Descontentamento e apatia. Cartão vermelho às políticas de austeridade. Votar ou não votar é exactamente a mesma coisa. Partidos mainstream apanham susto. Ressurgimento de sentimentos nacionalistas e extremistas. Défice de democracia substantiva. Afinal, que Europa é esta? Há pouco mais de um ano, a 27 de Maio de 2013, a comissária europeia para os assuntos internos, Cecília Malmström, proferia um discurso numa conferência em Berlim convenientemente intitulada “Nós somos os outros”. No seu discurso – a propósito da “ascensão do extremismo de direita na Europa”, Malmström contou uma história passada no Parlamento Europeu, a 27 de Janeiro de 2013, dia em que se assinalavam as atrocidades ocorridas em Auschwitz. O evento começou pela exibição de um filme, a preto e branco, o qual mostrava os horrores passados no gueto de Varsóvia, comentado por velhos sobreviventes do holocausto. Mais tarde, e no mesmo dia, um outro filme era exibido na cerimónia dedicada às vítimas de Hitler, mas colorido, mostrando um conjunto de jovens a marchar na rua, assediando verbalmente, batendo e injuriando um conjunto de ciganos. O filme tinha como cenário a Hungria da actualidade. Muito se tem falado, escrito e debatido sobre os resultados das eleições europeias de 25 de Maio. Para além das estatísticas avassaladoras no que respeita à abstenção, a queda dos partidos tradicionalmente fortes na Europa – também denominados como mainstream – gerou consternação, principalmente em países como a França, considerada como um dos motores principais, em conjunto com a Alemanha, do chamado projecto europeu, o qual parece ter ficado seriamente ameaçado depois da vitória de Marine Le Pen e da sua Frente Nacional, em conjunto com os bons resultados obtidos por partidos “congéneres” um pouco por toda a União. Todavia e apesar de não ser possível afirmar, taxativamente – e ainda bem – que a Europa está a ser palco de um “ressurgimento da extrema direita” , mesmo com a maior expressão eleitoral ganha por partidos mais pequenos, eurocépticos e, em alguns casos mais preocupantes, anti-imigração, “islamofóbicos” e até defensores da “supremacia branca “– a boa notícia é que não estamos perante nenhum “extremismo” europeu coeso. Existe, sim, um conjunto de diferentes resistências, heterogéneas, ao tão falado e, aparentemente “quebrado”, projecto europeu. Mas e mesmo assim, os alertas proclamados pela comissária europeia fazem todo o sentido. Afinal, se os grandes vencedores destas eleições foram os partidos anti-austeridade, basta examiná-los com algum pormenor e são vários os factos encontrados que servem para assustar: para além da tirada mais do que mediatizada do senhor Le Pen – que facilmente “curaria” o problema da imigração com o vírus Ébola – a qual parece não ter sido suficientemente grave para retirar votos à Frente Nacional agora liderada pela sua filha (que obteve 25% dos votos dos franceses), a amálgama de partidos que fará parte da terceira força política da Europa representa uma mescla de sinais verdadeiramente perigosos. A análise poderá começar exactamente pela Alemanha, onde o Partido Nacional Democrático (NPD) conseguiu, pela primeira vez, eleger um deputado para o Parlamento Europeu. Fundado em 1964, este partido nacionalista “sucessor” da ideologia nazi, arrecadou 300 mil votos ou 1% do total de eleitores. A juntar ao anti-europeu AfD (partido Alternativa para a Alemanha), que obteve votos suficientes para garantir sete assentos – 7% do total de eleitores – e o novo grupo vai somando pontos. A Aurora Dourada, cujo porta-voz ostenta uma cruz suástica tatuada, e com vários dos seus mais importantes militantes na prisão por fazerem parte de uma organização criminal, é agora o terceiro partido mais importante da Grécia – o vencedor foi o Syriza ou a Coligação da Esquerda Radical – tendo conseguido a sua estreia no Parlamento. Mais para norte, o Partido Popular Dinamarquês, cujo líder considera que a imigração, no seu país, não é nem “natural” nem “desejada”, duplicou o número de lugares que já tinha no Parlamento e arrecadou 27% dos votos dinamarqueses. Menos bem estiveram o partido eurocéptico da Finlândia, apesar da garantia de dois assentos no parlamento, e o Partido da Liberdade holandês, assumidamente da extrema-direita e cujo líder afirma que o “Islão é o cavalo de Tróia da Europa”, o qual manteve os quatro eurodeputados que já possuía. Para fechar o ramalhete, o também Partido da Liberdade austríaco, o qual, com a sua plataforma anti-imigração angariou 14,7% do eleitorado, duplicando os lugares no Parlamento, junta-se a um dos mais óbvios partidos neonazis da actualidade, o húngaro Jobbik, cujos membros já manifestaram a intenção de chamar os habitantes judeus do seu país para fazerem parte de um “registo especial”. Apesar de não ter ganho as eleições húngaras, o ultra-nacionalista partido de discurso racista, xenófobo e anti-semita, ficou em segundo lugar com 14,7%, o que lhe valeu a eleição de três eurodeputados Ou, em suma, qualquer semelhança com tempos idos não é, de todo, pura coincidência. Retomando os alertas feitos por Cecília Malmström, a 15 de Janeiro último, a União Europeia anunciou a adopção de 10 recomendações para que todos os Estados-membros reforcem as suas acções contra todos os tipos de violência extrema. Mas, se estes partidos são “legais” no interior dos países a que pertencem, serão as recomendações da União Europeia suficientemente fortes para serem levadas a sério?
Descontentamento, frustração, medo e apatia Devidamente esmiuçados, os motivos para os vários tremores de terra que assolaram os partidos mainstream europeus são já do conhecimento de todos nós. Os europeus têm todas as razões do mundo para manifestarem a sua enorme frustração face a uma classe política na qual não confiam. Adicionalmente, esta mesma classe política é percepcionada como incompetente, egoísta, sem o mínimo de interesse face às preocupações dos leitores e, na maioria dos casos, como corrupta. O descontentamento crescente com as condições económicas e sociais do Velho Continente, com o peso insustentável das políticas de austeridade e, em particular, com o facto de os europeus já terem percebido que as decisões que afectam realmente as suas vidas não são tomadas a nível nacional, mas “europeu”, contribuiu, em larga escala, para uma apatia generalizada bem traduzida nos níveis elevados de abstenção. Por outro lado, e como explica Mary Koldor, professora de Governança Global na London School of Economics, a natureza deste descontentamento é explicada igualmente pelo facto de que, apesar de viverem numa democracia, os cidadãos europeus sentem que seja lá o que disserem ou fizerem, nenhuma diferença fará, na medida em que todos os partidos “estabelecidos” são iguais e que votar ou não votar é largamente irrelevante. Um dado interessante pode igualmente ser retirado destes resultados eleitorais. Em vários dos países cujos partidos antieuropeístas obtiveram melhores resultados, uma boa parte dos votos foi proveniente das camadas mais jovens. A título de exemplo, 30% dos eleitores que votaram na Frente Nacional de Marine Le Pen tinham menos de 35 anos comparativamente a apenas 21% de maiores de 60 anos. Um fenómeno similar aconteceu no Reino Unido, onde pela primeira vez em 100 anos, um partido diferente dos habituais conservadores e trabalhistas venceu as eleições, garantindo a eleição de 24 deputados, mais 11 do que em 2009. Do seu total de votantes, 13% foram jovens entre os 18 e os 24 que escolheram o eurocéptico UKIP (United Kingdom Independence Party). Até na Alemanha, que não sofre propriamente dos males económicos dos demais países, os jovens eurocépticos quiseram dar um ar da sua graça. Os membros da jovem AfD, com afiliação directa ao partido eurocéptico com o mesmo nome, revelaram, numa sondagem feita à boca das urnas, a sua preferência por partidos não tradicionais (aproximadamente 20% dos eleitores com menos de 30 anos), numa percentagem visivelmente superior face a 2005. De acordo com a BBC, “os jovens alemães eurocépticos tecem duras críticas às políticas de resgate, exigem a dissolução do euro, pretendem travar a expansão da UE e manifestam-se a favor de quotas para a imigração”. Razões mais do que suficientes para que, numa Europa onde o desemprego jovem afecta quase seis milhões de jovens e um total de 7.5 milhões que não estão nem no sistema de educação, nem a trabalhar (a geração apelidada de nem-nem), a atenção a estas vozes deva ser, no mínimo, duplicada.
O enfraquecimento da democracia substantiva Mary Koldor, especialista em governança global, afirma que os nacionalismos consistem numa forma de desviar o descontentamento para um bode expiatório conveniente – o “outro”, ou, no caso particular da Europa, para os imigrantes. “É uma forma de mobilizar o apoio político ao mesmo tempo que se evita qualquer tipo de compromisso para abordar as causas subjacentes ao descontentamento”, acrescentando que é por isso que estes novos partidos são comummente denominados como “populistas”. No artigo em causa, Koldor recorda os apelos ao nacionalismo desde a primeira grande guerra, mas também cita os conflitos sectários que têm tido lugar na Bósnia ou na Síria como forma de desviar ou suprimir os movimentos democráticos. Mas o que é mais interessante nesta análise é a distinção realizada entre democracia formal e democracia substantiva, esta última, avaliada pela professora da LSE, “em défice profundo” na Europa. Explicando que a democracia formal é a que diz respeito às normas e procedimentos – incluindo o direito de voto, as eleições regulares, a liberdade de associação ou de expressão, entre outros – a democracia substantiva está, por seu turno, relacionada com a igualdade política, ou seja, com a capacidade que esta tem para influenciar as decisões que afectam as vidas dos cidadãos. E argumenta: “apesar da significativa disseminação dos procedimentos democráticos nas últimas décadas, existe um défice profundo e crescente na democracia substantiva em todo o lado”. A razão mais óbvia para este “outro” défice – como se os europeus já não tivessem défices suficientes – é, de acordo com a professora, a globalização. Na medida em que a democracia formal é organizada numa base nacional, como todos sabemos “as decisões que afectam as nossas vidas são tomadas em Bruxelas, em Washington D.C., nas sedes das grandes multinacionais, ou nas praças financeiras de Londres, Hong Kong ou Nova Iorque”. O argumento de Mary Koldor é o de que, por muito perfeitos que sejam os procedimentos democráticos formais realizados a nível nacional, se as decisões que afectam realmente as vidas das pessoas não o são, então não existe motivo algum para se votar. Adicionalmente, aquilo a que chama a “esclerose do Estado-nação” em conjunto com as instituições que foram crescendo depois da segunda grande guerra e que acabaram por ficar profundamente dependentes de rotinas e práticas, incluindo as tendências para o controlo e a vigilância que são difíceis de mudar, contribuem também para a fuga ao voto. Todavia, o mais importante argumento apresentado por esta professora é o de que “os partidos políticos deixaram de ser um fórum de debate sobre os interesses públicos, tendo-se transformado em meras máquinas eleitorais (…)”. Por último, Mary Koldor afirma ainda que não é só o antieuropeísmo que explica os bons resultados dos partidos populistas nas eleições europeias, mas sim o pressuposto enraizado de que as mesmas não têm interesses algum. “A União Europeia é abstracta e burocrática”, afirma, e “o voto [nas eleições europeias] não é para eleger os representantes do Parlamento, mas sim para protestar contra as políticas nacionais”. E sim, a União Europeia pode até ser “abstracta”, mas a verdade é que as políticas que assume e que implementa nada têm de abstracto quando afectam, negativamente, a vida dos seus cidadãos. |
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Editora Executiva