POR MÁRIA POMBO
A nível mundial, 11% da população infantil é obrigada a trabalhar. Isto significa que mais de 264 milhões de crianças desempenham tarefas por conta de outrem e que 168 milhões trabalham como se de adultos estivéssemos a falar. Como se estes números não fossem demasiado “severos”, acrescentamos que mais de metade destas crianças (cerca de 85 milhões) executa trabalhos perigosos. A região da Ásia-Pacífico é aquela onde se regista um maior número de crianças envolvidas em actividade económica, mas é na África Subsaariana que se regista uma maior percentagem de exploração infantil no trabalho. A América Latina e os países do Médio Oriente e Norte de África são as regiões que albergam menor número e percentagem de crianças a trabalhar.
Estes dados preocupantes fazem parte de um estudo alargado da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no qual é feito um retrato do trabalho infantil entre os anos 2000 e 2012. Trata-se do último de quatro relatórios (cujos três primeiros reuniram dados em 2000, 2004, 2008) elaborados pela mesma organização sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho e focados no trabalho infantil.
A OIT faz uma clara distinção entre “crianças ligadas a uma actividade económica” (ou crianças trabalhadoras) e “trabalho infantil”: o primeiro conceito é mais lato e inclui o desempenho de tarefas, comerciais ou domésticas, desde que as mesmas sejam feitas por crianças e fora do âmbito familiar, independentemente de serem ou não remuneradas; o segundo está dentro do primeiro e é mais preocupante, tendo em conta que se refere ao exercício de uma “verdadeira” profissão, por parte de crianças, apesar de estas não estarem em idade legal para trabalhar. Há ainda o conceito de “trabalho perigoso”, através do qual as crianças são sujeitas a actividades que ponham em risco a sua sobrevivência ou que conduzam a problemas de saúde (como exemplo, a OIT fala em trabalho nocturno, trabalho em minas ou em alturas perigosas, exploração física, psicológica ou sexual, etc.).
O estudo apresenta ainda os desafios que o mundo enfrenta e as perspectivas futuras, nesta temática. A principal dessas perspectivas é clara: não será cumprido o objectivo urgente, definido pela própria OIT, de eliminar, até 2016, qualquer forma de trabalho infantil. Para além disso, a organização alerta a comunidade internacional para o facto de existirem regiões, como a Europa de Leste, a Ásia Central e algumas economias industrializadas, que não disponibilizam estes dados, dificultando a análise e a implementação de medidas que possam combater o flagelo da exploração infantil.
Os progressos que já se sentem
Se compararmos os dados mais recentes com os do primeiro relatório, referentes ao ano 2000, e olharmos aos mais de 245 milhões de crianças que, naquela altura, eram exploradas no trabalho, percebemos que a tendência tem sido positiva e que é decrescente o número de jovens a trabalhar, em todo o mundo. Do ponto de vista regional, e apesar da descida generalizada, a realidade não se alterou: a África Subsaariana continua a ser a região com maior percentagem de trabalho infantil.
[pull_quote_left]144 milhões de crianças entre os cinco e os 14 anos estão envolvidas em actividade económica[/pull_quote_left]
Do total de 264 milhões, a faixa etária entre os cinco e os 14 anos é aquela que regista um maior número de crianças (144 milhões) envolvidas em actividade económica e também aquela onde se tem verificado um maior progresso. Este facto tem, aliás, constituído uma preocupação política, dada a vulnerabilidade destas crianças e os maus tratos a que estão sujeitas. Já o grupo de crianças mais velhas, entre os 15 e os 17 anos, é o que regista oscilações mais ténues, tendo inclusivamente ocorrido um forte aumento desta exploração entre 2004 e 2008, o qual voltou a baixar em 2012. De todas estas crianças o género feminino foi o que registou uma maior diminuição (40%), ao longo destes 12 anos; os rapazes registaram uma redução de apenas 25%.
O nível de rendimentos dos países, factor pela primeira vez analisado, não foi surpreendente: os mais pobres são os que registam maior índice de trabalho infantil, com cerca de 74 milhões ou 23% do total. Os países com rendimento médio baixo são os que acolhem um maior número de crianças trabalhadoras (cerca de 81 milhões), mas o mesmo é justificado pelo igualmente elevado número total de crianças (trabalhadoras e não trabalhadoras), existindo assim uma percentagem relativamente baixa de crianças (9%) ligadas a actividade económica.
No entanto, o relatório salienta que não é tanto o nível de rendimentos, mas antes a localização geográfica, que determina a probabilidade de ser maior o número de crianças que são obrigadas a trabalhar. Se olharmos aos vastos terrenos agrícolas dos países do interior, concluímos que os mesmos são mais propensos a ter crianças a exercer uma profissão do que os do litoral, considerando que a agricultura é o sector que regista, hoje como no início do estudo, um maior número de crianças trabalhadoras. Apesar da diminuição constante, são mais de 98 milhões (o que equivale a cerca de 50%) as crianças que estão ligadas a actividade económica, neste sector. Os serviços surgem em segundo lugar, albergando 54 milhões de crianças (11 milhões dos quais exercem serviços domésticos). Por fim, existem “apenas” 12 milhões (ou seja, 7%) de crianças alocadas à indústria.
O período que decorreu entre os anos 2008 e 2012 foi aquele em que se verificou uma redução mais acentuada do trabalho infantil, tendo coincidido precisamente com a época em que a crise financeira teve consequências mais devastadoras em diversas partes do mundo. No entanto, esse facto é também o motivo desta quebra acentuada: a crise não deu tréguas aos países em desenvolvimento, mas estes foram relativamente rápidos a adaptar-se às suas consequências e a superá-las. Outro motivo prende-se com o abrandamento geral da procura de trabalhadores, igualmente provocado pela crise e que “poupou” muitos dos jovens com idades entre os 15 e os 17 anos.
[pull_quote_right]A África Subsaariana concentra a maior percentagem de exploração infantil no trabalho[/pull_quote_right]
A este respeito, os responsáveis por este estudo alertam para que sejam tomadas medidas que previnam o retrocesso dos passos que foram dados recentemente, no momento em que a crise terminar. Aliás, um relatório da SOMO – Centro de Investigação sobre Empresas Multinacionais conclui que muitos empregadores do sector industrial (principalmente do têxtil) e donos de terrenos onde se produz algodão preferem contratar crianças, considerando, por um lado, que estas são mais obedientes e que, por outro, não danificam as matérias-primas, por terem mãos mais pequenas, deixando desta forma as peças mais perfeitas.
Segundo a OIT e de acordo com as conclusões do estudo, as acções internacionais devem continuar a focar-se no sector agrícola e nas faixas etárias mais jovens. No entanto, é feito o alerta para que não seja esquecido o número ainda elevado de crianças ligadas aos serviços e à produção industrial, nem o número de jovens que, embora já não sejam crianças, ainda não são adultos e merecem a mesma protecção que as restantes.
Os esforços da comunidade internacional em implementar as convenções da OIT (nomeadamente sobre a idade mínima para trabalhar, as piores formas de trabalho infantil e os direitos das crianças) devem, assim, continuar a ser feitos, para que o fim do trabalho infantil se transforme, rapidamente, em realidade.
Para finalizar, o relatório apresenta um conjunto de desafios às nações mais desenvolvidas, considerando os progressos já alcançados e as vitórias ainda por conquistar.
Estando claro que a exploração infantil não existe apenas nos países com baixos rendimentos, é importante melhorar a informação disponível, a nível mundial, sobre esta temática: ter acesso aos dados implica que possam ser tomadas medidas adequadas à realidade, implementando-as onde o trabalho infantil ainda persiste. Adicionalmente, têm que ser desenvolvidas formas que, de facto, reforcem e promovam a escolaridade obrigatória das crianças e o seu desenvolvimento feliz e saudável (porque aumentar a receita dos países em desenvolvimento, por si só, não resolve o problema). Desta forma, os incentivos ao emprego devem ser atribuídos a jovens que estejam em idade legal para trabalhar e que tenham frequentado a escola.
A diminuição acentuada do trabalho infantil, no sexo feminino, é um reflexo do progresso que tem sido feito, mas o mesmo terá de acontecer também para o sexo masculino. A igualdade de género pretende exatamente isso: o mesmo direito à educação, à saúde e às oportunidades e, neste contexto, a realidade não deve ser diferente.
[pull_quote_left]O período entre 2008 e 2012 foi o que registou uma redução mais acentuada do trabalho infantil[/pull_quote_left]
Por ser a região onde tem sido mais lenta a diminuição de trabalho infantil, a África Subsaariana deve merecer uma especial atenção por parte da comunidade internacional, para que sejam cada vez menores os riscos que as crianças correm e para que seja reforçada a implementação de planos que visem a sua protecção. Igual destaque merecem as zonas onde a agricultura é o principal “ganha-pão” das comunidades e onde trabalha a larga maioria de crianças. No entanto, a prestação de serviços não deve ser ignorada, principalmente no que ao trabalho doméstico diz respeito, dada a facilidade de exploração e de abuso.
Finalmente, a OIT apela à não desaceleração da cooperação entre os países e as organizações mundiais. O facto de os indicadores revelarem progressos significativos não deve ser motivo para que se “abrande o ritmo”. Pelo contrário, deve ser um pretexto para que as nações se unam cada vez mais, tendo em conta que o trabalho dos últimos anos está, finalmente, a dar alguns frutos.
São quase 170 milhões as crianças que são obrigadas a trabalhar, todos os dias, e não têm, ainda, direito a viver uma infância digna e feliz. A erradicação da exploração infantil no trabalho está, como se vê, muito longe do fim.
Jornalista