Várias pesquisas realizadas ao longo das últimas décadas indicam que a moralidade – que neste caso significa bondade, honestidade e decência humana – tem vindo a declinar. Todos nós ouvimos, e concordamos até, que as gerações a seguir às nossas mostram menos sinais de compaixão, de boa educação, de respeito pelos outros, ao mesmo tempo que temos a sensação que as gerações que nos precederam eram mais bondosas, “honradas” e mais dadas a ajudar os demais. Pelo menos é o que dizem as pesquisas realizadas em mais de 60 países nas duas últimas décadas. Mas um paper publicado recentemente na revista Nature demonstra que, apesar de a maioria das pessoas acreditar neste decréscimo de moralidade, o mesmo não é mais do que uma ilusão que pode ter más consequências
POR HELENA OLIVEIRA
Adam Mastroianni e Daniel Gilbert são os autores do estudo “The illusion of moral decline” e, em entrevista à Vox, o primeiro afirma que, e tendo em conta o significado dado à palavra moralidade neste contexto, esta noção de declínio aparece em inúmeros estudos desde 1949. Mas, e na actualidade, depois de fazerem 177 perguntas a 220,772 americanos sobre se consideravam que nas últimas décadas a nossa sociedade se tinha tornado menos honesta e ética no seu comportamento ou se não notavam diferença, em 84% das perguntas a maioria dos inquiridos afirmou que a moralidade tinha diminuído.
E tal não aconteceu somente nos Estados Unidos, estendendo-se a dúzias de países que fizeram pesquisas similares. Quando Mastroianni e Gilbert perguntaram aos entrevistados o que estava a causar o suposto declínio moral, a resposta não foi só a que habitualmente ouvimos – “Ah, os jovens hoje em dia” – mas o facto de considerarem que as pessoas mais velhas e mais gentis estão a morrer e a ser substituídas por gerações mais egoístas, a par da ideia de que os humanos em geral estão a tornar-se menos simpáticos nas interacções quotidianas.
E foi para estudar este fenómeno que Mastroianni, da Universidade de Columbia, e Gilbert, da Universidade de Harvard, se reuniram e iniciaram o seu trabalho, cujas conclusões foram agora publicadas, depois da revisão de várias pesquisas sobre o tema em países diferentes.
Como citam no paper:
“O tecido social parece estar a desfazer-se: a cortesia parece um hábito antiquado, a honestidade um exercício opcional e a confiança uma relíquia de outros tempos. Alguns observadores afirmam que ‘o processo do nosso declínio moral’ começou com a ‘submersão dos alicerces da moralidade’ e prosseguiu para ‘o colapso final de todo o edifício’, o que nos levou finalmente ao ‘amanhecer sombrio dos nossos dias modernos, em que não conseguimos suportar as nossas imoralidades nem enfrentar os remédios necessários para as curar’”.
Por mais adequada que possa parecer esta descrição dos nossos tempos, a verdade é que ela foi escrita há mais de 2000 anos pelo historiador Tito Lívio, que lamentava o declínio da moralidade dos seus concidadãos romanos, servindo para demonstrar que desde a antiguidade até aos tempos modernos, os observadores sociais têm frequentemente lamentado as más transformações que as suas sociedades têm sofrido, e têm frequentemente sugerido que um recente declínio da moralidade – bondade, honestidade e decência humana básica – está entre as causas.
A percepção das pessoas no que respeita ao declínio moral
A moralidade refere-se principalmente ao tratamento que as pessoas dão umas às outras, o qual pode ir do altruísta ao bárbaro. Mas, tal como a maioria dos observadores sociais, Tito Lívio não estava a comentar os extremos morais – o raro acto heróico ou o ocasional crime hediondo que poucas pessoas praticam ou experienciam. Pelo contrário, estava a analisar a forma como as pessoas comuns se comportavam no seu dia-a-dia.
Assim, questionam os autores, será que as pessoas modernas, tal como Lívio, acreditam que os seus contemporâneos são menos honestos e bondosos do que eram? Será que pensam que os seus vizinhos são menos generosos e menos prestáveis, que os seus colegas de trabalho são mais susceptíveis de se tratarem com desrespeito e de traírem a confiança uns dos outros?
Como explicam os autores, os investigadores têm vindo a perguntar às pessoas sobre as suas percepções das mudanças nestas qualidades morais quotidianas desde, pelo menos, 1949, mas o corpus completo de dados de inquéritos relevantes nunca tinha sido sistematicamente reunido e analisado. E foi esse o ponto de partida para os dois autores escreverem este paper.
Como já mencionado acima, os autores procuraram nas bases de dados as principais pesquisas feitas entre 1949 e 2019, em conjunto com 177 perguntas a 220,772 americanos na actualidade. E dois resultados foram dignos de nota.
Os participantes no estudo foram mais propensos a percepcionar o declínio moral quando lhes era perguntado sobre períodos de tempo mais longos (por exemplo, “a última década”) do que sobre períodos de tempo mais curtos (“o último ano”), o que é, de acordo com Mastroianni e Gilbert, precisamente o que seria de esperar nos casos em que os participantes acreditam que a moralidade tem vindo a diminuir continuamente.
Em segundo lugar, os participantes referiram aumentos de moralidade quando questionados sobre algumas questões específicas em que se registaram claramente progressos sociais: por exemplo, 59% dos participantes referiram um melhor tratamento dos afro-americanos, 51% referiram um melhor tratamento das pessoas com deficiências físicas e 50% referiram um melhor tratamento dos homossexuais.
Mas a perceção do declínio moral não foi exclusiva dos americanos dos EUA. Os autores verificaram uma nova amostragem das bases de dados dos principais inquéritos feitos sobre o tema e encontraram 58 itens de inquéritos que perguntavam a um total de 354 120 participantes em 59 países se e como achavam que a moralidade das outras pessoas tinha mudado ao longo do tempo. Estes itens foram analisados ao longo de um período de 13 anos, de 1996 a 2007, e a sua análise demonstrou que, em 86,21% dos mesmos, a maioria dos participantes não americanos referiu que a moralidade tinha diminuído.
Mas está a moral efectivamente em declínio ou não?
As pessoas acreditam que a moralidade está a diminuir. Mas será verdade? De acordo com Mastroianni e Gilbert, as sociedades mantêm (ou pelo menos deixam) registos razoavelmente bons de comportamentos extremamente imorais, como chacinas e conquistas bélicas, escravatura e subjugação ou assassínio e violação, e análises cuidadosas desses registos históricos sugerem fortemente que estes indicadores objectivos de imoralidade diminuíram significativamente ao longo dos últimos séculos.
Em média, os seres humanos modernos tratam-se muito melhor uns aos outros do que os seus antepassados alguma vez o fizeram – o que não é o que seria de esperar se a honestidade, a gentileza, a amabilidade e a bondade tivessem vindo a diminuir constantemente, ano após ano, durante milénios. Embora não existam registos históricos igualmente objectivos sobre a moralidade quotidiana – sobre a frequência com que as pessoas oferecem os seus lugares nos transportes públicos a um idoso, dão indicações a um turista perdido ou ajudam o vizinho a arranjar uma vedação – existem medidas subjectivas de tais comportamentos.
Apesar de o paper se basear em vários estudos diferentes e sofisticados, e impossíveis de replicar neste texto, um dos métodos utilizados assentou no facto de os autores examinarem os relatos das pessoas sobre a mudança moral, obtidos quando os investigadores lhes pediram que comparassem a moralidade das pessoas no presente com a moralidade das pessoas num dado momento do passado e que indicassem a direcção da diferença.
Há décadas que os investigadores também pedem às pessoas que relatem diretamente os valores morais, os traços e os comportamentos delas próprias e dos seus contemporâneos no presente: “Foi tratado com respeito durante todo o dia de ontem?” ou “Diria que, na maior parte das vezes, as pessoas tentam ser prestáveis ou que, na maior parte das vezes, só se preocupam consigo próprias?” ou “Durante os últimos 12 meses, com que frequência ajudou a transportar os pertences de um estranho, como uma mala ou um saco de compras?”. Se, como afirmam as pessoas em todo o mundo, a moralidade tem vindo a diminuir de forma constante e acentuada há décadas, então os relatos negativos das pessoas sobre a moralidade actual deveriam ter aumentado ao longo dos anos. E isso verificou-se?
Na verdade, não.
Mastroianni e Gilbert colocam a hipótese de dois fenómenos psicológicos bem conhecidos estarem a trabalhar em conjunto para produzir a ilusão de que a moral está em declínio, depois de fazerem quatro estudos distintos.
Os resultados dos estudos 1-3 sugerem que as pessoas acreditam que a moralidade diminuiu, e os resultados do estudo 4 sugerem que esta crença é ilusória. Mas se a moralidade não diminuiu, então porque é que as pessoas pensam que sim?
Em primeiro lugar, numerosos estudos demonstraram que os seres humanos são especialmente propensos a procurar e a prestar atenção a informações negativas sobre os outros e é sabido que os meios de comunicação social alimentam esta tendência com um enfoque desproporcionado nas pessoas que se comportam mal. Desta forma, as pessoas podem encontrar mais informações negativas do que positivas sobre a moralidade das “pessoas em geral”, e este “efeito de exposição enviesada” pode ajudar a explicar por que razão as pessoas acreditam que a moralidade actual é relativamente baixa. Em segundo lugar, numerosos estudos demonstraram que, quando as pessoas recordam acontecimentos positivos e negativos do passado, é mais provável que os acontecimentos negativos sejam esquecidos, mais provável que sejam mal recordados como o seu oposto e mais provável que tenham perdido o seu impacto emocional.
Este “efeito de memória enviesada” pode ajudar a explicar porque é que as pessoas acreditam que a moralidade do passado era relativamente elevada. “Trabalhando em conjunto, os dois fenómenos acima enunciados podem produzir uma ilusão de declínio moral. Especificamente, a exposição enviesada a informações sobre a moralidade actual pode fazer com que o presente pareça um deserto moral, a memória enviesada de informações sobre a moralidade passada pode fazer com que o passado pareça um país das maravilhas morais e, quando as pessoas num país das maravilhas se lembram de ter estado num país das maravilhas, podem naturalmente concluir que a paisagem mudou”, escrevem os autores.
As percepções não correspondem à realidade, clamam os autores
Assim e em suma, os participantes nos estudos anteriores acreditavam que a moralidade tinha diminuído, e acreditavam-no em todas as décadas e em todas as nações estudadas pelos dois investigadores. Acreditavam igualmente que o declínio tinha começado algures na altura em que nasceram, independentemente da data, e que continuava até aos dias de hoje. Acreditavam que o declínio era resultado tanto do facto de os indivíduos se tornarem menos morais à medida que avançavam no tempo, como da substituição de pessoas mais morais por pessoas menos morais. E acreditavam também que as pessoas que conheciam pessoalmente e as pessoas que viveram antes deles eram excepções a esta regra. “Sobre todas estas coisas, é quase certo que estavam enganados”, defendem os autores. “Uma das razões pelas quais podem ter tido estas crenças erradas assenta no facto de, normalmente, terem encontrado mais informação negativa do que positiva sobre a moralidade de contemporâneos que não conheciam pessoalmente, e a informação negativa poder ter-se desvanecido mais rapidamente da memória ou perdido o seu impacto emocional mais rapidamente do que a informação positiva, levando-os a acreditar que as pessoas de hoje não são tão gentis, simpáticas, honestas ou boas como eram outrora.
No paper em causa os investigados reconhecem igualmente as limitações dos seus estudos, mas ousam afirmar a ilusão de declínio moral não só parece ser um fenómeno robusto, como pode ter consequências preocupantes. Por exemplo, em 2015, 76% dos norte-americanos concordaram que “abordar o colapso moral do país” deveria ser uma grande prioridade para o seu governo.
“Os Estados Unidos enfrentam muitos problemas bem documentados, desde as alterações climáticas e o terrorismo à injustiça racial e à desigualdade económica – e, no entanto, a maioria dos americanos acredita que o seu governo deve dedicar recursos escassos à inversão de uma tendência imaginária”, acusam os autores.
Por outro lado, a crença de que a moralidade quotidiana está em declínio pode também afectar o comportamento interpessoal das pessoas. Por exemplo, a investigação mostra que as pessoas têm relutância em procurar a ajuda e o conforto daqueles que não conhecem, porque subestimam a disponibilidade dessas pessoas para o proverem.
Ou seja, a ilusão do declínio moral pode ser uma das razões pelas quais as pessoas não dependem tanto quanto poderiam da bondade de estranhos. A ilusão de declínio moral também pode deixar as pessoas perigosamente susceptíveis a serem manipuladas por maus actores. A investigação mostra que as pessoas são especialmente influenciadas por “normas dinâmicas”, que são mudanças sentidas nas formas habituais de comportamento. Se a baixa moralidade é motivo de preocupação, então o declínio da moralidade pode ser um verdadeiro apelo às armas, e os líderes que prometem travar esse deslize ilusório – “tornar a América grande de novo”[o lema de Donald Trump], por assim dizer – podem ter um apelo enorme.
“Os nossos estudos indicam que a perceção do declínio moral é generalizada, duradoura, infundada e facilmente produzida. Conseguir uma melhor compreensão deste fenómeno parece ser uma tarefa oportuna”, rematam Mastroianni e Gilbert.
Fonte: The illusion of moral decline
Editora Executiva