POR GABRIELA COSTA
Qual é a importância da ciência para a história de um país? Na perspectiva do historiador de ciência Henrique Leitão, “a questão científica incide intensamente na maneira como olhamos para nós próprios”.
No almoço-debate realizado em Lisboa, no âmbito do ciclo de conferências anual da ACEGE – Associação Cristã de Empresários e Gestores, o investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e Prémio Pessoa 2014 defendeu que “todos temos associada a ideia de ciência à de modernidade. E usamos o desenvolvimento científico como um indicador de progresso”.
Contudo, até para alguém como Henrique Leitão, que fez da História da Ciência a história da sua vida (pelo menos profissional), existem outros factores que intervêm na avaliação dessa modernidade, como indicadores sociais e económicos. E a realidade é que “o discurso historico-científico sobre Portugal não faz justiça ao que aconteceu”.
Ainda hoje vivemos sob um complexo de inferioridade construído por essa “imagem de negativismo e cepticismo sobre nós próprios”, sugere o docente e investigador. A qual nos condiciona, uma vez que “é impossível haver progresso por parte de quem não gosta do que é seu”.
Este sentimento reflecte-se num “drama educativo” que desvaloriza, nos programas académicos, os grandes feitos históricos e científicos conquistados por Portugal. Quando seria tão importante incutir nos nossos estudantes “um interesse educativo que torne atractivo o que é nosso”, conclui.
E é assim que de dias e dias de trabalho dedicados a analisar “equações de matemática e textos em latim do século XVI”, resulta a certeza, para Henrique Leitão, de que por detrás destes documentos “está a imagem que temos do País”. Uma imagem que tem de ser (re)construída “com empatia e esclarecimento sobre a própria história” da nação.
“A possibilidade de um país se achar o dono de uma descoberta espantosa é um trunfo”
É conhecida a existência de uma “grande narrativa sobre a ciência no Ocidente”. A partir do século XVI, a Europa entrou num período de grande desenvolvimento científico e tecnológico, e cresceu rumo à modernidade.
Sem antecedentes, a história da modernidade científica teceu-se a partir dessa narrativa, centrada em “meia dúzia de génios”, como Copérnico, Galileu ou Newton, e elaborada de uma forma “puramente intelectual”, entre grupos de discussão interessados em idealizar uma escola de pensamento sobre a ciência.
Essa história foi “mantida por uma indústria intelectual” dos países que se intitulavam, então, “os autores da modernidade científica”, como Inglaterra ou França. A qual se desenvolveu num nível académico elevado, envolvendo “grandes grupos e universidades”.
E hoje, o cientista inglês Isaac Newton, mais reconhecido como físico e matemático, mas também astrónomo, filósofo e teólogo, “é uma indústria no seu país”, graças à qual se lançam anualmente livros, biografias ou selos comemorativos, exemplifica Henrique Leitão. O carismático físico, matemático, astrónomo e filósofo Galileu Galilei é outra indústria, na Itália, tal como o filósofo, físico e matemático René Descartes o é, na França, e o astrónomo e matemático Nicolau Copérnico o é também, na Polónia.
A historiografia demonstra que, ao longo dos séculos, cada país procurou reclamar para si próprio a autoria da modernidade, a partir das descobertas científicas feitas pelas suas grandes figuras. Mas em Portugal “sucedeu o oposto”: perante a narrativa ocidental da ciência, “aceitámos pacificamente” o discurso que coloca toda a modernização da sociedade nas mãos dos “grandes génios”, nota o actual Prémio Pessoa. Subestimando a nossa própria história científica, cujo apogeu é, indubitavelmente, a expansão marítima. E por aqui se vê como a História pode, por vezes, ser redutora.
Desenvolvemos então um “juízo negativo sobre nós próprios”, que “se tornou habitual” graças à historiografia do século XIX, a qual marca “um cânone interpretativo para a história de Portugal”, ditando períodos alternados “de glória” (nos séculos XVI e XVIII) e “de decadência” (nos séculos XVII e XIX) no país. Ou, nas palavras de Henrique Leitão, “ períodos de luz e de trevas”.
Contudo, a realidade é que estes historiadores não tinham competência para analisar o progresso na matemática, física, astronomia ou química, porque não tinham conhecimentos técnicos nestas áreas. E, consequentemente, o desenvolvimento científico português na época dos Descobrimentos, nos séculos XV e XVI, não foi reconhecido como fundamental para a revolução científica europeia do século XVII. Mas é, defende há muito o especialista, doutorado em Física.
“O grande motor da vida nacional até ao século XIX foi a Igreja”
No período em que a Europa cresce exponencialmente, graças à ciência, o nosso país atravessa “uma das suas épocas mais negras”, contextualiza Henrique Leitão no encontro dedicado à temática “Olhar o futuro de Portugal a partir da História da Ciência”.
E porquê? Porque, “para resolver problemas conjunturais”, o discurso da historiografia portuguesa do século XIX “repete sobre nós próprios argumentos que tinham sido postos em cima da mesa pelos ingleses, nossos adversários, no século XVII”. Isto é, “recolhe um discurso fabricado” por Inglaterra, quando esta nos quis roubar a Índia, o qual acusa Portugal de estar “decadente e degenerado”, pelo facto de os portugueses se misturarem com os indianos, o que constitui um motivo “estritamente rácico e intolerável”.
A segunda razão que prejudica a reputação do País no século XIX é uma “pulsão anti-cristã e anti-católica”, que “sempre esteve presente na sociedade portuguesa, de forma mais ou menos latente”, mas que “foi claríssima” nessa época. Contra essa corrente que quis retirar da cena nacional o papel fundamental da Igreja, os factos históricos falam por si: como sublinha o investigador da Universidade de Lisboa, “o grande motor da vida (nacional) educativa, cultural e artística, até meados do século XIX foi, sem dúvida, a Igreja católica”.
Só há pouco mais de quarenta anos, no contexto das grandes transformações europeias do pós-guerra, a crítica dos historiadores à imagem que se elaborava sobre o conhecimento científico “começou a achar irrazoável” atribuir as descobertas que fizeram a humanidade evoluir para a Idade Moderna exclusivamente à ciência e aos seus génios. Exemplo disso “é a historiografia marxista”, ilustra Henrique Leitão.
A partir de então, abriu-se “uma janela cultural” no velho continente e deixou de “fazer sentido” pensar a sociedade sem falar da vida prática do quotidiano das pessoas e do trabalho. E “tornou-se evidente que o que aconteceu na Europa desde o século XIX foram fenómenos sociais que tinham incidência na forma como nos relacionamos com a natureza”, clarifica o investigador: “todas as características atribuídas à ciência moderna, desde os séculos XVI e XVII, eram agora identificadas como fenómenos que tinham inúmeras dimensões sociais, que falavam da vida das pessoas”.
Esta mudança “imediatamente obriga os historiadores a olharem para Portugal e Espanha” com uma nova visão sobre “os impérios gigantescos” em que os dois países se tornaram, graças à importância que tiveram nos Descobrimentos, particularmente na expansão marítima europeia.
Na narrativa actual sobre a ciência moderna, pensada à luz de fenómenos sociais, “é impossível retratar a (sua) história de forma coerente sem incluir nela esta expansão”. Ou, por outras palavras, “a ciência moderna não se pode compreender sem olhar a expansão marítima europeia”. O que finalmente permitiu a notoriedade da Península Ibérica pelo contributo que deu para a sua concretização.
Na actualidade, os discursos sobre ciência da expansão marítima manifestam “um interesse nunca visto e uma predisposição para reconhecer” o papel histórico de Portugal nessa época, conclui o historiador de ciência.
Dito isto, e traçado o percurso histórico da ciência moderna, resta questionar: “o que pode a historiografia portuguesa dar então à historiografia internacional”? A resposta é simples: “nunca tivemos um Newton, nem um Galileu. Mas tivemos esta história. E somos hoje um dos elementos [que contribuíram] para o surgimento de uma comunidade científica na Europa”.
Deixemo-nos pois, de pequenezes no pensamento sobre a nação, e reescrevamos a nossa história científica à escala da toda a nossa capacidade, modernizando-a. Como há tanto tempo vem defendendo aquele que é um dos historiadores de ciência mais eminentes do País: Henrique Leitão.
“Prémio Pessoa 2014” valoriza modernização da história da ciência
O Prémio Pessoa (iniciativa do jornal Expresso e Caixa Geral de Depósitos) distingue, desde 1987, a personalidade portuguesa cuja obra alcançou destaque particular nos campos das Artes, Ciência ou Cultura.
No ano passado, o galardão, no valor de 60 mil euros, foi atribuído a Henrique Leitão, investigador principal e um dos fundadores do Centro Interuniversitário de História das Ciências e Tecnologia da Universidade de Lisboa.
Formado em Física, é uma das figuras mais importantes na modernização da história da ciência de Portugal e a “personalidade em torno da qual se constitui uma escola de pensamento”, considerou o júri do prémio.
O seu esforço pela revitalização, modernização e divulgação da história da ciência portuguesa não se resume à ‘correcção’ da historiografia nacional, a partir da sua tentativa de mudar a forma como se olha para o passado científico de Portugal. Expressa-se também através da publicação de obras completas sobre figuras científicas históricas, e à sua colaboração em inúmeros projectos científicos, como a exposição 360º, de que foi curador, levada a cabo pela Fundação Calouste Gulbenkian com o objectivo de dar a conhecer o contributo português para a formulação do método científico moderno e para o desenvolvimento do estudo da Natureza.
Valorizando o seu trabalho de “reconstrução historico-científica do legado científico português e peninsular para a modernidade”, o júri do Prémio Pessoa 2014 distinguiu Henrique Leitão por ser uma “personalidade em torno da qual se constituiu uma escola de pensamento neste domínio científico”.
Jornalista