“Foi preciso a cristandade para transformar a natureza do trabalho, e entendê-lo como um propósito da humanidade”, afirmou o Cardeal Peter K. A. Turkson, na conferência online promovida pela AESE Business School dedicada à dignidade humana e ao futuro do trabalho e numa era em que imperam as forças da globalização e do progresso tecnológico disruptivo. Alertando para o facto de a falta de fraternidade se assumir hoje como mais um enorme desafio, Turkson define o necessário debate sobre o novo humanismo “como um convite para reconhecermos a necessidade de recuperar o sentido da pessoa humana e de todo o contexto que a envolve”
POR HELENA OLIVEIRA
O responsável pelo Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, também chamado de “super-ministério do Vaticano” iniciou a sua prelecção dando uma salto até ao passado e recordando que em Roma, o trabalho se assumia como “uma actividade indecente, reservada a escravos e a estrangeiros, e não um ofício que os romanos partilhassem ou desejassem fazer”. Em contraposição, recorda que “as Escrituras ensinam-nos que o trabalho não é uma tarefa imposta ao homem, que o torne servil ou escravize, mas algo que a humanidade, desde o princípio, era suposto fazer”, sublinhando ainda que todas “as actividades manuais, intelectuais e outras se devem coordenar com o objectivo de promover o desenvolvimento humano”. E foi a partir deste pressuposto que o cardeal ganês desenvolveu a sua dissertação.
Afirmando que ao longo da história, o verdadeiro desenvolvimento teve um impacto na natureza do trabalho, no seu exercício, nos seus objectivos e nas várias formas que existem para o compreender, viver e avaliar, e introduzindo os dois factores em debate, a globalização e a tecnologia, o cardeal Turkson começou por elencar as qualidades da primeira, hoje em dia tão questionadas. “A globalização interconectou-nos, potenciou a comunicação, possibilitou-nos a capacidade de concretizar, reduziu as distâncias entre as pessoas e aproximou-nos cada vez mais”, declarou, acrescentando ainda que a mesma, assente nas tecnologias de informação, “agregou-nos, mitigando a separação que existia entre nós”. Mas e infelizmente, contrapõe, apesar de nos ter aproximado, não nos conseguiu transformar em irmãos. Citando o Papa Bento XVI e o seu conceito de “estar em relação”, o Cardeal sublinhou a ideia que esta suposta proximidade,” não incutiu o sentimento de irmandade, que nos faz ser responsáveis uns pelos outros”. E, a seu ver, este é o principal desafio inerente ao conceito de globalização. “Abeirou-nos como vizinhança, ainda que não fraternalmente”.
No que diz respeito às tecnologias, um os seus maiores impactos na actividade laboral e que influencia, a seu ver, a globalização, está relacionado com a tecnologia digital e com a inteligência artificial. E na medida em que este tipo de tecnologia consiste, essencialmente, no processamento e na transferência de grandes quantidades de dados que possibilitam a transformação da realidade, não nos podemos esquecer que, por causa disso, “faz-nos correr o risco de perdermos a noção da pessoa humana”. Ou seja, mesmo que representado por gráficos e símbolos, tal não deixa de ser uma simplificação do próprio individuo. Um bom exemplo é exactamente o caso da actual pandemia, que envolve milhares de pessoas e cuja realidade nos aparece simplesmente reduzida a números e a gráficos. Todavia, sublinha o Cardeal Turkson, a realidade, bem como a vida humana, não pode ser simplesmente reduzida a este tipo de linguagem. Como refere, “ao falar-se de 20 mil óbitos nos EUA devido à pandemia, não se trata apenas de 20 mil pessoas, mas das suas famílias desmoronadas, pessoas que enviuvaram, órfãos…”. E este debate sobre o novo humanismo é, exactamente, um convite para reconhecermos a necessidade de recuperar o sentido da pessoa humana e de todo o contexto que a envolve.
Para o responsável do pelo Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, “a modernização de todos os nossos sistemas, nomeadamente o político e o religioso, implica o retorno ao sentido fundamental do ser humano, seja homem, mulher ou criança”, constituindo a recuperação desse humanismo o que viabiliza a necessária tomada de consciência relativamente à forma como tratamos uma pessoa ou cuidamos dela integralmente.
Citando novamente a pandemia, traduzida em inúmeras mortes e também num preocupante colapso financeiro, Turkson introduz o problema do encerramento de muitos negócios e, consequentemente, a subida do desemprego, lamentando que “a primeira solução passa por despedimentos, layoff dos colaboradores e a redução de custos para que algum nível de lucro possa ser mantido”. Citando o Papa Francisco, que refere que há um novo veneno que foi introduzido no sistema e que visa a destruição de postos de trabalho”, o Cardeal recorda que “quando uma pessoa não tem a oportunidade de se exercitar no trabalho, o indivíduo também perde uma parte da sua dignidade”. E se o trabalho se traduz num forma de exercer a viver a dignidade, a reflexão sobre o mesmo torna-se ainda mais imperativa.
“A natureza do trabalho da pessoa humana é crucial. E remonta aos primórdios da vida humana. Atrevo-me a dizer que o trabalho não apareceu depois de alguém ter pecado, não veio como um castigo. Tem um sentido transcendente e é intrínseco ao exercício da dignidade humana”, diz o cardeal, acrescentando ainda que um dos documentos da Igreja – o Compêndio da Doutrina Social da Igreja – “menciona que a actividade humana encontra-se radicada no facto de o ser humano ter sido criado à imagem e semelhança de Deus e, uma vez criado como pessoa, foi imbuído de dignidade, pela qual nos assistem vários direitos, que reforçam essa dignidade que nos é própria”. Para Peter Turkson, tal significa que os direitos humanos não são criados ou instituídos por um governo ou por uma lei, vivendo sim da consciência da dignidade de outra pessoa. “E não é algo atribuído a uma pessoa por alguma deliberação legal, é algo com que nascemos e trazemos em nós”, acrescenta ainda.
“Todos devem partilhar da mesma dignidade”
Sublinhando que a dignidade da pessoa é crucial, e “sendo o Homem criado à imagem e semelhança de Deus como fonte da sua dignidade, insubstituível”, este foi criado como um ser relacional, sendo próprio da natureza humana uma pessoa realizar-se e relacionar-se, sendo que “o ser humano é chamado para o Bem nestes relacionamentos”, nos quais assentam a irmandade e a fraternidade.
Todavia, e no mundo em que vivemos, a falta de fraternidade assume-se como uma problemática desconexão. “As pessoas são criadas como irmãs. E o ponto interessante disto é que a humanidade é apresentada como uma família, com relações fraternas, em que todos os elementos estão interligados por laços”, realça. Desta forma, a rejeição e a recusa da fraternidade com os irmãos constitui mais um importante desafio para a humanidade de hoje e “dispensar ou demitir um irmão qualquer que seja a razão é um problema”, acusa, realçando de seguida que “todos devem partilhar da mesma dignidade” e que “nenhum ser é mais digno que o outro”.
À luz da antropologia cristã, acrescenta ainda, “o sentido atribuído a irmãos era semelhante a ser de Delfos, na Grécia, isto é, terem a mesma origem: oriundos do mesmo ventre, era impossível terem uma dignidade distinta”. E é também por isso que “ser-se relacional e digno distingue-nos como seres humanos comparativamente aos demais elementos criados”, pois “nada mais no Céu e na Terra é constituído desta maneira”.
E é assim que, nas palavras do Cardeal Turkson, surge o princípio da solidariedade, subsidiariedade, comunidade e tantas outras premissas. “Comum a todos e próprio de cada um, é indivisível, ainda que só em conjunto se manifeste efectivo”, declara, acrescentando que este aspecto da vida social e económica realiza-se quando se coloca ao serviço do bem comum. Consequentemente, “tal convida-nos a pensar no efeito daquilo que fazemos às outras pessoas, em todas e não somente em algumas – e, inclusivamente, às gerações futuras que virão depois de nós”. Assim, e na medida em que o principio do bem comum toma em atenção o efeito em cada um, é igualmente suposto que oriente a nossa conduta, “sendo que a maneira como fazemos política e qualquer outra actividade em sociedade deve permitir-nos reconhecê-lo”.
O Cardeal Peter Turkson acrescentou ainda que “uma sociedade que deseja e pretende permanecer ao serviço do ser humano a todos os níveis é uma sociedade que tem o bem comum, o bem de todas as pessoas como o objectivo principal”. Para Turkson, esta preocupação com o bem de todos é a base da solidariedade,” um compromisso activo com o bem comum e a realização do bem do outro”, acrescentando ainda que este foi um dos legados do Papa João Paulo II: “Não podemos ser fraternais se não nos aproximarmos uns dos outros, cuidando e reconhecendo a dignidade”.
O cardeal ganês refere ainda a Encíclica “Laudato Si’”, na qual o Papa Francisco começa por referir a ecologia integral, que expressa o carácter natural no qual estamos interconectados, mas que também nos convida a compreender que também a natureza humana tem a sua própria ecologia, sem esquecer que certas condições devem prevalecer no ambiente para que a nossa natureza possa desenvolver-se e florescer. Todavia, e como sabemos, não temos conseguido criar as condições ideais ao seu florescimento. E, tal como a natureza, “a pessoa humana também tem o seu ambiente próprio: um conjunto de condições morais, físicas e espirituais que precisam ser respeitadas, para uma vida próspera”. Por seu turno, o Papa Bento XVI convoca-nos igualmente a reflectir sobre o facto de a nossa sociedade ter um ambiente com um conjunto de condições que permitem à sociedade florescer. E, acrescenta o Cardeal, “quando juntamos todas estas ideias, reconhecemos que o desenvolvimento integral dá-nos a chave para que possamos crescer e viver as nossas vidas satisfatoriamente”.
A título de conclusão, o cardeal Peter Tukson volta a utilizar as palavras de Francisco, para quem “o trabalho é uma necessidade que confere sentido à vida humana na Terra, em prol do crescimento e desenvolvimento, no sentido da realização”.
E, no final da sua intervenção, fez ainda saber que desde que a Covid-19 apareceu no Vaticano, foi constituída uma comissão de trabalho de preparação para o futuro: “o futuro que desejamos, que seja o melhor para o ser humano, que reúna as melhores condições para que o ser humano possa viver, numa ecologia integral, na qual se sinta feliz”
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