POR HELENA OLIVEIRA
A OCDE divulgou esta semana um estudo sobre a qualidade do trabalho em 45 países mas, e ao contrário do que é habitual, não se concentrou nos indicadores mais comuns para este tipo de avaliações – como o cumprimento de normas e regulamentações – optando antes por aferir os verdadeiros efeitos sentidos pelos trabalhadores em três grandes dimensões, as quais são imprescindíveis para traduzir o seu bem-estar individual – ou o seu inverso – no local de trabalho. “Boas” remunerações, segurança laboral e um ambiente de trabalho agradável andam de mãos dadas nos países com níveis elevados de emprego mas, e como sabemos, são muitos aqueles – como Portugal – que estão longe de recuperar dos efeitos persistentes da crise.
Na medida em que a maioria das pessoas passa uma parte substancial da sua vida no trabalho, é natural que as funções que cada um desempenha, em conjunto com o ambiente no qual as leva a cabo, em conjunto com os montantes que recebe pelo que produz, constituam aspectos determinantes para aferir o seu bem-estar. E foi por este motivo que a OCDE decidiu considerar as três dimensões acima referidas, objectivas e mensuráveis, as quais não são apenas importantes para os trabalhadores, mas também para as políticas laborais. Adicionalmente, quando analisadas em conjunto, conseguem fornecer uma avaliação mais fiel do que significa verdadeiramente a questão da “qualidade no trabalho”. De uma forma mais detalhada, o estudo da OCDE pretendeu avaliar as seguintes questões:
Qualidade das remunerações: de que forma e até que ponto é que o emprego contribui para as condições materiais de vida e como são estas distribuídas ao longo da força de trabalho?
Segurança do mercado laboral: nesta dimensão, que analisa o nível de risco de o trabalhador ficar sem emprego e durante quanto tempo, que consequências económicas resultam para os que o perdem efectivamente e, pelo contrário, o que ganham aqueles que conseguiram manter os seus empregos ao longo destes nove anos de crise?
Qualidade no ambiente de trabalho: visto que é sabido que não é só o dinheiro que conta, mas também a natureza e o conteúdo das tarefas que se desempenha, que tipo de trabalhadores sofre mais com níveis elevados de pressão? Quão sã é a qualidade dos relacionamentos nos diversos espaços laborais? Que oportunidades de formação e de conciliação entre vida profissional e pessoal existem no actual mercado de trabalho?
O que se pode retirar então deste relatório? A verdade é que se muitos dos resultados não surpreendem, outros há que merecem alguma reflexão.
Qualidade do trabalho varia significativamente entre os países da OCDE
Não é surpresa: a Austrália, Áustria, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Luxemburgo, Noruega e Suíça encontram-se no grupo da frente dos países que melhor performance registam em termos de qualidade geral do trabalho, posicionando-se relativamente bem em pelo menos duas das três dimensões avaliadas. Para contrastar, e em conjunto com a Estónia, Grécia, Itália, Polónia, República Eslovaca, Espanha e Turquia, está Portugal, em representação do grupo que nem em uma das três dimensões avaliadas consegue ter uma performance sofrível. No “meio” e com não mais do que uma das dimensões considerada como “positiva”, encontram-se a Bélgica, Canadá, República Checa, França Irlanda, Israel, Japão, Coreia, México, Nova Zelândia. Eslovénia, Reino Unido, Suécia e Estados Unidos.
Mais interessantes são os dados que permitem perceber os níveis de qualidade do trabalho entre os vários grupos socioeconómicos e que permitem uma nova visão sobre as desigualdades no mercado laboral através da análise da natureza e profundidade das desvantagens enfrentadas por alguns segmentos populacionais.
Como também não é de admirar, aqueles que mais dificuldades enfrentam continuam a ser os jovens e os trabalhadores com baixas competências. Não só apresentam a pior performance no que respeita às taxas de emprego e desemprego, como o mesmo acontece com os resultados respeitantes à qualidade do trabalho, os piores de todos os segmentos analisados: baixos rendimentos, insegurança laboral acrescida e níveis elevados de stress (em particular para os trabalhadores com baixas competências).
Extra relatório, mas para demonstrar como esta realidade caracteriza bem o nosso país, são os dados do INE, revelados na passada quarta-feira. Se pensarmos que cerca de dois milhões dos trabalhadores activos portugueses recebem entre 310 e 900 euros mensais, o retrato fica ainda mais negro se a análise levar em linha de conta o que acontece entre estas duas “balizas”: um terço dos trabalhadores aufere remunerações entre os 310 e os 600 euros, enquanto o outro terço “sobe” para o escalão entre os 600 e os 900 euros. No terço restante incluem-se os que recebem menos de 300 e os que auferem mais de 900. E, apesar da desigualdade de salários ser uma realidade crescente em quase todos os países, Portugal está, mais uma vez, no pelotão da frente no que respeita a esta desigualdade e com um número preocupante de cidadãos a viver abaixo da linha da pobreza, com 149,3 mil pessoas a ganharem abaixo dos 310 euros já referidos.
Do outro lado da equação, estão os trabalhadores com competências mais elevadas e que apresentam níveis de performance igualmente altos nas três dimensões em análise. Ou seja, o retorno que advém deste tipo de competências não se traduz somente em remunerações mais elevadas, como também em empregos “melhores”, muito menos sujeitos a insegurança laboral e com níveis diminutos de tensões laborais.
Com resultados mistos são caracterizadas as mulheres: apesar de a sua taxa de emprego ser, na maioria dos países, substancialmente mais baixa comparativamente à dos seus pares masculinos e de a desigualdade de rendimentos continuar a ser uma característica persistente no mundo laboral feminino, no que respeita aos níveis de insegurança laboral, os resultados face aos homens são muito similares. A talvez única novidade consiste no facto de as mulheres serem menos vulneráveis ao stress laboral do que os homens.
O peso da crise na qualidade do trabalho
Os dados resultantes da análise da OCDE face à qualidade do trabalho ao longo da última década demonstram que a crise não só afectou o número de postos de trabalho disponíveis, como também os seus “atributos qualitativos”. A profundidade e a longa duração da crise económica e financeira que afectou significativamente a esmagadora maioria dos países da OCDE, em muitos casos com aumentos dramáticos – e longe de serem recuperados – no número de desempregados, e de que Portugal é um bom exemplo, alterou também e por completo a qualidade da generalidade dos postos de trabalho.
O primeiro dado, e talvez o mais preocupante, diz respeito ao facto de a crise ter sido particularmente cruel com os trabalhadores de rendimentos mais baixo, que viram os seus já precários empregos a serem destruídos. Este factor levou a uma aparente melhoria na qualidade, em média, dos rendimentos, a qual acaba por desaparecer quando a análise é feita de acordo uma estrutura de emprego constante: ou seja, na realidade dois terços dos 45 países em análise apresentam uma deterioração clara no que respeita a este indicador em particular. Em termos de performance, o Reino Unido e a Grécia aparecem como os países que mais sofreram com esta mesma deterioração, com a diferença de que o primeiro está a recuperar substancialmente os seus níveis de emprego anteriores à crise, enquanto o segundo permanece numa situação por demais avassaladora.
Por seu turno, também a segurança no mercado laboral piorou consideravelmente na maioria dos países da OCDE, reflexo da combinação de um risco de desemprego substancialmente elevado com a diminuição das prestações sociais de desemprego. A queda foi especialmente abrupta para a Espanha e, mais uma vez, para a Grécia também.
Na dimensão da qualidade do ambiente de trabalho, as diferenças entre os países da OCDE são também de assinalar. Se em alguns países as condições de trabalho pioraram indubitavelmente como resultado directo da crise – como por exemplo em Espanha, na Grécia e na Holanda, que ocupam os piores lugares da lista – em outros e nos casos em que os trabalhadores conseguiram manter os seus postos de trabalho – como na Islândia, na Alemanha ou na Finlândia – as condições sofreram, entretanto, melhorias significativas.
O relatório alerta que para ser possível uma avaliação correcta do peso da crise nas diferentes dimensões do trabalho, estas têm mesmo de ser analisadas em conjunto. Por exemplo, e no caso da Alemanha, esta não só beneficiou de um aumento nas suas taxas de emprego, como também de melhorias em todas os aspectos da qualidade do trabalho. Em sentido inverso está a Grécia, que foi palco de um gravoso e elevado aumento do desemprego, ao mesmo tempo que viu piorar a qualidade dos rendimentos e a aumentar a insegurança laboral. O Reino Unido é outro exemplo interessante. Depois de sofrer uma queda abrupta dos seus níveis de emprego logo no início da crise, a sua taxa de emprego actual está muito perto da que vigorava no período anterior à recessão. Adicionalmente, ao mesmo tempo que a qualidade dos seus rendimentos sofreu um declínio, o mesmo não aconteceu, contudo, na segurança do mercado laboral.
Já em outros países da OCDE, a crise originou impactos “mistos”. É o caso de Portugal, sublinhado pelo relatório, em que a qualidade dos rendimentos estagnou e a segurança do mercado laboral teve uma queda significativa, muito graças à escalada dos níveis do desemprego – e que estão ainda longe de serem reabsorvidos. Todavia, a qualidade do ambiente de trabalho melhorou para os afortunados que conseguiram manter os seus empregos. De forma inversa, na Suécia, apesar de os níveis de rendimento terem acusado uma melhoria, o mesmo não aconteceu com a segurança do mercado de trabalho, nem com a qualidade do seu ambiente, que piorou.
Mobilidade e expectativas de carreira
A análise da qualidade do trabalho está não só relacionada com as características do emprego que se tem mas também com as perspectivas de carreira. E é por isso que não basta avaliar a qualidade do mesmo num ponto exacto no tempo, mas ao longo de toda a vida profissional, o que depende, em larga escala, das perspectivas existentes para se avançar na carreira, e também das flutuações nos rendimentos e no risco de desemprego.
Para esta análise, é necessária uma perspectiva dinâmica que leve em linha de conta as perspectivas de mobilidade entre empregos, bem como a mobilidade relativa aos rendimentos. A nível individual, esta última pode reflectir os avanços na carreira, ao mesmo tempo que pode ser também uma fonte de insegurança para o trabalhador. A mobilidade consiste num indicador importante para a sociedade no seu todo, porque pode diminuir as diferenças de rendimentos entre os trabalhadores ao longo do tempo. Em média, a mobilidade reduz a desigualdade em cerca de um quarto ao longo de uma vida de trabalho, o que significa que a desigualdade de rendimentos se mantém em cerca de três quartos dessa mesma vida.
O relatório divulgado afirma também que os diferenciais de rendimentos ao longo da vida são largamente determinados nos 10 primeiros anos de trabalho na carreira dos indivíduos. E, obviamente, as perspectivas de mobilidade das remunerações são 50% mais elevadas entre os jovens, comparativamente aos trabalhadores que se encontram na faixa etária entre os 25 e os 54 anos e, ainda mais, quando comparadas com as dos mais velhos.
Todavia, a OCDE afirma também que não existe uma correlação clara entre a mobilidade e a desigualdade, sendo que a uma desigualdade elevada não corresponde, necessariamente, um preço a pagar para que existam níveis mais elevados de mobilidade.
Crise do emprego persiste e preocupações com a geração “nem-nem” aumentam
A divulgação do relatório How Good Is Your Job? Measuring and Assessing Job Quality foi antecedida por um Fórum de Política sobre o Futuro do Trabalho, promovido pela OCDE e que teve lugar em Paris em Janeiro último, juntando os ministros do Trabalho e do Emprego dos 34 países que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico
Apesar de os níveis de desemprego apresentarem alguns sinais de declínio na maioria destes países, em Novembro de 2015 existiam cerca de 40 milhões de pessoas sem trabalho, mais oito milhões comparativamente ao período que antecedeu a crise. Mais de uma em cada três pessoas está fora do mercado laboral há mais de um ano (ou há muito mais tempo) e a dimensão deste grupo aumentou em 65% desde 2007. O desemprego elevado e persistente consiste em um dos maiores problemas socioeconómicos para os países da OCDE, com este organismo a prometer, mais uma vez, particular atenção aos jovens e aos desempregados de longa duração. Mais preocupante ainda é o denominado “segmento nem-nem”: um em cada seis jovens dos países da OCDE , entre os 15 e os 29 anos, não está nem a trabalhar, nem a estudar, nem a participar em acções de formação, sendo que destes, 27 milhões nem sequer engrossam as fileiras dos que procuram activamente trabalho.
Se a recente crise, profunda e prolongada, tornou a transição do mundo académico para o universo laboral ainda mais difícil, pouco animadores são também os dados revelados esta semana também pela OCDE: se os resultados do Programma for International Student Assessment (PISA) têm vindo a registar algumas (pequenas) melhorias para os estudantes portugueses, a verdade é que ainda existem 13% de jovens que revelam dificuldades nas três áreas avaliadas (Leitura, Matemática e Ciências), sendo que na Matemática a percentagem de baixo rendimento ascende aos 25%. Dos alunos portugueses que participaram neste estudo habitual realizado pela OCDE, 34% já reprovaram pelo menos uma vez, o que coloca o nosso país no 8º lugar dos países com mais chumbos, sendo que estes maus resultados são, em muito, “explicados” pelas más condições socioeconómicas que continuam a persistir em Portugal.
Editora Executiva