POR HELENA OLIVEIRA
Será que o carácter de um CEO tem influência nos resultados financeiros da organização que lidera? A pergunta, quase tão velha quanto a história da própria liderança, há muito que acolhe vários tipos de resposta. Se, por um lado, é politicamente correcto afirmar que uma liderança de excelência exige um líder íntegro, por outro, o estilo de liderança “à Gordon Gekko”, a memorável personagem dos filmes que retratam a vida em Wall Street e cujo hino “greed is good” inspirou toda uma geração de dirigentes ambiciosos e pouco dados a “boas acções”, é também tido por muitos como a melhor forma de gerar verdadeiro retorno para as organizações e, consequentemente, para os accionistas. Adicionalmente, existem também muitos registos que comprovam que os líderes, mesmo que consigam resultados chorudos ao longo de alguns anos, acabam por cair em desgraça, exactamente devido à sua falta de carácter. Em Portugal e recentemente, os exemplos não têm sido poucos.
Contudo, a verdade é que a maior parte dos executivos permanecem cépticos e/ou indiferentes no que respeita ao verdadeiro valor do carácter, considerando-o apenas como a “cereja no cimo do bolo”, bolo esse cuja massa é feita, essencialmente, de uma boa estratégia e recheada por um sólido modelo de negócio. A verdade é que nunca existiram dados suficientes – e consubstanciados – que comprovassem a existência de uma ligação directa entre o carácter de um CEO e os bons (ou maus) resultados da organização que lidera. Até agora.
[pull_quote_left]Nunca existiram dados suficientes que comprovassem a existência de uma ligação directa entre o carácter de um CEO e os bons (ou maus) resultados da organização que lidera. Até agora.[/pull_quote_left]
Ao longo de sete anos, Fred Kiel – doutorado em psicologia e co-fundador da firma de desenvolvimento em liderança e de análise estratégica, e pioneira na área de executive coaching, a KRW International – em conjunto com a sua equipa, realizou entrevistas de fundo a 84 CEOs e respectivas equipas de executivos, às quais adicionou o feedback de 8,600 empregados, tendo chegado a uma fórmula – que inclui também, e obviamente, os resultados financeiros das empresas em causa – que permite afirmar que os denominados líderes virtuosos conseguem atingir performances cinco vezes superiores às dos seus pares “não-virtuosos” ou autocentrados, como são definidos os que menos carácter demonstram. A pesquisa e respectivos resultados foram agora publicados em livro, sob o título Return on Character: The Real Reason Leaders and Their Companies Win, e do seu universo constam organizações pertencentes ao ranking 500 da Fortune, privadas, mas também sem fins lucrativos.
Através do inventário clássico do antropólogo Donald Brown, que lista os comportamentos e características que são reconhecidos e manifestados em todas as sociedades humanas, os investigadores da KRW International identificaram quatro princípios morais universais inerentes ao carácter (abaixo definidos), enviando, de seguida, inquéritos anónimos aos empregados das 84 empresas e organizações sem fins lucrativos selecionadas, questionando, entre outras coisas, sobre o quão consistentemente os seus CEOs e equipas gestão incorporavam esses mesmos princípios. Adicionalmente, entrevistaram um conjunto alargado de executivos analisando, igualmente, os resultados financeiros da organização. Quando estes últimos lhes eram negados, os CEOs eram excluídos.
Apesar da relação entre o carácter, a liderança de excelência e os resultados organizacionais já ter sido aflorada, por várias vezes, na literatura de gestão, de acordo com a Harvard Business School Press, a editora responsável pelo livro, este é o “mais importante estudo até agora realizado que consegue demonstrar uma relação mensurável entre o carácter de um CEO e o sucesso empresarial”, aqui definido como ROC (Return On Character). E sim, a editora poderia até estar a puxar a brasa à sua sardinha, mas a verdade é que todas as críticas já feitas ao livro confirmam esta declaração. Vejamos porquê.
Princípios universais, cabeça e coração
Ao longo de mais de três décadas, a KRW International tem vindo a ajudar muitos CEOs e executivos de topo pertencentes a empresas do ranking da Fortune 500 a melhorar a sua eficácia organizacional através da excelência em liderança e de um “alinhamento” da sua missão. A consultora de Kiel é (re)conhecida pela rigorosa recolha de dados que realiza, bem como pelos processos de desenvolvimento customizados que oferece aos seus clientes. Quando, há mais de sete anos, surgiu a ideia de que era possível construir uma métrica que avaliasse os comportamentos gerados pelo carácter, a KRW International acabaria por escolher 84 empresas sedeadas nos Estados Unidos, sobre as quais compilaria um conjunto completo de dados retirados de entrevistas aprofundadas, em conjunto com a sua performance financeira. As entrevistas acabariam por funcionar como uma espécie de relato de histórias de vida – um método de pesquisa comum nas ciências sociais – as quais iriam contribuir significativamente não só para apurar traços de carácter e comportamento dos líderes entrevistados, mas também o background que lhes estava associado e que poderia explicar o estilo de liderança adoptado por cada um dos mesmos.
[pull_quote_left]Os líderes virtuosos utilizam tanto a cabeça como o coração para inspirarem uma equipa de elevada performance[/pull_quote_left]
Na medida em que o “carácter” não é, obviamente, um conceito tão preciso e mensurável como, por exemplo, o ROI (Return On Investment ou Retorno sobre o Investimento) ou o ROA (Return On Assets ou Rendibilidade Líquida dos Activos), Kiel explica no livro de que forma é que, em conjunto com os seus investigadores, chegou à definição deste termo como estando, de forma “inata”, relacionado com a integridade, com os binómios ‘responsabilidade/responsabilização’ e capacidade para ‘perdoar /esquecer’ e, por último, com a compaixão. Estes quatro “princípios universais” foram seguidamente traduzidos em comportamentos-chave como, por exemplo, o facto de se dizer a verdade ser percepcionado como um sinal inequívoco de integridade. E foram estes tipos de comportamentos que os investigadores tentaram medir, construindo uma escala valorativa e avaliando os líderes em causa.
Depois de todas as entrevistas e inquéritos terem sido realizados, a equipa de Kiel designou os líderes que mais alto pontuaram na escala do carácter como “virtuosos” e os que ficaram na sua base como “autocentrados”. De acordo com Kiel, não é de todo suficiente liderar uma organização simplesmente cumprindo objectivos ou gerando lucro. Os líderes virtuosos utilizam tanto a cabeça como o coração para inspirarem uma equipa de elevada performance, a qual inclui os membros do conselho de administração, os executivos de topo, os gestores e, é claro, os empregados. Essa equipa alargada serve todos aqueles que têm um interesse legítimo na empresa ou que são afectados pelas suas políticas e práticas. Pelo contrário, os líderes autocentrados preocupam-se apenas com os seus próprios proveitos e pouco mais.
Como explica um artigo publicado na HBR, as 10 CEOs eleitos como os mais “virtuosos” foram aqueles cujos empregados e respectivas equipas de gestão melhor avaliaram no que respeita aos quatro princípios universais. Os trabalhadores que responderam aos inquéritos reportaram que estes mesmos líderes manifestavam, frequentemente, comportamentos que revelavam uma forte presença de carácter – por exemplo, os que defendiam a todo o custo o que era mais justo, os que expressavam preocupação pelo bem comum, os que perdoavam e esqueciam os erros (os seus próprios e os dos demais) e os que demonstravam níveis mais elevados de empatia.
[pull_quote_left]A maioria dos líderes autocentrados “falhou o objectivo de criar valor significativo para as suas organizações, sendo que dois deles incorreram mesmo em perdas de grande envergadura”[/pull_quote_left]
No outro lado (negativo) da escala, os 10 líderes autocentrados que menores pontuações receberam, foram descritos como pessoas que destorcem a verdade para benefício próprio, preocupando-se apenas consigo mesmos e com a sua segurança financeira, independentemente dos custos para os outros. Os trabalhadores questionados afirmaram que estes CEOs autocentrados só dizem a verdade “um pouco mais do que metade das vezes”, não sendo de confiar para cumprir promessas, colocando, na maioria das vezes, a culpa do que corre mal nos outros, punindo pessoas bem-intencionadas quando estas cometem erros e não revelando qualquer tipo de preocupação para com os demais.
Um dos principais resultados da investigação em causa demonstra que os líderes que exibem as quatro virtudes primordiais – integridade, compaixão, capacidade para perdoar e responsabilização – atingem um ROA médio de 9, 35% ao longo de um período de dois anos, um valor cinco vezes superior ao produzido pelo seus pares com um estilo de liderança egocêntrico, os quais nunca ou raramente exibem estes quatro traços de carácter e que, em média, apresentam uma ROA de 1,93%. E só esta diferença abissal seria suficiente para despertar a vontade de se ler este livro.
No período inicial do projecto, os investigadores esperavam apenas encontrar uma ligação relativamente pequena entre a força do carácter e a performance de negócio. O próprio Kiel admitiu não estar preparado para um elo de ligação tão robusto. Mas a verdade é que, para além do retorno financeiro atingido, os virtuosos receberam também uma avaliação substancialmente mais elevada por parte dos seus trabalhadores no que respeita à sua visão e estratégia, enfoque, sentido de responsabilidade e “infusão” de carácter na equipa de executivos que lideram.
Por seu turno, a maioria dos líderes autocentrados estudados ao longo dos sete anos da investigação, “falhou o objectivo de criar valor significativo para as suas organizações, sendo que dois deles incorreram mesmo em perdas de grande envergadura”.
Não se pode mudar o passado, mas é possível mudar (para melhor) o futuro
Tal como se pode ler na crítica ao livro feita por Tom Brown, na revista Strategy + Business – o qual considera esta livro como “raro” dada a excelente pesquisa e documentação, em conjunto com a sua enorme credibilidade – o que (também) distingue esta obra das demais existentes actualmente no mercado, é a forma “harmoniosa” e convincente através da qual os dados retirados da pesquisa se ligam às descrições comportamentais. À medida que o autor vai desenvolvendo os seus argumentos, vai “tecendo” gráficos, como se de uma tapeçaria se tratasse, que ilustram o quão distintos são estes dois tipos de líderes.
Os gráficos são particularmente reveladores ao demonstrarem de que forma os líderes entrevistados se autoavaliam no que respeita a questões como a “força dos hábitos de carácter” comparativamente à forma como são apreçados por quem com eles trabalha. Neste item em particular, os virtuosos avaliaram-se a si mesmos com 84 pontos (numa escala de 1 a 100) e os autocentrados com apenas um ponto de diferença (83). Todavia, os empregados avaliaram os virtuosos com 87 pontos versus os autocentrados, que não foram pontuados para além dos 68.
[pull_quote_left]Os níveis de envolvimento e entusiasmo dos empregados são 26% mais elevados entre pessoas que trabalham com líderes virtuosos[/pull_quote_left]
Adicionalmente e munido da sua formação em psicologia, o autor, que há muito é também executive coach, transcreve excertos retirados das “entrevistas em forma de sessões de terapia” – mantendo o anonimato dos líderes, dado que apenas um terço dos entrevistados permitiu a utilização do seu nome no estudo – nos quais se pode ler que os líderes autocentrados descrevem as suas experiências formativas, na infância e adolescência, como solitárias, pessimistas e recheadas de desconfiança face aos outros. Kiel mergulha fundo nas histórias de vida dos líderes entrevistados e demonstra quão diferentes as mesmas são comparativamente às dos que mais força de carácter demonstram. Um diferença significativa reside no facto de, enquanto crianças, os “virtuosos” terem sempre “procurado e aceite a ajuda de muitos adultos que os apoiaram”, o que resultou num maior tendência para, ao longo das suas carreiras, procurarem mentores que os ajudassem no desenvolvimento das mesmas.
Para terminar, a questão que naturalmente e impõe: é possível melhorar estes défices de carácter?
Na medida em que o estudo também demonstra que uma força de trabalho “acarinhada” pelos líderes é muito mais produtiva do que uma outra que se sinta negligenciada, o que tem implicações óbvias também nos resultados financeiros – os investigadores concluíram que os níveis de envolvimento e entusiasmo dos empregados são 26% mais elevados entre pessoas que trabalham com líderes virtuosos – os líderes autocentrados poderiam, caso conseguissem alterar o seu comportamento, ser também beneficiários destas mais-valias.
E é o próprio Kiel que, na introdução do livro, conta a sua história, admitindo que, no período inicial da sua carreira, também ele era um “autocentrado”. “Apesar de nunca me ter envolvido em actividades ilegais, tenho a certeza que [nesse tempo] muitos dos meus colegas sentiam que eu estaria aboslutamente disposto a atirá-los para debaixo de um autocarro se tal se traduzisse em mais sucesso para mim”, escreve. Todavia, ao chegar à meia-idade, começou a sentir aquilo que designa como um “vazio espiritual e moral”, o que o fez saber que teria de mudar o seu comportamento. Apesar de considerar que o processo de mudança foi longo e complexo, na medida em que os hábitos comportamentais estão demasiado enraizados nas pessoas, com prática e aconselhamento, conseguiu “chegar lá”. E, desde então, tem inspirado outros líderes a fazer o mesmo.
“As pessoas estão ávidas por ter um modelo de liderança no qual possam acreditar, ao qual possam aspirar, que seja fundamentado e norteado por uma humanidade partilhada”, assegura.
E foi também por isso que, aos 75 anos, decidiu escrever este livro. Não à procura de glória ou de dinheiro – na medida em que já tem ambos de sobra – mas para passar um testemunho, deixar um legado para outros líderes que o queiram seguir.
O carácter não é inato. “Pode ser (re)construído e aperfeiçoado”, assegura.
Editora Executiva