Complexo, polémico e muitas vezes em contracorrente face as seus pares que estudam o futuro do trabalho, Daniel Susskind tem vindo a afirmar-se com um dos especialistas mais conceituados no que respeita ao impacto da transformação digital no contexto laboral e na sociedade. Orador na recente 15ª Assembleia da AESE, o investigador de Oxford deixou uma nota bem clara para os tempos que se avizinham: não são só as ocupações rotineiras e pouco especializadas que serão substituídas pelas máquinas, mas também as que têm traços genuinamente humanos como a criatividade, o discernimento e a empatia. E vale a pena seguir o seu raciocínio
POR HELENA OLIVEIRA

Ao contrário de muitos analistas que se dedicam a prever a disrupção que a transformação digital irá provocar no “futuro do trabalho” – futuro este devida e antecipadamente experimentado um pouco por todos nós desde o deflagrar da pandemia – o britânico Daniel Susskind não concorda que será apenas o trabalho menos especializado – aquele que tem como base tarefas rotineiras e facilmente automatizáveis – que sofrerá um impacto dramático provocado pela automação.

Ao longo da sua carreira enquanto economista e investigador, o também professor na Universidade de Oxford e professor convidado no King’s College de Londres tem-se dedicado ao estudo do impacto da tecnologia – em particular da inteligência artificial – no contexto laboral e na sociedade, sendo co-autor, com o seu pai, do livro “O Futuro das Profissões: como a tecnologia transformará o trabalho dos especialistas humanos” e autor do mais recente “Um mundo sem trabalho: como responder ao avanço da tecnologia”, ambos já publicados em português. E afirma que, ao longo do seu trabalho, sempre se bateu por alertar que mesmo as ocupações mais “qualificadas”e menos baseadas em processos repetitivos – ou as que mais exigem capacidades exclusivamente humanas como a criatividade, o discernimento ou a empatia – não serão de todo menos imunes aos desafios inerentes à transformação tecnológica.

O mesmo acontece com a defesa da ideia de que, se queremos reflectir sobre o futuro o trabalho, devemos olhar para as tarefas e não para os empregos, uma vez que olhar para empregos como entidades totalmente homogéneas e uniformes pode ser enganador quando o que está em causa é a sua automação e possível extinção. Muitas discussões sobre o desemprego tecnológico ignoram este ponto, partindo do princípio de que os trabalhos são constituídos por tarefas únicas. Sussman, pelo contrário, insiste na premissa de que os trabalhos, nas profissões especializadas, podem ser decompostos num conjunto diverso de tarefas constituintes, reiterando assim que a tecnologia não tenderá a substituir totalmente as pessoas nos seus empregos, mas antes que existirão certas tarefas para as quais os humanos já não serão – ou já não são – necessários. Ou e em suma, um emprego só desaparecerá por completo se todas as tarefas que dele fizerem parte se perderem e não forem substituídas por outras novas.

E foi na 15ª Assembleia de Alumni da AESE, que marcou igualmente os 40 anos da escola de negócios portuguesa, que Daniel Susskind partilhou a sua linha de pensamento, por vezes complexa e até polémica, começando por dar exemplos de muitas profissões que estão já a sofrer – ou a ganhar, dependendo da perspectiva – do impacto da revolução digital. Para tentarmos seguir o seu raciocínio, atentemos às transformações tecnológicas que estão já a ter lugar em algumas categorias profissionais distintas.

Na educação, e como refere, foram mais as pessoas que, num só ano, se matricularam em cursos à distância em Harvard, do que todos os alunos que frequentaram a famosa universidade física nos seus 385 anos de existência.

Na área da medicina, dois exemplos: o de uma equipa de investigadores que anunciou recentemente o desenvolvimento de um sistema que, apenas através de uma fotografia de um sinal na pele é capaz de assegurar, tal como os melhores dermatologistas do mundo, que o mesmo é cancerígeno, ou um outro, desenvolvido pela DeepMind da Google [empresa britânica, com o foco em pesquisas e desenvolvimento de máquinas de inteligência artificial], que consegue diagnosticar cerca de 50 diferentes problemas relacionados com a visão tão bem quanto os melhores oftalmologistas.

No mundo do jornalismo – e onde o impacto tecnológico começa a ser igualmente significativo – o orador falou do algoritmo utilizado pela Associated Press para computorizar a produção dos seus relatórios de lucros, chegando a um número 15 vezes superior comparativamente à altura em que estes eram realizados por “mão humana”, relembrando igualmente que cerca de um terço dos conteúdos que lemos quando procuramos notícias financeiras num website como o da Bloomberg, por exemplo, é gerado por um sistema automatizado.

Na área jurídica, e no que respeita às disputas legais que surgem entre os utilizadores da gigantesca eBay, cerca de 60 milhões das mesmas, e anualmente, são resolvidas através de uma plataforma de mediação e sem qualquer intervenção de um advogado de carne e osso, o que corresponde ao triplo dos processos intentados em todo o sistema judicial dos Estados Unidos. No mesmo campo de acção, a Lex Machina [uma empresa que fornece análises jurídicas para profissionais do sector], anunciou recentemente um sistema concebido para prever o resultado de disputa de patentes tão preciso quanto o que analistas humanos fariam, e, por fim, na JP Morgan já é possível, de forma completamente automatizada, “ler” acordos de empréstimos, em poucos segundos, comparativamente a 360 mil horas necessárias quando este trabalho é feito por humanos.

Na arquitectura, Sussman escolheu o novo Concert Hall de Hamburgo, um espaço desenhado, em grande parte, também por algoritmos, e que demonstra que até a criatividade e a estética – características tão profundamente humanas – podem ser já automatizadas.

Assim, e como sublinhou logo no início da sua apresentação, a questão do desemprego tecnológico não pode apenas assentar na ideia de que um trabalho feito por um agricultor ou um trabalhador de uma fábrica (blue-collar workers – não qualificados), que é baseado em processos e em rotinas, seja mais fácil de ser substituído por máquinas, comparativamente a outros tipos de profissões que requerem a criatividade, o discernimento e a empatia (white-collar workers – especializados). Para o orador, estes exemplos, e que integram profissões como as de médicos, juristas, professores, contabilistas, consultores fiscais, consultores de gestão, arquitectos, jornalistas, entre outros, confirmam assim que a disrupção tecnológica não é apenas uma “blue story”, mas uma “white story” também.

É errado pensar que o impacto da mudança tecnológica só pode ser avaliado através da criação ou destruição de empregos “inteiros”

Afirmando que quando pensamos no trabalho/emprego de uma pessoa (jobs, na terminologia em inglês usada pelo autor) temos a tendência, errada, de o considerar como algo “monolítico e indivisível”, o orador sublinhou que, e na verdade, quando olhamos para a sua base – e independentemente das áreas profissionais acima mencionadas – o que vemos é que as pessoas executam uma variedade alargada de tarefas e actividades.

Como já abordado anteriormente, esta distinção entre tarefas e empregos é, a seu ver, extremamente importante na reflexão sobre o futuro do trabalho. E porquê? Porque o normal é ficar-se encurralado numa lógica que nos diz que o impacto da mudança tecnológica só pode ser avaliado através da criação ou destruição de empregos “inteiros” e isso não está correcto. Ou seja, se olharmos para qualquer uma das áreas profissionais já mencionadas e se as decompusermos em tarefas e actividades, a verdade é que uma boa parte das mesmas acabam por ser rotineiras, ou seja, nem todas as coisas que os advogados, os médicos ou os contabilistas por exemplo, exigem criatividade, discernimento ou empatia.

Daniel Susskind citou um estudo efectuado pela consultora McKinsey, no qual foram analisadas 800 ocupações, concluindo que apenas 5% das mesmas poderiam ser completamente automatizadas com as tecnologias já existentes. Contudo e por outro lado, o mesmo estudo revelou que dessas mesmas 800 ocupações, 60% envolvem tarefas diversificadas e que 30% destas últimas podem vir a ser inteiramente automatizadas. Ou seja, se partirmos da identificação das tarefas, e não da ocupação/profissão no geral, o impacto da tecnologia é muito maior.

A este facto, o professor de Oxford junta ainda uma segunda razão que serve para sustentar o seu argumento de que o “trabalho especializado ou qualificado” está em crescente risco de automação e à qual chama a “falácia da inteligência artificial”: ou seja, mesmo quando se pensa nas tarefas não rotineiras – as tais que exigem o trio que inclui a criatividade, o discernimento e a empatia – é um erro pensar que algumas destas não possam ser também realizadas pelas tecnologias. E a verdade é que estamos a testemunhar, de forma crescente, uma “intromissão” das máquinas nas tarefas não rotineiras, como é o exemplo do discernimento na resolução de disputas legais, da criatividade na construção de um edifício e de ambas na composição de relatórios ou redacção de notícias.

Assim, qual a melhor solução para este complexo desafio? Para Susskind, não existem dúvidas que a resposta reside na educação e na formação.

A flexibilidade é a melhor resposta contra a incerteza

Retomando o fio do seu pensamento, Susskind prevê assim que, no futuro, e pelo menos nos próximos cinco a 10 anos, existirá uma procura crescente por humanos que executem as tarefas não rotineiras que estão ainda para além das capacidades das máquinas e que o desafio será preparar as pessoas para as realizarem. E, para tal, elenca três dimensões por excelência existentes neste desafio educacional, as quais devem dar resposta ao “quê”, “como” e “quando”.

Pegando na primeira – o quê – o orador refere-se às competências e capacidades que estão a ser actualmente dadas às pessoas e que podem seguir uma de duas estratégias: ou decidimos formar as pessoas para competirem com estes sistemas tecnologicamente avançados no sentido de executarem as tarefas que os mesmos não conseguem ainda fazer ou treinamo-las para construírem estes mesmos sistemas e máquinas, fazendo das pessoas a fonte para as conceber e operar.

Afirmando que esta distinção entre competir e construir pode soar como algo relativamente simples, a verdade é que, na prática e do seu ponto de vista, não se está a fazer nenhuma de ambas as coisas. Ou seja, o que se está a fazer é formar pessoas para fazer exactamente essas actividades rotineiras que os sistemas e máquinas conseguem já executar.

Para além do “quê”, o desafio educacional está também assente no “como” se ensina. A seu ver, as formas como se ensinam as pessoas não mudam há séculos e tem-se vindo a insistir no ambiente de sala de aula tradicional, mesmo que existam já muitas alternativas tecnológicas, o que foi devidamente comprovado durante a pandemia.

Por último, existe o “quando” é que ensinamos as pessoas. Para Susskind, o pressuposto cultural que ainda persiste e que nos diz que a educação é o que fazemos nos primeiros estádios da nossa vida e que depois acaba e não nos devemos preocupar mais com o assunto está totalmente obsoleto. A verdade é que mesmo que exista uma gigantesca incerteza sobre o futuro e sobre quais as competências e capacidades que mais valiosas serão para o acolhermos, a melhor resposta a essa incerteza é a flexibilidade. Ou e por outras palavras, há que ter condições e vontade para a (re)formação e requalificação ao longo da vida, mas com o mesmo envolvimento e importância que damos à educação nos tradicionais estádios de aprendizagem.

A pandemia obrigar-nos-á a levar muito mais a sério a transformação tecnológica no mercado laboral

Os minutos finais da apresentação de Daniel Susskind na Assembleia da AESE foram dedicados, e como seria de esperar, a “arrumar” todas estas ideias tendo como pano de fundo o contexto pandémico e deixando algumas lições que nos podem vir a ser muito úteis no futuro, futuro esse que a pandemia nos permitiu “espreitar” e que nos dá um vislumbre do que podem ser os desafios mais severos no contexto laboral como consequência da automação.

Tal como já é unânime afirmar, também Susskind realça o facto de a pandemia ter acelerado algumas tendências tecnológicas que já estavam “a caminho”. Para o orador, existem três razões que explicam por que motivo a pandemia acelerou o desafio da automação e por que razão o devemos levar mais a sério.

A primeira é a de que, e como consequência da pandemia, muitos países terem-se visto em época de recessão. Ta como aconteceu nos mercados laborais do passado, diz, uma das peculiaridades das recessões consiste no facto de, por vezes, ao mesmo tempo que é registada uma quebra na economia, a automação “subir”. O que é verdade na realidade que actualmente vivemos.

A segunda diz respeito à criação de um novo incentivo para automatizar o trabalho que as pessoas executam, o que aconteceu em particular na área dos serviços, em que existe a necessidade de algum tipo de interacção interpessoal. Neste caso, e como o vírus não infecta as máquinas, nem estas precisam de uma baixa porque ficaram doentes, surgiu este novo incentivo para a substituição mais célere das pessoas por sistemas automatizados.

E, por fim, Susskind escolhe a razão cultural – que considera a mais especulativa, mas também a mais consequencial – para considerarmos de uma forma mais séria o desafio da automação.

Recordando que a maioria das pessoas esteve envolvida, nos últimos 16 meses, num massivo, não planeado, não desejado mas inteiramente inescapável esquema-piloto relativo à utilização da tecnologia no local de trabalho, a verdade é que, e de um dia para o outro, a telemedicina, os tribunais virtuais, o ensino online e o trabalho remoto passaram a ser a norma. E, apesar de falhas inevitáveis, a maioria das pessoas considerará esta experiência tecnológica como um sucesso, para além de surpreendentemente eficaz.

Assim e na sua perspectiva, o que estaria a travar a automação tinha como base um preconceito contra o statu quo da tecnologia, uma espécie de “conservadorismo tecnológico” que, entretanto, passou a estar muito mais enfraquecido. Olhando para daqui a 12/18 meses, quando a pandemia supostamente desvanecer, o investigador de Oxford acredita que qualquer acto de automação nos parecerá muito menos radical do que pareceria se não tivéssemos passado por esta experiencia tecnológica da qual estamos a fazer parte.

E, alerta, se a pandemia nos ensinou alguma coisa é que temos de olhar para a mudança tecnológica no mercado laboral de uma forma muito mais séria do que até então.

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