Ocorre uma grande mudança com várias medidas pelo trabalho digno. Por um lado, os trabalhadores tomam a consciência de que as condições de trabalho podem desgastá-los, afectando a saúde e as suas capacidades sociais. Por outro lado, a questão do trabalho é agora diferente da questão do emprego. A precariedade e a procura permanente de desempenho já não são vistas como meras condições de emprego. Numa semana de agitação política, surge o trabalhador no centro do debate; é contribuinte, deseja ver as aplicações públicas do seu dinheiro. A evolução das condições de trabalho é a evolução social, como se esta frase fosse realmente necessária. Agora não é, efectivamente, mas durante muitos anos pouco sentido fez
POR PEDRO COTRIM

O sentido atribuído ao trabalho e o compromisso dos indivíduos com o trabalho estão intrinsecamente relacionados com as vivências singulares de um mundo do trabalho que se transforma continuamente. O desenvolvimento de novas formas de organização tem sido acompanhado pela implementação da transformação das expectativas em relação ao trabalho.

A ideia de que o trabalho é uma actividade por meio da qual o ser humano pode transformar o mundo, fazê-lo à sua imagem e encontrar neste processo uma das principais formas de participar na vida social e de expressar a sua personalidade é recente e moderna. O conceito de trabalho está enraizado em várias camadas de significado, às vezes contraditórias, que foram sendo acrescentadas ao longo do tempo. No século XVIII, os economistas definiram o trabalho como um factor de produção que fornece rendimento. Naquela época, porém, continuava a ser considerado um castigo, um sacrifício, uma espécie de obrigação inútil.

O século XIX postulou o trabalho como essência do homem; uma actividade humana que lhe permite expressar-se e transformar o mundo. Este segundo significado é radicalmente diferente do primeiro, dando sentido à expressão da liberdade criativa do homem. O século XX fez do trabalho um sistema de distribuição de rendimentos, direitos e protecções através do desenvolvimento da sociedade ‘salarial’. O trabalho também se torna ‘emprego’ e passa a ser apreciado pelo rendimento que proporciona e pela expressão individual que permite, mas também pelos direitos sociais a que dá acesso.

A inversão em favor de uma ética do desenvolvimento deu-se, de facto, a partir da segunda metade do século XX. Dois acontecimentos essenciais permitiram a transição de uma ética do dever para uma ética do cumprimento: por um lado, o desenvolvimento do Estado Social e a ideia de garantir o bem-estar dos cidadãos; por outro lado, a explosão das taxas de crescimento que, de repente, torna viável e acessível o que até então parecia apenas uma utopia: fazer do trabalho-dever um trabalho-prazer, transformando uma actividade eventualmente muito difícil num instrumento de realização e auto-expressão. A sociedade é agora posta ao serviço do indivíduo e do seu desenvolvimento individual; anteriormente, o indivíduo realizava-se através do cumprimento da missão que lhe fora confiada pela sociedade.

Novas formas de organização do trabalho geraram, portanto, novas divisões no trabalho, tanto em termos de situação de trabalho como em termos de oportunidades de desenvolvimento. Há muito tempo que se instalou a insegurança económica, em particular para alguns grupos, incluindo os jovens e os menos qualificados; o mal-estar aumenta, revelando insatisfações e disfunções nas organizações.

A agenda digna entra em acção: reinventa-se o trabalho no mundo ocidental. Significa levar realmente a sério as expectativas hoje expressas pelos cidadãos, especialmente pelos jovens e pelas mulheres; expectativas de um trabalho significativo, de um trabalho que permita às pessoas exprimirem a sua individualidade, mas também uma produção socialmente útil; um trabalho digno integrado no remanescente dos dias e que permite aos trabalhadores exercer plenamente as suas outras funções de cidadãos, familiares e amigos.

Algumas medidas, mesmo que contestadas em alguns sectores, baseiam-se numa concepção de trabalho muito comum. A própria ideologia liberal faz do trabalho o eixo central da sociedade – os laços sociais advêm de contratos económicos livres entre indivíduos. Efectuar de modo interessado o trabalho conduz ao trabalho colectivo que gera riqueza, conforto e crescimento. Uma espécie de consenso produtivista, benéfico para todos, estabelece-se em torno do trabalho.

Mesmo o adversário de esquerda concorda. Certamente que denuncia asperamente as condições de trabalho e exploração do proletário. Luta para ir mais além nas medidas sociais, opõe-se ao chamado contrato liberal e milita por um novo Estado social que organize a produção e o trabalho. Mas, ao mesmo tempo, também coloca o trabalho no centro da sociedade.

Por outro lado, há o trabalho-necessidade, muito diferente do modelo ideal: neste caso, objectivo passará necessariamente por reduzir ao máximo o tempo de trabalho e torná-lo o mais suportável que for possível graças ao progresso técnico. Se estas situações forem satisfeitas, irá trabalhar-se de bom grado, com sentido e numa sociedade tendente a uma abundância partilhada.

Estes constructos baseiam-se no progresso técnico, que tenderá a livrar a humanidade da penúria do trabalho alienado, mas a evolução real é mais prosaica: uma sociedade massivamente assalariada, com abandono do desejo de trabalho ideal contra uma redução lenta, mas real, do tempo de trabalho, melhores salários e melhores garantias sociais. Esta realidade, no entanto, constitui ema utopia no papel central do trabalho que se concretiza na sociedade de pleno emprego.

Hoje em dia, a precariedade, tão presente no início do século XIX, renasce visivelmente. As análises que induz diferem muito das de 1900; os desenvolvimentos actuais são opostos aos de então. A integração dos trabalhadores precários foi lenta, mas crescente; hoje, ao contrário, há uma forte desintegração parcial. Ouve-se, em alguns sectores, o iminente desaparecimento da centralidade do trabalho e da necessidade de desenvolverem outras actividades criando vínculos sociais, só que a sociedade salarial que nasceu há cem anos é hoje em dia hegemónica. O trabalho tornou-se num pré-requisito para todas as actividades sociais que possibilitam a integração na sociedade. O próprio trabalho é hoje, muito mais do que há cem anos, muito mais que apenas trabalho.

1 COMENTÁRIO

  1. Parabéns por esta lucidez. Um texto exemplar sobre a essência humana. Parabéns, Pedro Cotrim!

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