POR CRISTINA SALGADO
“O primeiro fundamento do valor do trabalho – e por isso a sua dignidade – é o mesmo homem. (…) Na realidade, o protagonista e o fim do trabalho, o seu verdadeiro criador e artífice, mesmo nas mais humildes e monótonas atividades, é sempre o homem, como pessoa. E o homem que foi criado à imagem de Deus1” – João Paulo II, no Discurso proferido na Avenida dos Aliados, Porto, 1982
Muitos estudos têm vindo a satisfazer a curiosidade de investigadores e de instituições acerca do modo como o trabalho é entendido, gerido e vivenciado, ao longo do exercício de uma profissão ou no desempenho de uma tarefa. Poder-se-á registar mesmo a consensualidade de opiniões e de princípios, salvaguardando, contudo, em alguns casos, a diversidade de modelos de aplicação dos mesmos. Um ponto comum carateriza as diferentes abordagens: encontrar os meios necessários a que cada pessoa que trabalha se sinta realizada e seja feliz no desempenho da sua atividade profissional.
Neste sentido, demarca-se toda uma panóplia de contributos, aportados pelas ciências da administração, psicologia, sociologia, antropologia, do direito, oferecendo plataformas várias, com o objetivo de ajudar a posicionar o homem em contextos laborais adequados, imprimindo uma maior sensibilidade para a pessoalidade de quem trabalha.
Têm sido dados passos relevantes, deixando firmados rastos de humanização, quer nas estruturas laborais, quer nos processos de trabalho e de relacionamento humano. Poder-se-á falar da introdução de mais-valias, ao serviço do bem-estar e da satisfação no trabalho, em empresas e em organizações de índole diversa.
Enquanto cristãos, procurámos prolongar um pouco, aquilo que nos deparam os diferentes estudos conhecidos, realizados com o objetivo atrás descrito. Procurámos então identificar alguns traços que consigam patentear a forma como é percecionado o trabalho quando regido por algo que protagonize maior espiritualidade no desempenho de uma atividade laboral.
Quando falamos em espiritualidade, geralmente associamos este conceito à relação entre o humano e o divino. A espiritualidade, no âmbito deste estudo, teve em conta, sobretudo, o modo como cada um, de forma pessoal e íntima, procura dar sentido ao trabalho, vivenciando posicionamentos e relações compatíveis com as de alguém que interioriza um conjunto de valores, refletores do respeito pelas pessoas, enquanto seres dotados de espírito. Pessoas onde co-existem o corpo e a alma, em busca da felicidade. Como diz Aristóteles “ A felicidade é uma certa atividade da alma de acordo com uma excelência completa”.
Neste ensejo, propusemos conhecer o modo como se posicionam, no dia-a-dia de trabalho, quer os gestores quer os colaboradores, em domínios que ultrapassam o sentido de apenas “bem-estar” no trabalho, identificando alguns parâmetros diferenciadores, relacionados com algumas dimensões e indicadores que reflitam o modo como se encontra impregnada (ou não), a atividade profissional, por algumas vertentes de caráter eminentemente espiritual. Adotámos como pressupostos, algumas das conceções adotadas no pensamento de Hannah Arendt (2001) quando propõe significados diferenciadores, mas complementares, relativos ao trabalho, ao labor e à ação2. A autora faz a apologia de um padrão, centrado na relação entre o modo como o ser humano dá forma à vida ativa e potencia as suas capacidades físicas e espirituais. Será a interconexão, mas também a complementaridade dos conceitos de labor, de trabalho, de ação, adotados pela autora, a que juntámos o de espiritualidade, que ajudará a abrir caminhos à definição de referenciais do estudo que nos propusemos empreender.
Na ótica da equipa que realizou o presente estudo, o trabalho tem de ser encarado como fruto da vontade de Deus. Desde o início Ele desejou que o ser humano trabalhasse. O trabalho do homem é apresentado como uma instituição da sabedoria divina (Salmos 104: 19-24; Isaías 28:23-29).
[pull_quote_left]A espiritualidade tem em conta o modo como cada um, de forma pessoal e íntima, procura dar sentido ao trabalho[/pull_quote_left]
Daqui decorre a responsabilidade de, quando fazemos opções ou realizamos atividades relacionadas com a vida de trabalho, cabe-nos, enquanto cristãos, saber integrar, na nossa atividade, não apenas a inteligência, mas também a afetividade e a vontade, imprimindo um cunho transcendente à obra que provém do fazer e do saber de cada um.
No mundo moderno, onde a prevalência dos conceitos em torno do homo faber e do homo laborans, é reclamada por um número significativo de reflexões, oriundas mesmo de autores consagrados, torna-se necessária a implantação de uma nova visão do ser humano, encarado como ser único, singular, impermutável e irrepetível e, a quem terão que ser dadas condições para ser feliz.
E é mesmo disso que se trata, quando decidimos estudar o que apelidámos de espiritualidade no trabalho, ou seja, o que permite a cada pessoa sentir-se respeitada e valorizada como um ser, uma realidade não perfeito, mas completo.
A escolha de muitas das questões que procurámos abordar, ao definir as dimensões e os indicadores, norteadores da pesquisa, foi inspirada em compêndios comuns, de gestão de recursos humanos e de liderança, vocacionados para dar resposta àquilo em que acreditam e defendem. Será justo registar, com satisfação, o facto de muitos dos teóricos, em matéria de gestão do capital humano, elencarem temas que dão o devido valor ao ser humano, ao trabalho, visando a felicidade, o bem-estar e a satisfação, no desempenho de uma atividade profissional.
A este figurino, já aceite consensualmente, tentámos apenas alargar o âmbito da investigação, direcionando-a para uma procura mais ambiciosa, no que respeita a princípios e valores, por acreditarmos que o mundo do trabalho deles carece e que, enquanto cristãos, sentimos o desejo de ver refletidos, no quotidiano das pessoas e das organizações.
E foi assim que definimos os parâmetros que permitiram “auscultar” o posicionamento dos inquiridos- gestores e colaboradores-, no que respeita à vivência, pautada por valores e princípios que reflitam o sentido cristão na vida laboral. Formulamos uma questão de partida; elaborámos hipóteses de trabalho; selecionamos o método e a técnica a utilizar na pesquisa; definimos as dimensões e indicadores que integraram a estrutura dos instrumentos de recolha de dados. O resultado do percurso efetuado foi objeto de um relatório, onde constam os fundamentos científicos do projeto, a especificação da metodologia e os resultados obtidos e desagregados pelas diferentes dimensões consideradas. A análise deste relatório permitirá o contacto, globais e desagregados, dos resultados obtidos. Várias tabelas apresentadas, em jeito de síntese, no final do relatório, facilitarão a visualização gráfica das diferentes questões.
Fé e felicidade no trabalho são um estímulo à produtividade
Apenas a título de breve informação registam-se alguns dados mais representativos do estudo, referentes a uma amostra de 401 trabalhadores em Portugal, 91% em pleno exercício da sua atividade profissional, 4,7% em situação de aposentação e 4,2% atualmente no desemprego. Estes trabalhadores foram agrupados em dois estatutos diferentes: os gestores (71,3%) e os colaboradores (28,7%), exercendo a sua atividade em diferentes áreas funcionais, tais como, gestão (58,1%), Operacional (11,0%), Administrativo (5,5%), Comercial (6,0%), Financeiro (6,0%) e outras (13,5%). A crença em Deus está presente em 96,2% dos gestores e em 88,7% dos colaboradores.
[pull_quote_left]No mundo moderno torna-se necessária a implantação de uma nova visão do ser humano, encarado como ser único, singular, impermutável e irrepetível[/pull_quote_left]
Quando auscultámos a opinião dos gestores e dos colaboradores que integraram a amostra do presente estudo, elencámos uma série de questões que permitisse formular juízos de valor acerca dos diferentes agrupamentos em que as colocámos – liderança; afiliação da pessoa com a empresa; relações humanas no trabalho; contornos e perspetivas de carreira; comunicação interna na organização; valores em vigor; ao lugar da espiritualidade na atividade profissional. A partir dos valores encontrados, fomos procedendo a uma análise desagregada de cada uma das questões referidas.
A posição relativa de cada um desses agrupamentos temáticos – constantes no relatório final – permite-nos concluir que existem nas organizações valores humanos, reconhecidos pelos gestores e colaboradores.
Registamos apenas algumas das posições mais representativas, numa escala de 1 a 6:
No que respeita as escolhas dos Gestores quanto a aspetos da Liderança, foram obtidos valores médios de 4, em praticamente todas as respostas, indicando um desempenho de excelência. A questão com maior pontuação foi “Os líderes orientados para valores tornam as organizações mais felizes” (média = 4,6).
Na dimensão Valores a questão mais pertinente é A integridade nos negócios constitui uma forma de estar na organização (média= 4,3). A par desta questão pontuações elevadas foram também obtidas nas questões relativas à dignidade humana, no que concerne às condições de trabalho, e aos valores que determinam a postura no trabalho, quer na ótica dos gestores, quer dos colaboradores.
Na dimensão Relações Humanas no Trabalho a questão mais valorizada foi Consigo desenvolver boas relações de trabalho na empresa (média global = 4,3).
Na Comunicação Interna a questão que mereceu maior destaque foi O meu superior hierárquico defender-me-ia, se necessário (média global = 4,0). Um sentimento de confiança encontra-se implícito nesta escolha, traduzindo uma visão feliz do relacionamento.
Em relação à Carreira, entendida como a sequência de experiências, atividades, papéis, interesses, e valores de vida, que cada pessoa assume ao longo da sua vida, a questão mais valorizada foi Saber que posso progredir na carreira motiva-me (média global = 3,9).
Na dimensão Eu e a Empresa, a questão mais valorizada é Empenho em fazer melhor (média global = 4,6). Uma vida de trabalho cheia de sentido faz parte dos anseios da maioria dos inquiridos, uma vez que, do empenho de cada um, resultará o sucesso da empresa.
Em matéria de espiritualidade, a matriz que se segue, poderá tornar mais fácil uma breve leitura dos resultados. As questões que nela se encontram registadas, colocam os respondentes diante de escolhas individuais (registadas numa escala de 1 a 6) que são convidados a efetuar, refletindo a forma como, pessoalmente, se colocam perante o trabalho e em relação aos “outros”.
A predominância das escolhas com incidência nos valores mais elevados da escala proposta, para a generalidade das questões propostas, evidencia o valor de cada uma delas, no quadro da espiritualidade expressa pelos inquiridos
Uma outra questão que prende a nossa atenção e nos leva a refletir, ao olhar a matriz gráfica da espiritualidade no trabalho, é a expressão fé em Deus e a forma como surge representada.
Sabendo que a fé é o modo como o homem vai dando resposta aos planos de Deus, não será surpreendente vê-la também associada, pelos respondentes do inquérito, à felicidade no trabalho que terá, como uma das consequências mais desejáveis, maior produtividade dando sentido e valor ao trabalho e ao homem. Valor que se refletirá na contribuição para o desenvolvimento solidário da comunidade e, de modo mais abrangente, da humanidade.
Notas:
- João Paulo II – Discurso na Avenida dos Aliados, Porto, 1982
- Arendt, Hannah, A Condição Humana,2001
Equipa de investigação:
Cristina Salgado
Joana Carneiro Pinto
José António Porfírio
Maria Eulália Domingos
Teresa Fonseca