Trabalho presencial, remoto ou híbrido? A pergunta pode parecer recente, mas a verdade é que há muito que o modelo tradicional de trabalho está a ser posto em causa. O século XXI, e em particular a última década, acelerou uma mudança inevitável: deixámos de aceitar que o local de trabalho seja o único centro da nossa vida adulta. A pandemia apenas deu o empurrão final
POR BERNARDO DIAS
Durante décadas, fomos ensinados que trabalhar era sinónimo de estar presente. Cartões para picar o ponto, secretárias em open space, reuniões infindáveis — tudo fazia parte de um ritual que misturava produtividade com vigilância. Em muitas empresas, ainda hoje é assim. O colaborador é avaliado pela sua pontualidade, pela sua presença física, e não necessariamente pelo valor que acrescenta. Esta cultura de controlo, herdada do século XX, persiste porque dá uma falsa sensação de segurança às chefias: se está aqui, está a trabalhar.
No entanto, essa visão é redutora. Para a doutrina social da Igreja, o trabalho não é apenas uma obrigação económica, mas uma forma de participação na obra criadora de Deus. É uma vocação. Como recorda São João Paulo II na encíclica Laborem Exercens, o trabalho é “para o homem”, e não o homem para o trabalho. Ou seja, o trabalho deve servir a dignidade da pessoa, e não esmagá-la.
A pandemia veio pôr isso em evidência. Mostrou que o trabalho pode (e deve) adaptar-se à vida, e não o contrário. Com o teletrabalho, muitos descobriram que era possível cumprir as suas responsabilidades com mais autonomia, menos deslocações, mais tempo com a família — sem perda de qualidade. Foi, para muitos, um reencontro com a liberdade e com o verdadeiro sentido do tempo.
Mas o trabalho remoto também trouxe novos desafios: o isolamento, a dificuldade em separar o tempo profissional do pessoal, o excesso de digitalização. E, acima de tudo, a sensação de que, mesmo em casa, nunca se está realmente “fora” do trabalho. Tudo isto tem impacto direto no equilíbrio da vida familiar, nas relações sociais, e até na vida espiritual.
É aqui que entra o modelo híbrido, apresentado por muitos como o “meio-termo ideal”. Ir ao escritório dois ou três dias por semana, manter alguma flexibilidade, fomentar a cultura de equipa sem abrir mão da autonomia. Em teoria, parece a solução perfeita. Na prática, depende — e muito — da forma como é implementado.
O modelo híbrido só funciona bem quando é pensado com intenção. Caso contrário, corre-se o risco de manter as desvantagens dos dois mundos: falta de foco em casa, perda de tempo no escritório. Pior ainda, pode criar desigualdades dentro das equipas — quem vai mais vezes ao escritório pode ter mais visibilidade, mais oportunidades, enquanto os que ficam mais tempo em casa correm o risco de serem esquecidos.
Mais do que debater qual o melhor modelo, devíamos estar a discutir outra coisa: o que é, afinal, uma boa cultura de trabalho?
Uma boa cultura laboral não se define pelo local onde se trabalha, mas sim pelos valores que se praticam: respeito, confiança, flexibilidade, responsabilidade. Empresas que cultivam estes valores conseguem adaptar-se a qualquer modelo, porque colocam as pessoas no centro das decisões. São organizações que percebem que o talento não se mede em horas passadas à secretária, mas em criatividade, empenho e resultados.
A cultura organizacional, que antes se construía em corredores, cafés e reuniões presenciais, hoje tem de ser cultivada também à distância. Isso exige intencionalidade: promover momentos de partilha, criar canais de comunicação eficazes, valorizar o contributo de todos e garantir que os valores da empresa são vividos e não apenas proclamados.
A nova geração que entra no mercado de trabalho não está disposta a aceitar as mesmas regras do passado. Quer flexibilidade, sim, mas também quer propósito. Quer sentir que está a contribuir para algo maior, e não apenas a cumprir tarefas. Quer liberdade, mas também reconhecimento. E está disposta a mudar de emprego — ou a recusar um — se esses critérios não forem cumpridos.
Também o princípio do bem comum deve ser recordado. O trabalho não é apenas um meio de sustento individual; é uma forma de contribuir para a sociedade. Um ambiente de trabalho saudável, justo, onde se promove a colaboração e a solidariedade.
As empresas que não perceberem isto ficarão para trás. As que apostarem numa cultura de trabalho adaptada ao século XXI — mais humana, mais digital, mais flexível — terão uma vantagem competitiva clara. Porque o futuro do trabalho não é remoto, nem presencial, nem híbrido. O futuro do trabalho é adaptável. É plural. É desenhado à medida de pessoas reais, com vidas reais.
Trabalhar é servir. Trabalhar é construir. Trabalhar é cooperar com Deus na transformação do mundo. Seja no escritório, em casa, ou num modelo misto, que nunca nos esqueçamos disto.
E talvez essa seja a maior mudança de todas: percebermos, finalmente, que o trabalho deve adaptar-se à vida — e não o contrário.
Imagem: © John Petalcurin/Unsplah.com
34 anos, solteiro, licenciado em Gestão e Mestre em Finanças pela Universidade Católica. Trabalha na EDP, na área de Estratégia da plataforma de redes do Grupo, para Portugal, Espanha e Brasil. É membro da ACEGE NEXT