Valorizar mais o progresso humano do que o económico é a premissa para uma economia do futuro não só sustentável como capaz de proporcionar a felicidade das pessoas. A economia do bem-estar está longe de ser alcançada, mas a crise mundial veio acelerar a necessidade de repensar modelos de desenvolvimento. E o debate intensifica-se na comunidade internacional. A Fundação Francisco Manuel dos Santos quis saber que economia querem os portugueses, e lançou em livro os resultados de um estudo que traça a visão de cidadãos, empresários e autarcas sobre a complexa Agenda de Transição
POR GABRIELA COSTA

“A economia do bem-estar defende a mudança radical do paradigma dominante, conceptualizando a actividade económica a partir do ideal de progresso humano, e não o inverso”Olivia Bina, The green economy and sustainable development: an uneasy balance? (2013)

Este será o modelo de desenvolvimento económico mais evoluído, entre os três que a crise económica mundial veio colocar a debate como nunca antes, com carácter de urgência e de forma global. Por causa dela e para dela sair.

Crescendo de uma crise financeira que rapidamente alastrou dos EUA para a Europa, e depois para o resto das economias do mundo, em 2007, para uma crise profunda com impactos sociais e na economia real, que afecta a vida de milhões de pessoas, a conjuntura mundial passou a definir-se por um período conturbado, de instabilidade no presente e incerteza quanto ao futuro.

Este panorama veio pôr a nu a premência de uma discussão alargada sobre os cenários económicos segundo os quais se deve governar o planeta e, não sendo uma temática nova, intensificou a elaboração de documentos estratégicos e prospectivos por parte de múltiplas organizações, muitas delas de âmbito internacional. Divergentes, em muitos aspectos, “todos eles sublinham a necessidade de uma transição” para novos modelos de desenvolvimento socioeconómico, para “superar a actual crise económica e evitar os impactos ecológicos negativos” associados ao modelo de crescimento vigente nas últimas décadas.

Face a esta economia do crescimento, ou “almost-business as usual”, ganharam força, nos últimos anos, a visão da economia do crescimento verde, ou greening, que procura reformar o paradigma de progresso económico através de uma maior eficiência de meios e do recurso inteligente à tecnologia, e a visão da economia do bem-estar, ou all-change, centrada em objectivos de desenvolvimento humano e de prosperidade social, e em que o crescimento económico é visto como um meio e não como um fim em si mesmo.

A União Europeia, vários organismos e Programas das Nações Unidas e inúmeras entidades internacionais, como a OCDE, a OIT, a New Economics Foundation, a McKinsey e o WBCSD, vêm defendendo a necessidade destes novos modelos, apontando caminhos, prioridades e soluções.

A análise comparativa de 29 documentos produzidos por organizações multilaterais, governos nacionais e organizações empresariais, académicas e da sociedade civil, entre 2008 (ano do pico da crise financeira) e 2012, nos países da OCDE e em quatro macrorregiões geopolíticas – União Europeia, América Latina, África e Ásia-Pacífico -, sobre cenários desejáveis para a economia do futuro, permitiu construir uma Agenda de Transição de referência, que sintetiza os aspectos essenciais das principais concepções em confronto.

[pull_quote_left]Face à crise do modelo de economia do crescimento, as visões do crescimento verde e de uma economia centrada no desenvolvimento humano e social ganham adeptos[/pull_quote_left]

No âmbito do projecto “MuVE – Mudança de Valores para a Economia do Futuro”, que quer antecipar a reacção dos portugueses aos vários aspectos considerados nesta Agenda de Transição, a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) avaliou a predisposição para a mudança de três universos em Portugal: população em geral, empresários e autarcas.

A partir de um inquérito realizado entre o final de 2012 e o início de 2013 a uma amostra de 1022 cidadãos, 577 empresários e 82 autarcas, a FFMS promoveu o estudo “A Economia do futuro: a visão de cidadãos, empresários e autarcas“, desenvolvido por uma equipa de investigadores do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, e coordenado pelo geógrafo e investigador no ICS, João Ferrão, e cujos resultados, editados pela Fundação em dois livros (numa versão técnica e noutra resumida) foram apresentados publicamente a 12 de Março, em Lisboa.

No livro “A Economia do Futuro”, os investigadores identificam, entre os tês universos de inquiridos, as opiniões consensuais e as principais clivagens no que diz respeito a uma visão para a economia do futuro (a partir dos conteúdos do inquérito baseado em questões sobre os dois discursos da mudança). Desenvolvido ao longo de dois anos, o projecto analisa a capacidade de adaptação dos portugueses às propostas de modelos inovadores de desenvolvimento socioeconómico, antecipando expectativas e atitudes sobre os custos e benefícios de uma nova economia.

Resta então saber: Que futuro queremos? Que finalidade devemos dar à economia? Como podemos estimular modelos de desenvolvimento económico mais sustentáveis? Qual é a direcção da mudança e quem são os protagonistas dessa mudança?

Valores sociais pós-materialistas

16042015_RumoAoBemEstarQuase um terço dos portugueses inquiridos acredita que a economia do futuro será idêntica ao modelo prevalecente antes do deflagrar da actual crise. Crise que parece estar a promover a adesão “de largas camadas” da população a valores materialistas, dada “a actual situação de instabilidade socioeconómica”, que veio reafirmar, “de forma transversal a vários grupos socio-demográficos”, a importância de dimensões como o crescimento económico ou o controlo dos preços para o consumidor.

Mas na sociedade coexistem também valores pós-materialistas, estando a participação na vida colectiva (nomeadamente na economia e na política nacionais) a par do crescimento económico, quando se avalia a dimensão dos valores sociais que mais mobilizam os portugueses para a construção de uma economia do futuro mais sustentável. E são vistas como “duas condições interactivas e fundamentais”, para essa construção.

Apesar da “surpreendente percentagem de pessoas, incluindo empresários, que não têm qualquer ideia para o futuro”, como comentou, na apresentação pública deste estudo, o seu coordenador, o consenso sobre a necessidade de evoluir para uma nova economia é alargado, sendo a alteração do modelo de desenvolvimento socioeconómico e das formas de produção e de consumo prevalecentes considerada “inevitável”.

Só que subsiste ainda a convicção de que essa mudança se faz, essencialmente, através de “factores de continuidade face à economia do crescimento”, concluem os investigadores: o conhecimento científico, a melhoria da qualificação dos recursos humanos e a valorização do papel das PME são considerados elementos transversais “fulcrais para a construção da economia do futuro”. Ainda assim, “a emergência de novas preocupações” reflecte-se na consciência generalizada sobre a premência de “limitar a exploração dos recursos naturais não renováveis e de alterar os padrões de trabalho e de vida”, trabalhando-se menos horas e poupando-se mais.

[pull_quote_left]Um terço dos empresários ainda defende uma mudança assente na crescente globalização e liberalização da economia[/pull_quote_left]

Consensos à parte, enquanto a visão da população em geral sobre o futuro parece ser a mais influenciada pelos efeitos da crise na economia real, manifestados através de recorrentes preocupações com a criação de emprego e com a redução dos preços e das desigualdades sociais, os empresários revelam uma maior tendência para valorizar os aspectos de mudança relacionados com a esfera económica e do sector privado. Nomeadamente, “a atribuição de um maior peso relativo ao lucro como principal finalidade da economia, a importância de atrair investimento estrangeiro e de aumentar as exportações ou o apelo a uma maior liberdade de acção por parte das empresas”, conclui o estudo.

De um modo geral, os perfis-tipo identificados com base nas atitudes e opiniões expressas e nas características socio-demográficas dos inquiridos apontam para a existência de grupos com distintos graus de aceitação da mudança, e de opções específicas para essa mudança: “uns não conseguem vislumbrar qualquer futuro, outros acreditam no regresso do futuro anunciado antes da crise, outros ainda têm propostas claras para o futuro, mas não coincidentes entre si”, alerta a FFMS.

Empresários entre o lucro e a visão ‘glocal’

Do total de cidadãos inquiridos, 60% defende uma economia de futuro diferente da actual, mais sustentável. E a boa notícia é que, de acordo com a amostra do inquérito realizado pela FFMS entre a população em geral, a maioria das pessoas está disposta a pagar os custos inerentes a essa mudança, por exemplo através de impostos mais elevados. Para estes 60%, o principal factor diferenciador para a mudança é a atitude em relação à atracção de investimento estrangeiro e ao aumento das exportações. Este é, de resto, o grupo que mais se identifica com valores pós-materialistas, como o referido apelo a uma maior participação na vida colectiva.

Já 30% da população inquirida imagina uma economia do futuro igual à dominante antes de Portugal entrar em crise económica, continuando a considerar propostas próximas das que já existiam. Na perspectiva de João Ferrão, na realidade estes 30% “têm ideia do que não querem” que lhes possa “dificultar ou piorar a qualidade de vida”. Os restantes 10% – sobretudo mulheres idosas com baixos níveis de escolaridade – não revela qualquer ideia sobre o futuro.

As clivagens de opinião sentem-se também dentro do universo das empresas, embora de forma menos acentuada: o estudo identifica um perfil-tipo (30%) que defende uma mudança assente na crescente globalização e liberalização da economia, ao qual se opõe um outro (29%) que defende uma economia mais centrada na valorização dos contextos locais, no ambiente e na equidade social, e na expansão de novos estilos de vida e de formas sustentáveis de produção e de consumo, sintetiza o documento.

Numa posição intermédia em relação a estes perfis-tipo emerge um terceiro (20%), para o qual a economia deve conciliar vários dos aspectos-chave dos outros dois, privilegiando uma óptica ‘glocal’ (que valoriza, simultaneamente, a presença nos mercados globais e os recursos e mercados locais), conclui-se também. É de sublinhar que são as empresas de serviços quem apresenta uma perspectiva mais favorável à globalização e liberalização da economia, ao passo que as empresas que não têm mais do que 50 colaboradores defendem uma economia glocal.

Por último, quase 17% dos empresários não mostraram capacidade de propor uma economia do futuro diferente da actual, limitando-se a apresentar uma perspectiva de sobrevivência de curto prazo, associada a uma evidente insatisfação com a situação actual.

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O posicionamento face à atracção de investimento estrangeiro e ao aumento das exportações e os mercados alvo das empresas são os principais factores distintivos no interior deste universo. Como seria de esperar, entre os três universos de inquiridos os empresários são quem mais destacam a necessidade de internacionalizar e liberalizar a economia, os que atribuem um maior relevo ao papel das empresas e os que mais valorizam a obtenção de lucro como objectivo principal da economia.

Finalmente, para a maioria dos autarcas os factores de construção da economia do futuro passam por valorizar a importância dos produtos locais, do seu próprio papel na economia e da qualificação das redes e infra-estruturas rodoviárias. A equipa responsável pelo estudo destaca que “as componentes ideológica e pragmática apresentam um maior peso” nas respostas fornecidas por este universo, que parece ser “o mais influenciado por discursos politicamente correctos”.

[pull_quote_left]A maioria dos cidadãos inquiridos acredita na necessidade de uma economia do futuro mais sustentável[/pull_quote_left]

No que respeita aos graus de mobilização dos inquiridos para as agendas de transição de referência, conclui-se que os perfis mais próximos da economia do crescimento verde têm uma expressão significativa nos três universos. Já os perfis que englobam aspectos relevantes da economia do bem-estar destacam-se principalmente entre a população e os empresários. O universo dos autarcas é o que menos se identifica e ajusta aos dois discursos de referência (a economia verde e a economia do bem-estar).

Considerando que “todos reconhecem” que não podemos continuar a viver em função do actual modelo económico, João Ferrão, alerta que “os decisores políticos e as universidades, entre outros, têm a obrigação de abrir um debate público sobre as várias opções económicas que se colocam” sobre esta complexa matéria.

Os discursos da mudança

A Agenda de Transição reúne um conjunto de documentos estratégicos produzidos no actual contexto de crise (ou seja, depois de 2007) por organizações internacionais, empresariais, académicas, da sociedade civil e por governos nacionais, que traçam uma prospecção sobre a construção de novos modelos de desenvolvimento socioeconómico. Apesar de proporem orientações e opções de acção bastante diversificadas, esses documentos têm em comum a defesa da necessidade desta evolução, face à lógica da economia de mercado capitalista.

O debate académico sobre esta matéria, cada vez mais aceso, procura analisar a distinção entre os conceitos do modelo económico vigente nas últimas décadas, e dos modelos emergentes: ou seja, entre a economia do crescimento e as economias do crescimento verde e da mudança global. Contra os defensores da primeira perspectiva, os modelos de desenvolvimento emergentes afirmam-se como os dois discursos principais de mudança.

Para os ‘convertidos’ à tendência do crescimento verde, a resposta aos desafios globais encontra-se na incorporação, nos negócios e na sociedade, de uma preocupação explícita com o ambiente, centrada na procura de um progresso caracterizado por um uso mais eficiente dos recursos, com o auxílio do progresso tecnológico, com vista a uma maior competitividade da economia. Este modelo não rompe de forma radical com o modelo business as usual, porquanto não coloca em causa os fins da economia hoje predominante. Apenas preconiza a reforma da actual economia através de uma melhor gestão dos meios, sobretudo os de natureza escassa.

Já um segundo discurso, que adopta a perspectiva da prosperidade para além do crescimento económico através de um paradigma socioeconómico da economia do bem-estar, ambiciona uma transformação mais profunda da economia e da sociedade. Inclusivamente no que se refere aos fins prosseguidos na actualidade, para os quais defende a necessidade de uma revisão profunda.

Fundado numa crítica à economia de mercado, este modelo da mudança global rejeita uma visão estritamente económica do desenvolvimento, baseando-se no princípio de que os recursos do planeta não são apenas escassos, mas também limitados, o que condiciona a sua exploração. E mobiliza para um paradigma onde o progresso é medido, antes de mais, pelo bem-estar e felicidade dos seres humanos.

É na dicotomia discursiva entre progresso económico e progresso humano que residem as duas principais alternativas que polarizam as agendas de transição de referência para um modelo de desenvolvimento económico mais sustentável. Seja pelo planeta ou pela humanidade, passe-se do discurso à acção.

Jornalista

1 COMENTÁRIO

  1. Creio que a economia sustentável será o futuro com trabalho do que existe, evitar “espaços mortos e em risco de incêndio”, dinamizar o que se têm, desenvolver uma cultura assente em valores com a honestidade, o respeito e a paciência, criar identidade regional e nacional na base da responsabilidade, intercâmbios com todas as partes do mundo para ter uma visão global e humanista.

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