Tendo como ponto de partida a crise de 2008, o mais recente livro do sociólogo Nigel Dodd, professor na London School of Economics, fornece um enquadramento nada ortodoxo sobre a verdadeira natureza do dinheiro. The Social Life of Money obriga a uma reavaliação de tudo o que sempre pensámos sobre o dinheiro, cruzando conceitos económicos, filosóficos, antropológicos, da linguística e até da psicanálise, e figuras tão díspares como Marx, Nietzche, Platão, Kant ou Simmel. E vem muito a propósito dos ventos de (aparente) mudança que sopram da Grécia
POR
HELENA OLIVEIRA

“Costumamos pensar no dinheiro enquanto notas e moedas (…). Mas, na verdade, na maioria das vezes este toma a forma de ‘reivindicações’ efectuadas através do sistema bancário, e mediadas por cartões de plástico. O dinheiro tem uma qualidade dinâmica – é mais um verbo do que um substantivo. O dinheiro é uma reivindicação que se movimenta entre pessoas e é esse movimento que sustém o seu valor. Não tem valor devido às suas qualidades intrínsecas, mas por causa da série de relacionamentos dos quais faz parte. Por exemplo, aceitamos dólares, euros ou yens como recompensa do nosso trabalho e, de seguida, trocamo-los por bens e serviços.

Por outras palavras, o dinheiro define-se por aquilo que faz e não por aquilo que é.”

Nigel Dodd

O que é o dinheiro? É a esta pergunta que o sociólogo Nigel Dodd, professor na London School of Economics, tenta responder no seu mais recente livro “The Social Life of Money”. Ubíquo e entendido como uma garantia para todos – não no sentido de termos o suficiente nos bolsos ou nas contas bancárias, mas antes ligado ao facto de apreçarmos objectos, bens, serviços, necessidades, e até o tempo, de acordo com normas monetárias – raramente nos questionamos sobre a sua verdadeira natureza.

Enciclopedicamente definido como um meio de troca por excelência, cujas origens e consequente evolução remontam aos tempos em que foi necessário conferir valores distintos às diferentes mercadorias transaccionadas, o dinheiro na “modernidade” é-nos comummente apresentado como um avanço mecânico – não muito diferente do que aconteceu com a roda, por exemplo – que reduziu as suas dificuldades logísticas. A visão de Nigel Dodd é, contudo, oposta à definição do dinheiro enquanto uma mera forma de transacção, argumentando que nos faltam provas que suportem esta visão do dinheiro, estreita e orientada para a troca, e sugerindo que, na melhor das hipóteses, a mesma está incompleta e, na pior, representa um enorme constrangimento no que respeita a imaginarmos um mundo melhor.

05022015_AvidaSocialDoDinheiroTendo como pano de fundo a crise financeira global de 2008 – em particular o resgate grego – o autor afirma ser tempo de se reconsiderar a natureza do dinheiro, na medida em que este atingiu um ponto crítico, em conjunto com novas formas e sistemas monetários a proliferarem rapidamente, de que são exemplo as moedas virtuais como o Bitcoin, o mobile money, os empréstimos sociais, entre outros, que se afastam da hierarquia dos Estados e dos bancos. Apesar de a sua abordagem ser sociológica, o autor socorre-se de conceitos económicos, filosóficos, antropológicos, da linguística e até da psicanálise, e de figuras tão díspares como Marx, Nietzche, Platão, Kant ou Simmel, que escreveram sobre o dinheiro, mas não numa perspectiva estritamente “economicista”. Não oferecendo nenhum caminho, mas antes múltiplas narrativas, Dodd recorda, por exemplo, que alguns académicos defenderam que o dinheiro “inicial” evoluiu como um tributo aos líderes religiosos, enquanto outros argumentaram que este servia, essencialmente, a necessidade humana de dar e receber presentes, ou ainda aqueles que o encararam como uma forma de comunicação com base numa linguagem comum. Em suma, o que Nigel Dodd tenta transmitir é que o dinheiro não evoluiu enquanto um instrumento mecânico que facilitasse as trocas entre partes distintas mas, e ao invés, sempre serviu propósitos sociais: “o dinheiro teve [e continua a ter] uma vida social”.

Apesar de integrar nesta análise inovadora várias perspectivas académicas, o autor – que escreveu igualmente, em 1994, o livro “The Sociology of Money: Economics, reason and contemporary society” e irá publicar, este ano, um outro intitulado “Re-Imagining Economic Sociology” – assenta a sua abordagem no mundo real, sugerindo, por exemplo, que os recentes desenvolvimentos nos mercados provam que o sistema é disfuncional para as famílias e para os negócios “comuns”, propondo concepções sociais diferentes sobre o dinheiro que poderão conduzir a melhores resultados.

Por exemplo e com a Grécia a dominar o panorama político actual e, consequentemente, o mediático, vem a propósito a história relembrada por Dodd sobre o famoso “jubileu da dívida”, praticado na Mesopotâmia e na Babilónia, o qual decretava a anulação generalizada de dívidas dos cidadãos para com os poderes públicos, os seus altos funcionários e dignitário.

Ou, em suma, argumentando que o mesmo tinha propósitos sociais, Dodd sugere que políticas similares que oferecessem o perdão das dívidas, em particular aos agregados, durante a crise recente, poderiam ter tido melhores resultados sociais. Ao invés, a raiva e a desconfiança no que respeita às instituições – na medida em que se resgataram bancos, mas não pessoas – continuam a ecoar. Um outro exemplo de como a realidade parece estar em consonância com a escrita de Dodd [o livro em causa foi publicado em Novembro de 2014], vem da Croácia, a qual fez saber que pretende anular as dívidas de 60 mil cidadãos, com vista a dar um novo começo e “algum futuro” aos mais pobres.

Dodd é igualmente adepto da noção de “mutualismo” no dinheiro, referindo as abordagens dos empréstimos ou a angariação de fundos peer-to-peer, como o Kiva, o Kickstarter ou o Bitcoin e outros sistemas sociais de pagamento “anárquicos” e descentralizados, que não obedecem à hierarquia dos Estados e da Banca, os quais, assegura, têm numerosos paralelos com os esquemas expostos por vários académicos ao longo dos séculos.

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“Nós somos a verdadeira moeda”

A frase acima, escrita num dos inúmeros cartazes empunhados pelo movimento Occupy Wall Street, relembrou ao professor da London School of Economics (na altura a escrever este livro) que a crise financeira não tinha a ver com a banca, mas antes com a “representação do dinheiro, a qual é muito mais próxima da nossa humanidade central, comunalidade e socialidade”. O mesmo aconteceu com o livro do sociólogo alemão Georg Simmel, The Philosophy of Money, publicado em 1900, um dos que mais o influenciou na sua investigação académica, e que nunca o deixou afastar da ideia de que o livro que estava a escrever era sobre dinheiro e não sobre instituições financeiras. Apesar de muitas ideias utópicas fazerem parte deste exercício, nada fácil, de leitura, um dos principais enfoques do livro de Dodd é perceber de que forma o dinheiro pode ser removido do “domínio e da má gestão por parte dos bancos”. E a crise financeira, a qual representa a “gota de água” de um sistema em profundo colapso, obrigou-o a “reconsiderar a natureza do dinheiro”, dando origem a novas propostas e formas de pensar sobre o tão famoso vil metal.

Dodd explica que, na sua perspectiva, a crise financeira de 2008 destacou uma “configuração complexa e dinâmica dos diferentes factores e relações, dos quais depende o nosso sistema de dinheiro”, e que incluem factores sociais e económicos, em conjunto com relações políticas. “O sistema financeiro cresceu de uma forma absurdamente desproporcional relativamente ao resto da economia, distorcendo o capitalismo, agravando a desigualdade, prejudicando a sociedade e expondo as suas principais instituições a riscos inaceitáveis”, afirma, acrescentando que esta situação foi aceite por partidos políticos tanto da ala esquerda como da direita.

Na medida em que um dos principais objectivos do livro consiste na revisão da natureza do dinheiro vigente e, em particular, a sua natureza social, Dodd sugere que é possível abordar o dinheiro e os sistemas de crédito mediante novas formas de organização e com um realinhamento diferente. Tal como explica na introdução ao livro, esta abordagem alternativa exige percepcionar a relação que o dinheiro tem com diferentes factores, desde o seu próprio valor, às conexões que tem com a comunidade, às formas que o ligam fortemente ao poder e ao Estado, os elos que o mantêm ligado aos rituais e à religião e a forma como está igual e fortemente associado à identidade, ao “eu” e à cultura. De acordo com o professor de Sociologia, esta necessidade tornou-se ainda mais urgente depois da crise financeira, o que leva a novas questões sobre quem deve produzir o dinheiro e de que forma os bancos criam o crédito.

Insistindo no facto de que o dinheiro não é uma “coisa”, mas um processo, caracterizado por diversas relações sociais, Dodd argumenta assim que o mesmo nunca é independente das relações sociais e políticas – ou da cultura -, tendo sempre como base a confiança e os valores sociais. Na prática, pode ser materializado em metais preciosos, em notas e moedas, em bits e bytes, em conchas ou qualquer outra que seja a forma que adopte, mas a verdade é que o seu valor e o seu significado derivam sempre das relações sociais existentes entre os seus utilizadores. Numa das recensões feitas ao livro – e acessível através do site do FMI – pode ler-se que ao aceitar, em termos conceptuais, o pluralismo monetário, o autor pretende mostrar o caminho para múltiplas oportunidades de se reimaginar e reorganizar o dinheiro como uma forma de progresso social. “Se o pensamento social clássico sobre o dinheiro tende a encará-lo como algo malévolo, sublinhando a capacidade que tem para ameaçar e corroer a sociedade e a cultura, Dodd, por seu turno, explora o seu progressivo potencial”, pode ler-se no website do FMI. E uma das mensagens principais que tenta passar prende-se com a possibilidade de este ser organizado de uma forma benéfica e ser usado para atingir propósitos não só económicos e políticos, mas também sociais. Todavia, como não existe nenhuma forma singular de dinheiro que tenha capacidade para servir diferentes propósitos em simultâneo, Dodd acaba por defender um sistema monetário flexível, com variadas formas e espécies de dinheiro co-existentes: na verdade, de acordo com a sua visão, a solução para a crise monetária não reside no desenvolvimento de uma forma alternativa de dinheiro, mas de várias.

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“Os pobres constituem um mercado muito lucrativo”

Dividido em oito capítulos – origens, capital, dívida, culpa, desperdício, território, cultura e utopia, o livro de Nigel Dodd apresenta alguns dos ingredientes necessários quando se escreve sobre dinheiro (apesar da inovação em termos de perspectivas), em conjunto com outros que constituem verdadeiras surpresas e que demonstram o quão original é a sua escrita.

Por exemplo, no capítulo dedicado à dívida – a mais discutida característica do capitalismo contemporâneo – o sociólogo recorda que esta é muito mais antiga que o próprio capitalismo, o qual contribuiu em muito para lhe conferir uma natureza muito mais negativa e impessoal. Dodd refere igualmente que os debates contemporâneos estão concentrados na vasta escala das obrigações financeiras que se foram acumulando na era moderna. Contudo, como escreve na introdução ao livro, o termo “dívida” é muito mais amplo, e a sua “economia moral” é de crucial importância para o seu relacionamento com o próprio dinheiro. Dood explica ainda que, neste capítulo, a discussão começa com a história da dívida, a qual traça o seu desenvolvimento enquanto, originalmente, uma característica fundamental da sociedade humana – “um lubrificante social” – até à sua apropriação subsequente – e “violenta” – pelo Estado e pelo capitalismo financeiro.

E, no capítulo que se segue, são os argumentos de Nietzche que funcionam como a lente por excelência para explorar a economia moral da dívida enquanto culpa. De acordo com Dodd, o famoso filósofo alemão do século XIX ofereceu importantes perspectivas sobre a relação existente entre a economia do dinheiro e a decadência permanente da modernidade, o efeito do dinheiro na hierarquia social e no individualismo e na própria economia moral da dívida.

E é também no capítulo seguinte, dedicado ao “desperdício”, que o autor volta a ligar a história ao mundo contemporâneo. Entendido, ao longo dos tempos, como o meio primordial para gerir a escassez, o dinheiro não é, na sua perspectiva, uma ferramenta para gerir a escassez, mas antes uma forma de a perpetuar. Adicionalmente, Dodd afirma que “o dinheiro custa mais quando se é pobre”. E oferece um exemplo simples que confere sentido imediato às suas palavras: “Quando falamos em hipotecas e empréstimos, quando mais pobre se é, mais elevadas são as taxas de juro”, acrescentando ainda que “os pobres são um mercado lucrativo”. “Veja-se o exemplo da Western Transfer: se alguém quiser enviar 10 libras à família que habita no estrangeiro, tem de se pagar 25% desse valor para que a transferência seja feita”. Ou seja, existe uma enorme indústria que ganha dinheiro à conta dos pobres.

Argumentando que transformar o dinheiro abre caminho para a criação de mudança (mais positiva), o professor da LSE afirma também que este é capaz de disseminar mensagens e transformar comportamentos. E, por isso, são já muitas as pessoas que pensam em novas formas de o redesenhar para que seja possível desenvolver sistemas que melhorem a vida das pessoas. Apesar de o dinheiro não poder ser “a-político”, abordar a mudança através dele mesmo e não de acordo com a política “pode ser muito inspirador”

E é por estas e por outras formas alternativas de se pensar sobre o dinheiro que vale a pena ler este livro.

Editora Executiva