também constatar que as abordagens sensíveis ao género, por sua vez, acabaram por ter também um impacto visível na forma como alunos, professores e comunidade tratam questões relacionadas com os papéis de género, como a gestão menstrual e a gravidez precoce, apoiando a dignidade das meninas e promovendo a igualdade e o respeito dentro e fora da sala de aula.

Um dos impactos mais reveladores deste projeto, foi o empoderamento dos Conselhos de Escolas. Sendo compostos por pais, encarregados de educação e membros da comunidade, funcionam, como os órgãos máximos de consulta, monitorização e fiscalização das escolas em Moçambique. Estes órgãos, ainda assim, enfrentavam limitações na sua atuação devido à falta de conhecimento dos seus membros sobre as suas atribuições, diminuindo parte do seu potencial de impacto positivo na comunidade escolar. Com a capacitação sobre os papéis de cada membro e com as informações sobre como o Conselho de Escola se pode envolver nas decisões da escola, pôde observar-se um aumento da frequência dos professores justamente devido ao envolvimento e influência do Conselho para alcançar uma melhoria na gestão escolar. Os conselhos tiveram também um papel fundamental na reintegração de raparigas grávidas no ambiente escolar através da mobilização e apoio comunitário. Alguns Conselhos intervencionados, organizaram ainda campanhas comunitárias de angariação de fundos destinados à construção de salas de aula. Enquanto as empresas locais foram mobilizadas e contribuíram com a doação de materiais, a comunidade envolveu-se na construção das salas.

Será assim possível afirmar que o sucesso do projeto BETTER acaba por demonstrar que o empoderamento comunitário pode ser a chave para a sustentabilidade de iniciativas educacionais em contextos desafiadores, como este que tive a oportunidade de observar em Moçambique. Este modelo merece atenção especial num momento em que a sustentabilidade das iniciativas de desenvolvimento internacional se torna cada vez mais crucial, e requer intervenções com esta, observada e avaliada pela Stone Soup. A experiência em Moçambique demonstra também aos decisores políticos e investidores sociais que, mesmo diante de desafios estruturais significativos, tanto ao nível regional, como global, o empoderamento comunitário pode contribuir para ajudar a catalisar transformações educacionais profundas e resilientes.

Imagem: © bill wegener/Unsplash.com

Consultora Principal na Stone Soup

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