A expressão lóbi pode ter várias interpretações, variando consoante o interlocutor, mas para o público em geral, assume frequentemente uma conotação muito negativa e, por vezes, muito próxima de tráfico de influências. Apesar de não estar (ainda) regulamentado em Portugal, o tema levanta também questões éticas, com necessidade de reflexão, individual e coletiva
POR HELENA GONÇALVES E SUSANA MAGALHÃES
“Lóbi e tráfico de influência” foi um dos temas escolhidos para as três sessões regulares de 2024 do Fórum de Ética da Católica Porto Business School. A reflexão sobre a fina linha que separa estes dois conceitos teve o contributo de três membros do Fórum: Ângela Fernandes (DST Group), Paula Mendes (LIPOR) e José Ricardo Gonçalves (RBMS Advogados), que despoletaram uma excecional e frutuosa reflexão por todos os participantes.
Neste artigo, também escrito a várias mãos, coube-nos a dificílima tarefa de registar para memória futura a reflexão coletiva da sessão, que partilhamos, como habitualmente, com a comunidade.
A expressão lóbi tem origem no termo inglês lobby, que remete para as salas de espera do parlamento britânico, o equivalente português às salas dos passos perdidos, local onde as pessoas aguardavam para reunir com os governantes, nem sempre conseguindo o que pretendiam, perdendo, por isso, os seus passos, literal e figuradamente. O substantivo tornou-se um verbo e a palavra saltou do léxico da arquitetura para a linguagem política. A palavra foi adaptada à ortografia portuguesa, dando origem a lóbi e lobistas.
O lóbi é uma forma de diálogo entre grupos organizados e governos, com o objetivo de influenciar legitimamente os políticos na tomada de decisão. Através de comunicação direta ou indireta com pessoas da administração pública e representantes ou decisores políticos, procura-se esclarecer dúvidas e prestar informações técnicas e rigorosas necessárias à tomada de decisão.
O lóbi é então uma forma legítima de defesa e promoção de interesses, perspetivas e visões face a um determinado problema ou solução política, mediante a mobilização de um conjunto de recursos (dinheiro, informação, capacitação técnica) e estratégias de pressão, com a intenção de influenciar legitimamente os processos legislativos, regulatórios ou decisórios, para benefício próprio ou de terceiros. Lobistas são profissionais que representam interesses privados, atuando como intermediários entre empresas, corporações, partidos políticos e o poder público, cuja função é exercer, de forma legítima e transparente, pressão política para influenciar decisões em favor de quem representam:
Quando pensamos o lobbying regulamentado com regras e feito numa forma ética, falamos na possibilidade de uma empresa, ou uma agência de comunicação, ou de um escritório de advocacia, poder exercer influência junto do poder político. Isso implica que, um dia, qualquer pessoa possa ter acesso a com quem é que se falou, ou quem falou com quem quando tomamos uma determinada decisão, ou quando legislamos num determinado sentido. Não vejo perigos na atividade em si, mas sim na forma como ela é desempenhada sem estar regulamentada.
João Simão
Lobby? “Não vejo perigos na atividade, mas na falta de regulamentação” (tsf.pt)
Há, no entanto, uma linha muito fina entre o lóbi e o tráfico de influências
O tráfico de influências consiste na prática ilegal por via da qual uma pessoa se aproveita da sua posição privilegiada ou das suas ligações com pessoas em posição de autoridade, para obter para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influenciar um ato praticado por funcionário público no exercício da função. O tráfico de influências passou a ser considerado crime em 1995, estando previsto no Código Penal, artigo 335.º – “Tráfico de influência”.
Embora possa parecer que lóbi e tráfico de influência são práticas similares, a principal diferença está na legalidade. O lóbi é uma atividade reconhecida e legal, enquanto o tráfico de influência é crime. A legislação não considera o lóbi como parte deste crime, permitindo que seja uma ferramenta legítima para representar interesses privados no âmbito político.
Ou seja, enquanto o lóbi envolve ações legítimas de pressão política, realizadas de acordo com a lei, para representar interesses privados, o tráfico de influência é um crime, caracterizado por uma atuação destinada ao pedido, obtenção ou simples promessa de vantagens indevidas através da influência ilegítima, real ou suposta, exercida sobre agentes públicos.
Será traficante de influências com grandes hipóteses de sucesso quem, estando inserido no circuito decisório, coloca as relações pessoais que tem, ou o poder de que é detentor, para os efeitos acima descritos. Pretende-se influenciar a decisão do agente público (que conflitua com as suas relações pessoais) por meio de uma vantagem patrimonial ou não patrimonial prometida ou atribuída ao influente.
No que se refere aos lobistas, estes procuram persuadir o agente público, usando argumentos legítimos na defesa de interesses que representam. Lóbi e tráfico de influências integram-se num conjunto de outros conceitos que exigem clarificação, nomeadamente, conflito de interesses e os do quadro abaixo.
Por conflito de interesses deve entender-se a situação em que um membro dos órgãos sociais, funcionário ou consultor se encontra, por vontade própria ou por contingência, sendo ou podendo ser influenciado por um interesse secundário que detém ou promove para terceiros e que pode afetar a sua capacidade de decidir, emitir juízo ou atuar com objetividade e imparcialidade, no exercício de funções.
O significado de “influenciar” situa-se entre as duas fronteiras: a persuasão e a coação. Quem persuade determina outrem preservando total respeito pelo seu arbítrio. A persuasão em si mesma não é crime. Quem coage ou ameaça atua violentamente, para constranger afetando a liberdade de terceiro. “Influenciar” é diferente de “instigar”, “coagir” ou “ameaçar”.
No que se refere às consequências do tráfico de influências, destacam-se:
Prejuízo nos cofres públicos – vantagens indevidas de determinado agente, prejudicando outros investimentos em benefícios da sociedade;
Desigualdade na concorrência empresarial – distorção do ambiente concorrencial e a própria dinâmica das empresas, saudável e favorável à economia;
Desgaste da confiança pública – a perceção de que as decisões importantes são influenciadas por interesses privados em vez do bem comum, a confiança na integridade do sistema é abalada, influenciando a representatividade democrática e comprometendo a eficácia do processo político.
Olhares que fazem a diferença
As diferentes culturas integram interpretações distintas do termo. No Brasil o termo lóbi está mais próximo do conceito de corrupção, enquanto que no norte da Europa invoca o conceito de “grupos de pressão”.
Há igualmente variações de interpretação entre diferentes interlocutores: para o público em geral, o lóbi continua a ser um mistério e assume-me como uma coisa negativa. Para grandes grupos, associações, organizações setoriais e decisores públicos, o lóbi é visto em geral como uma prática ou conduta aceitável que pode promover melhores políticas sem prejuízo do interesse público:
A expressão continua a ter uma conotação negativa porque não existe uma explicação cabal sobre o que é a atividade, o que leva à conotação negativa que aparece quando se fala em lobby. Quando na realidade o verdadeiro lobby, feito de forma ética e regulamentada, aumenta a transparência e não a opacidade os processos decisórios
João Simão
Lobby? “Não vejo perigos na atividade, mas na falta de regulamentação” (tsf.pt)
Dentro dos mecanismos de participação pública nas democracias representativas, existem inúmeros outros conceitos próximos, por vezes confundidos com o lobismo, como os de grupos de pressão, grupos de interesse e, mesmo, de partidos políticos, visto que estes atuam no espaço entre governo e cidadãos.
17 países dos 27 Estados-Membros e a própria União Europeia já têm regulamentação especifica que contribui para garantir aos processos de decisão, transparência, escrutínio e confiança.
O número de países com regulamentação sobre lóbi duplicou nestes últimos 10 anos. De assinalar que os países nórdicos entendem não necessitar da sua regulamentação, uma vez que a sua atividade política se caracteriza por ampla transparência.
E em Portugal? A verdade é que a famosa “cunha” está generalizada na sociedade portuguesa e tem até, em muitas situações, aceitação social. Fazer um favor é entendido como uma forma de manter bom relacionamento seja social, seja profissional:
É neste contexto que foi elaborado pela APECOM o Código de Conduta de Assuntos Públicos para a Representação legitima de interesses a ser subscrito pelos Associados e Não Associados da APECOM (APECOM – A necessidade da autorregulação do Lóbi) enquanto instrumento de autorregulação, transparência e ética.
Independentemente da legitimidade dos interesses defendidos, muitos contactos com decisores públicos são realizados de modo informal, através de contactos pessoais, frequentemente durante almoços de trabalho, tornando difícil a distinção entre meras relações pessoais e lóbi.
Há agências e consultoras de comunicação que se assumem claramente como lobistas, sendo responsáveis por grande parte da atividade que se faz na área em Portugal, trabalhando para grupos e empresas que atuam junto do mercado para trabalharem a sua imagem e a forma de passar a sua mensagem.
Para além das empresas, também as ordens profissionais, os sindicatos e outro tipo de associações tentam influenciar legitimamente os decisores a favor dos interesses que defendem.
Nas organizações será prudente estabelecer uma agenda concreta que tenha objetivos e a identificação da estratégia, um plano de ação e a determinação de atividade concretas, a definição de parceiros chave e respetivo levantamento de momentos chave, e naturalmente, um conjunto de indicadores que permitam medir o impacto.
Para a concretização da sua agenda, as organizações têm ao seu dispor instrumentos de vária ordem, desde pronunciamentos a position papers, passando por representação em associações, reuniões, especialistas, porta-vozes e participação ativa em eventos e conferências, até relações públicas, grupos de trabalho, comissões técnicas, publicações, media, entre outros.
Em síntese, o desenvolvimento de uma Agenda de Lóbi encontra-se focada na relação direta de influência junto de decisores, em diversos temas que estão na ordem do dia exigindo regulamentação, transparência, códigos de ética e conduta formalizados e conhecidos, bem como a existência de mecanismos de accountability que garantam e assegurem a sua legitimidade. Reflete a necessidade de um processo estruturado claramente mapeado numa Matriz de Priorização de objetivos e de identificação das partes interessadas que define a mudança desejada, quem a promove, como e quando, quais os resultados esperados e como monitorizar a sua implementação.
No seguimento do que já sucede em França e na Alemanha, considerou-se nesta sessão de reflexão do Fórum de Ética que o lóbi deve ser regulamentado, permitindo-se, dessa forma, “saber com o que contamos”, criando bases para a formação comportamental no sentido do que é permitido e traçando uma linha de fronteira entre a atuação lícita de representação de interesses e o tráfico de influência, que, como se sabe, constitui crime punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
Num Pais em que a “cunha” constitui uma marca cultural no comportamento social da generalidade da população, sendo certo que nem todas as “cunhas” são ilícitas, o estabelecimento de regras para o lóbi traduz-se numa forma de assegurar a transparência no relacionamento dos privados com a Administração Pública e desta com eles.
Aguardemos o que os grupos parlamentares nos apresentarão para posterior debate que se exige seja sério, transparente, fundamentado, seguindo exemplos de outras jurisdições internacionais, tendo em vista a sua criação legislativa, desejavelmente aprovado por unanimidade dos deputados parlamentares, processo cuja pegada deve ser traçável e nele envolvidos, de forma alargada, os representantes das diferentes áreas de atividade na sociedade.
Em modo de conclusão, salientamos dois conceitos importantes que devem ser tidos em conta na reflexão sobre a necessidade de regulamentação da prática do lóbi: transparência e autenticidade. Assumindo que a ética está antes e depois da lei, a regulamentação do lóbi poderá ter dois efeitos, um desejável, o outro não: clarificar boas práticas e o sentido dos diversos conceitos previamente referidos; permitir que, sob a moldura da lei, possa continuar a haver práticas não éticas.
A regulamentação da influência de interesses deverá ser sempre acompanhada pela formação em ética, pela implementação de espaços de reflexão ética nas organizações e pela promoção da literacia em áreas importantes da nossa vida em sociedade. Sem estes pilares, a regulamentação do lóbi poderá criar a falsa ilusão de que todos os cidadãos, se assim o entenderem, terão a oportunidade de influenciar o poder na tomada de decisão, defendendo os seus interesses. Consideramos que a regulamentação é um passo importante para a mudança de práticas, mas sem investimento na formação em ética e em procedimentos que viabilizem a transparência e a autenticidade, o caminho ficará por fazer ou será mal feito.
Nota: Um especial agradecimento a Ângela Fernandes (DST Group), Paula Mendes (LIPOR) e José Ricardo Gonçalves (RBMS Advogados) pela sua contribuição para a sessão do Fórum de Ética e para escrita deste artigo.
Ilustração: © Maria Sottomayor