Geralmente percepcionadas como prejudiciais à economia, à sociedade e ao ambiente devido à perseguição cega do lucro a curto prazo, são já vários os colossos empresariais que estão a usar o seu enorme poder e recursos para imprimir uma marca positiva no planeta. Não é conversa fiada, mas exemplos devidamente documentados num livro recentemente lançado que prova que “fazer bem o bem” é compatível com o que as empresas fazem melhor: negócios
POR HELENA OLIVEIRA

Não é preciso estarmos com demasiada atenção às notícias para sabermos que, um pouco por todo o mundo, a relação entre grandes empresas e a sociedade continua a ser, no mínimo, disfuncional. Seja no que respeita à fuga de impostos, à invasão de privacidade ou à falta de condições de segurança, por exemplo, no Bangladeche, ou aos casos de trabalho infantil, entre outras temáticas, a verdade é que as grandes organizações continuam a ser percepcionadas, pela sociedade em geral, como “as más da fita”. Todavia, há que olhar para o reverso da medalha: é inegável que nelas existe também uma gigantesca concentração de competências, recursos e expertise; que se conseguem mobilizar com uma celeridade e a uma escala inigualáveis e que são já muitas aquelas que podem comprovar que contribuem com progressos sociais positivos.

Se há 10, 15 anos, o movimento de responsabilidade social corporativa começou por representar primeiro, um “nice-to-have”, seguido de um “must have”, até que nenhuma empresa se poderia dar ao luxo de ignorar o “impacto” que tinha na comunidade, nos últimos anos, um novo conceito tem estado a ganhar força – e já a provocar um certo “enjoo”, é certo – no universo da gestão. O VER já o analisou, por várias vezes, e apesar de o mesmo continuar a parecer mais uma buzzword que fica sempre bem citar, a verdade é que já existem exemplos mais do que suficientes de grandes empresas que estão a colocar em prática o que na teoria se chama de “propósito”.

E é a propósito deste mesmo propósito que Lucy Parker e Jon Miller iniciaram uma viagem, pelos vários cantos do globo, em busca de resultados visíveis de projectos financiados e apoiados por grandes empresas que, realmente, estão a mudar o mundo. A parceria de Lucy Parker – realizadora de documentários para a BBC – com Jon Miller, que trabalhou com inúmeras marcas globais como a Coca-Cola ou a American Express, enquanto Director de Estratégia para a Mother, uma das agências de publicidade mais criativas do mundo e também na prestigiada Ogilvy, resultou no livro Everybody’s Business: The Unlikely Story of How Big Business Can Fix the World, recentemente publicado.

De acordo com os autores, os negócios com propósito estão a personificar uma enorme mudança de paradigma no que respeita, em particular, às empresas de grande dimensão, as quais, na sua maioria, aprenderam com os erros e tentam agora redimir-se de muitos males causados ao longo da sua existência. Não é preciso recuar muito no tempo para nos recordarmos da altura em que os CEOs se limitavam, orgulhosamente, a perseguir o retorno para os accionistas (e para eles próprios também). O velho mantra de que “o negócio dos negócios é o de fazer negócio” manteve-se inalterado durante décadas, até que muitos dos gigantes empresariais começaram a perceber que a perseguição cega do lucro servia os seus objectivos de curto prazo, mas falhava em termos de longo prazo ou no sentido de deixar uma marca positiva e duradoura na sociedade ou comunidades nas quais estavam inseridos.

Apesar de admitirem que muitas das grandes empresas que visitaram – de que são exemplo, entre outras, a PepsiCo, a Unilever, a Coca-Cola, a Nike, a Glaxo Smith Klein ou a IBM – continuam a manter um longo historial de lucros chorudos para os seus accionistas – os autores garantem que os líderes destes colossos empresariais são agora motivados por outros “propósitos”.

Numa entrevista publicada pela Wharton School of Management, os autores explicam por que motivo, numa era em que os gestores conseguem estar abaixo dos advogados em termos de reputação – de acordo com uma pesquisa do Pew Research Center e cujos níveis se mantêm inalterados há uns bons anos -, se dedicaram a escrever este livro “improvável”.

Para Jon Miller, é no subtítulo do livro – a história improvável de como as empresas/negócios podem “consertar” o mundo – que reside a melhor pista para o trabalho desenvolvido. Sublinhando que as pessoas têm uma “reacção alérgica” quando ouvem falar nestas grandes empresas, encarando-as com suspeição e até hostilidade, na medida em que quase todas elas têm um historial de crimes e delitos bem documentados, Miller sublinha igualmente que, de forma crescente, as grandes empresas são as que melhor posicionadas estão para fazer da mudança social uma realidade, mesmo as que operam em indústrias “duvidosas” como é o caso das petrolíferas ou do sector mineiro (também elas retratadas no livro). Substituir a má imagem que o público tem destas empresas e criar um efeito de “contágio” no que respeita às suas congéneres é um dos objectivos do trabalho dos autores.

Uma parte igualmente interessante deste livro prende-se com os exemplos de empresas que aprenderam a “lição” da pior maneira possível. Os autores dedicam um espaço significativo à forma como muitos destes gigantes empresariais, habituados a ocuparem um pedestal muito próprio, foram obrigados a mudar através de pressões diversas: campanhas levadas a cabo por activistas, censura social, organizações não-governamentais que divulgaram as suas más práticas, pressão por parte de outras suas congéneres, bem como de legislação, são algumas das pressões listadas.

Os autores garantem, contudo, que as empresas escolhidas para figurar no livro não se limitaram a “entrar na linha”. As “eleitas” representam também bons exemplos de novas parcerias que vão emergindo e que, à luz de outros tempos, seriam totalmente improváveis, como por exemplo entre as próprias empresas e os seus críticos de outrora. A ideia partilhada é a de que a mudança não exige apenas uma resposta inovadora por parte das empresas, mas também dos próprios activistas, das organizações não-governamentais e dos decisores políticos.

O livro mostra também as mudanças levadas a cabo no interior das empresas, em alguns casos nos últimos 50 ou 20 anos e, em outras, em períodos mais recentes. Mais do que olhar para a forma como as empresas devem limitar os danos que causam, a ideia de “everybody’s business” é mostrar que, assim que consigam entrar no caminho “certo”, estes gigantes empresariais podem realmente estimular um impacto positivo na sociedade, sem comprometerem a sua busca de lucro e limitando-se a fazer aquilo que melhor sabem fazer: negócios.

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As empresas têm de olhar para fora de si mesmas para se reconciliarem com a sociedade
Não será fácil, mas a verdade é que numa época em que tudo está em constante mudança, olhar para modelos de negócio alternativos poderá fazer toda a diferença. E foi também de acordo com esta expectativa que Lucy Parker e Jon Miller escolheram algumas das empresas que figuram no seu livro. Seguem-se três histórias completamente diferentes, mas que espelham o objectivo dos autores nas viagens que fizeram para escrever esta obra.

NIKE: do boicote à marca ao mea culpa
A década de 1990 ficará para sempre na história da Nike e pelos piores motivos. Desde os anos de 1970 que a empresa, na altura denominada como Blue Ribbon Sports, focava o seu modelo de negócio na procura de produtores estrangeiros e de baixo custo com o intuito de ganhar o seu bilhete de entrada no apetecível mercado dos artigos desportivos. Em 1994, a empresa seria acusada, por vários e poderosos meios de comunicação social, como a revista Rolling Stone, o The New York Times, a Foreign Affairs e a The New Republic, de estar a subverter as leis do salário mínimo na Indonésia (pagando, nesta data, o equivalente a cerca de 14 cêntimos à hora).

Na altura, a empresa optou por ignorar a questão, afirmando que não poderia ser responsabilizada pelos actos praticados pelas suas subcontratadas nem pelas práticas dos seus fornecedores. Mas, em Junho de 1996, a revista Life publicou uma fotografia que iria chocar o mundo e que obrigaria a empresa a repensar toda a sua forma de actuação: a de uma criança no Paquistão a costurar uma das suas famosas bolas de futebol. Em simultâneo, uma das mais bem-sucedidas campanhas de sempre em termos de activismo originou um boicote global à marca, a qual, no período em causa, era já líder de mercado. Em 1998, algo raro aconteceu: o presidente do conselho de administração e CEO da Nike, Phil Knight assumiu, publicamente, a sua mea culpa e com um discurso que viria a ser memorável: “os produtos da Nike transformaram-se em sinónimos de trabalho escravo, de horas extraordinárias forçadas e de abuso de poder”. E foi nesta conferência de imprensa que a empresa se viria a comprometer com a implementação de um regime de auditoria “social” mais rigoroso, comprometendo-se a estender as regras e processos operacionais norte-americanos aos seus fornecedores estrangeiros. O episódio acabaria por ficar também na história – na altura ainda recente – da responsabilidade social corporativa, “contagiando” outras grandes empresas a fazerem o mesmo e representando um marco de expansão de responsabilidades a toda a cadeia de stakeholders. A história do boicote global a uma marca transformar-se-ia igualmente numa lição inesquecível no que respeita ao poder dos consumidores em chamarem à responsabilidade uma organização gigantesca. A mudança de rumo da empresa começou com a criação, em 1999, da Fair Labor Association, um grupo sem fins lucrativos que juntava empresas, direitos humanos e representantes sindicais do sector para estabelecer auditorias independentes às fábricas, em conjunto com um código de conduta exigido a todos os fornecedores. Actualmente e como sabemos, a Nike é considerada uma empresa “top” em termos de cidadania, com programas e iniciativas em quase todos os “itens” obrigatórios em termos de responsabilidade social.

Mahindra: da sala da administração para a Índia rural
Os autores foram convidados a visitar uma enorme fábrica situada no norte de Bombaim, detida por um dos maiores conglomerados indianos, o grupo Mahindra, para escutarem a história de como é que 150 dos mais “espertos” gestores seniores da empresa foram convidados a sair do conforto dos seus gabinetes e a passar alguns dias na Índia rural, junto dos pequenos agricultores. Em 2005, a empresa estabeleceu o ambicioso objectivo de se transformar na maior fabricante de tractores a nível mundial e, em 2007, tornava-se já claro que em breve atingiria o seu objectivo. Todavia e como afirma, no livro, um dos vice-presidentes sénior da empresa, Sanjeev Goyle, “continuar a ser, simplesmente, a maior do mundo, não era estimulante o suficiente”. O que se seguiria? Para Sanjeev, estava na altura de a empresa procurar a sua “alma”, reflectindo sobre o seu verdadeiro propósito. Como afirma no livro o já mencionado vice-presidente, “percebemos que tínhamos uma visão muito de ‘dentro para fora’ e a ideia era transformá-la de ‘fora para dentro’”. E foi para dar seguimento a esta nova abordagem que a empresa resolveu enviar as equipas de gestão para o campo. É que apesar de todos eles trabalharem com tractores, eram, igualmente, homens de negócios profundamente urbanos. Uma das primeiras realidades com que se confrontaram foi o facto de a esmagadora maioria dos agricultores indianos cultivar pequenas porções de terra e de quão dura essa tarefa se afigurava. Ao que se seguiu a certeza de que os enormes tractores que a empresa fabricava não faziam qualquer sentido nos terrenos, de poucos hectares, que os agricultores cultivavam, não só por serem demasiado grandes, como extremamente caros. O “grito de alerta” soou então e a experiência levou a Mahindra a lançar o Mahindra Yuvraj – o Príncipe – um tractor muito mais pequeno mas suficientemente forte para ser usado pelos agricultores (e, obviamente, muito mais barato), o qual se tornou indispensável ao trabalho destes. Como afirmou Sanjeev, “um tractor faz parte da família de um agricultor e é o seu melhor parceiro de negócio”. Mas a “transformação” e a “alma” procurada pela empresa não terminou aqui. A equipa de gestores da Mahindra percebeu também, e com os seus próprios olhos, que os agricultores não tinham informação alguma sobre técnicas de irrigação, acesso a equipamento básico e ou até a sementes de qualidade. E a verdadeira transformação da missão da empresa num propósito maior materializou-se: de um negócio de fabrico e venda de tractores para um agro-negócio de âmbito alargado. “Começámos a pensar de forma radicalmente diferente e o propósito eleito foi o de trazer prosperidade ao agricultor”, garante Sanjeev. E porque a agricultura consiste numa parte substancial da economia da Índia – mais de metade da sua força de trabalho é constituída por agricultores – a prosperidade que é importante para aqueles que trabalham a terra é igualmente importante para o país.

IBM – a reconversão das energias de um negócio no seu todo
Na passagem para o século XXI, a poderosa IBM debatia-se com a possibilidade de ter de assistir à sua própria irrelevância; o mundo dos negócios tinha sido completamente redefinido pela internet e a empresa parecia mais um gigante com pés de barro do que uma “grande casa da inovação”. Como afirmava Samuel Palmisano, o CEO da empresa na altura, “se um negócio tem como base caminhar para o futuro, não pode estar emocionalmente amarrado ao passado”. A venda da área de negócio dos PCs marcou o momento de redefinição da estratégia da famosa Big Blue, a qual se centrou em áreas de serviços e soluções de âmbito empresarial, mas a empresa “sentia” que teria de redefinir igualmente a sua missão. E foi com a iniciativa Smarter Planet, apresentada em 2008, que a IBM se “reencontrou”. Assente no princípio de que as TI têm um papel decisivo na sustentabilidade do planeta e na melhoria das condições de vida dos cidadãos e considerando que as cidades de hoje consomem aproximadamente 75% da energia do mundo e emitem mais de 80% dos gases que provocam efeito de estufa, desperdiçando cerca de 20% da água fornecida devido a falhas na infra-estrutura, a iniciativa Smarter Planet traduz-se, pois, na procura de soluções inteligentes para a redefinição ou criação de sistemas que ajudem a optimizar e a melhorar as cidades em que vivemos e trabalhamos. Em apenas dois anos, já os analistas estimavam que o novo “propósito” da IBM tinha aumentado o seu potencial de mercado em 40% e elevado a sua reputação em 156%.

Para qualquer grande empresa, ter uma visão a partir do exterior é muito mais fácil de proclamar do que fazer. E é por isso, afirmam os autores, que um esforço concertado para “alcançar” o mundo lá fora é tão importante. Como afirma Colin Harrison, responsável pelas “smarter cities” da IBM, “temos vindo a construir novos tipos de parcerias”. Antes, a IBM vivia “isolada da sociedade”, não saindo praticamente do interior dos seus gigantescos data centres. “E o que o Smarter Planet tem de mais maravilhoso é o facto de nos ter voltado a ligar à sociedade, simplesmente perguntando: quais são os problemas em que uma empresa como a IBM se deve concentrar?”, acrescenta Harrison.

O livro “Everybody’s Business” dedica ainda um espaço considerável aos principais desafios que o mundo atravessa e nos quais as grandes empresas podem e devem dar o seu contributo.

Cruzando as três “grandes realidades” da actualidade – Globalização, Tecnologia e Sustentabilidade – os autores definem 11 “conversas” que devem fazer parte das estratégias das empresas que realmente se estão a comprometer com a árdua tarefa de fazer do mundo um local melhor: Economia Global, Direitos Humanos, Comunicação, Segurança, População, Cultura do Consumidor, Energia e Alterações Climáticas, Comunidades, Educação e Competências, Saúde e, por último, Ambiente e Recursos.

Lucy Parker e Jon Miller são também partners do Brunswick Group, ajudando as empresas a promover os contributos positivos para a mudança com propósito na sociedade actual.

Todos os direitos reservados. Publicado em 10 de Abril de 2014

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