A recuperação da atual crise económica vai obrigar a medidas de curto prazo e a planos de investimento a médio e longo prazo. Para já, o importante é salvaguardar o emprego e a capacidade produtiva para garantirmos a resposta devida quando tivermos o desconfinamento resultante dos efeitos imunológicos da vacina. Mas sem um alinhamento das empresas com os objectivos climáticos para o planeta seremos um caso perdido
POR BRUNO PROENÇA
O ano de 2020 fechou com um forte sinal de esperança. A vacina contra o Covid-19 é uma luz ao fundo do túnel que nos pode guiar para um novo ano menos complexo e disruptivo do que o anterior. Porém, desengane-se quem pense que tudo voltará ser como antes. Uma crise sanitária, económica e social como a que, infelizmente, estamos a viver deixará cicatrizes profundas. Esta crise tem uma gravidade centenária. Basta observar os dados demográficos para verificarmos que a população em Portugal e na Europa registou em 2020 uma diminuição apenas comparável com o que aconteceu na gripe espanhola no século passado.
Podemos olhar para esta crise de várias maneiras, mas a mais dolorosa passará sempre por lembrar os milhares de pessoas que já faleceram. É precisamente por deferência à sua memória que devemos retirar o máximo de lições desta crise. Fingir que tudo ficará na mesma será desrespeitar a memória de quem morreu devido à pandemia e às suas consequências. Ninguém consegue hoje antecipar na totalidade como será o futuro “novo normal” mas há uma certeza que já podemos sublinhar – esta crise demonstrou a fragilidade dos sistemas de saúde, da economia e a incapacidade para gerir fenómenos extremos em todos os países do mundo, mesmo nos mais desenvolvidos.
Em resultado das alterações climáticas, têm aumentado os fenómenos climáticos extremos com elevados níveis de destruição sobre as economias, infraestruturas e serviços sociais de vários países e regiões. Como verificamos em 2020 em resultado da pandemia, o mundo não está preparado para resolver fenómenos disruptivos de gravidade elevada. Assim, a pandemia sublinhou igualmente a urgência de atuarmos perante as alterações climáticas – se é que alguém ainda tinha dúvidas ou hesitações – por forma a evitarmos crises e disrupções sucessivas que não conseguimos gerir.
Todos sabemos onde estamos
Apesar dos negacionistas, a ciência demonstrou até à exaustão o ponto em que estamos e o que precisamos de fazer para escaparmos a uma catástrofe de dimensões bíblicas. Para evitarmos que as transformações no clima passem o ponto de não retorno, o que colocará em perigo as formas de vida no planeta tal como as conhecemos, temos que travar o aquecimento global. Tendo como ponto de partida o mundo pré-industrial, temos que conseguir travar o aquecimento global até ao limite de 1,5°C. Para isto, temos cerca de uma década para reduzirmos drasticamente as emissões para a atmosfera de gases com efeito de estufa, por forma a conseguirmos atingir a neutralidade de CO2 em 2050.
Se já todos sabemos onde estamos e os objetivos que temos de atingir, porque não chegamos lá? As razões são múltiplas. Por um lado, as mudanças exigidas obrigam a uma transformação profunda no nosso modelo de vida e nos alicerces da economia, que foi construída a partir de fontes energéticas ligadas aos combustíveis fósseis. Por outro lado, quando fixamos metas a médio e longo prazo, estamos a promover uma certa complacência e procrastinação – temos a falsa sensação de que temos tempo para lá chegar. Falta o sentido de urgência.
Pois a atual crise pandémica demonstrou a fragilidade dos nossos sistemas económicos e sociais. Não há mais tempo a perder. É tempo de atuar.
A recuperação da atual crise económica vai obrigar a medidas de curto prazo e a planos de investimento a médio e longo prazo. Para já, o importante é salvaguardar o emprego e a capacidade produtiva para garantirmos a resposta devida quando tivermos o desconfinamento resultante dos efeitos imunológicos da vacina. Porém, quando pensamos nos planos a médio prazo, e como tem defendido a União Europeia, a prioridade deverá recair sobre projetos que promovam a transição para uma economia com neutralidade carbónica e mais sustentável.
Como os últimos relatórios da Comissão Europeia e da OCDE sobre a economia europeia demonstram, o ponto de partida não é igual para todos os países. Os Estados do mediterrâneo, como Portugal, Itália, Espanha e Grécia, arrancam de uma situação mais desfavorável devido aos seus elevados níveis de endividamento, que os inibe de patamares de investimento público mais elevados.
Por isto, a qualidade das políticas públicas vai ser determinante nos próximos anos. O foco será obrigatoriamente alinhar a política fiscal e o investimento público com os objetivos climáticos. As políticas públicas são fundamentais para mudar o quadro de incentivos microeconómicos, provocando mudanças profundas nos comportamentos dos agentes económicos, penalizando quem sustenta a sua atividade nos combustíveis fósseis e beneficiando as atividades económicas que promovam a neutralidade carbónica.
É neste quadro que o Fundo Monetário Internacional (FMI) tem sublinhado a importância das “taxas sobre o carbono” e do mercado de transação de licenças de carbono enquanto instrumentos fundamentais para acelerar a transição para um modelo económico neutral em termos de CO2.
Numa recente conferência digital promovida pelo FMI, William Nordhaus, professor de Yale e Nobel da Economia em 2018, explicou a importância das taxas sobre o carbono. “O objetivo é criar penalizações para quem emite gases com efeitos de estufa. Criar um plano inclinado contra estas indústrias e agentes económicos. É mais eficiente do que os discursos dos líderes políticos, porque estamos a falar de mudar o comportamento de centenas de países e de milhares de empresas”.
Nordhaus não deixou de elevar a fasquia: “Uma política ambiental para ser eficiente tem que ser global. Isto não significa que seja igual em todos os pontos do globo mas deve ser implementada pelos maiores países”. E concretiza: “Tem que se mudar o ‘design’ dos tratados internacionais na área do ambiente. Os países devem ter obrigações e penalizações se não cumprirem. Os acordos voluntários têm muitas limitações”.
E, por fim, o Nobel da Economia colocou números no problema. “Em 2019, 80% das emissões de CO2 não estavam cobertas por licenças”. Ou seja, estavam fora do mercado de licenças de carbono. E as alterações que se exigem à economia são gigantescas. “Teremos que substituir 75% a 85% das infraestruturas de produção de energia, uma vez que essa energia resulta de fontes fósseis”.
As empresas são fundamentais
Como vimos antes, já temos muita reflexão sobre as políticas públicas (orçamental, fiscal, monetária e financeira) e a forma como podem promover a transição para um modelo económico mais sustentável. Mas, mais uma vez, não vale a pena enfiarmos a cabeça na areia. Estamos perante a exigência de uma mudança de tal forma radical que a atividade do Estado é necessária mas não suficiente. Recuperando Kennedy, é o momento de perguntarmos o que podemos fazer pelo nosso país. Todos nós seremos atores fundamentais desta transformação, bem como as empresas (privadas e públicas).
Tendo em consideração que as empresas privadas são a principal fonte de criação de riqueza e de emprego nas sociedades desenvolvidas, arrisco dizer que sem o seu alinhamento com os objetivos climáticos para o planeta seremos um caso perdido.
Obviamente que esta temática não é nova. Há décadas que se fala e escreve sobre empresas que mudaram os seus modelos de negócio, colocando a sustentabilidade (e não o simples lucro financeiro) como a principal prioridade. A Unilever é sempre um caso que vem à memória. Em 2009, em plena crise financeira global, o então novo CEO Paul Polman teve a coragem de definir e implementar uma nova estratégia global baseada numa plataforma para a sustentabilidade – Unilever Sustainable Living Plan (USLP) -, que fixou objetivos sociais e ambientais que a empresa deveria atingir. Como em todos os processos transformacionais, nem tudo foram rosas mas ficou o exemplo de como uma multinacional podia abraçar convictamente um novo modelo de negócios mais sustentável.
A Iberdrola, por sua vez, é um exemplo mais recente, num sector habitualmente olhado com desconfiança – o sector energético. Desde o início do século que a empresa espanhola tem vindo a encerrar as centrais de produção de energia baseadas em carvão e petróleo e apostou em transformar-se num dos maiores produtores mundiais de energia eólica. Isto ao mesmo tempo que expandiu a sua atividade para novos países em outros continentes. A visão é clara: uma estratégia de crescimento baseada em energia limpa e reduzir as emissões de CO2, derivadas da atividade operacional, em 50% até 2030.
No entanto, como os relatórios das Nações Unidas mostram, este movimento é insuficiente para atingirmos as metas contra as alterações climáticas. Acima de tudo, o tempo urge. Muito se tem escrito e debatido sobre políticas públicas. É altura de as empresas colocarem a mesma energia na transição para novos modelos de negócio.
As empresas têm o conhecimento, o engenho e os recursos necessários (humanos e financeiros) para concretizarem transformações com impacto material na sustentabilidade dos recursos do planeta. Mas por onde começar?
A primeira questão a resolver é sem dúvida de foco. Há quem defenda que existe um potencial conflito entre objetivos de curto-prazo e de longo-prazo. Ou seja, a nossa economia baseia-se numa lógica de rentabilidade e lucros financeiros obtidos no curto prazo. É isto que os investidores exigem às empresas privadas. Pois bem, é altura de complementar este foco com uma preocupação de longo-prazo, que vai para além do lucro financeiro e integra igualmente outros objetivos de sustentabilidade ao nível dos recursos ambientais e relação com os vários stakeholders (colaboradores, clientes, fornecedores).
Os mais cínicos vão dizer que se trata de uma perspetiva lírica. Não é. Os gestores e a alta direção das empresas não se devem esquecer que o objetivo último de qualquer organização é sobreviver. Por outras palavras, ser eterna. Este propósito só será conseguido com uma perspetiva de sustentabilidade a longo prazo. Ou seja, na verdade, o potencial conflito entre a economia de mercado e a sustentabilidade (ambiental e social) não existe. Basta que os gestores tenham o foco correto.
Resolvida esta questão, as empresas têm que repensar criticamente os seus modelos de negócio e portefólio de produtos e serviços por forma a verificarem como podem reduzir as emissões de carbono. Este movimento não tem de ser apenas negativo, destrutivo. Deve (e pode) igualmente ter uma faceta criativa – que novos serviços e produtos posso lançar no mercado por forma a contribuir para a neutralidade nas emissões de carbono.
Esta mudança não deve ser apenas interna. Pode ser completada por uma perspetiva externa. As empresas devem exigir que os seus stakeholders tenham comportamentos semelhantes, nomeadamente os seus fornecedores, e devem promover comportamentos sustentáveis nos seus clientes e colaboradores, criando um efeito de transformação em rede.
Os cinco anos do Tratado de Paris celebraram-se em Dezembro e o balanço está longe de ser positivo. A este ritmo, as metas fixadas não vão ser alcançadas. Todos temos que fazer mais. No seu último “World Economic Outlook”, o FMI demonstra que as mudanças radicais que as alterações climáticas exigem não têm que ser prejudiciais para o nosso nível de vida. Pelo contrário, podem mesmo promover o desenvolvimento económico e social. Portanto, não temos desculpas. Podemos todos fazer muito mais, sobretudo as empresas.
Professor de Política de Empresa e Prof. Responsável do Short Program
“Sustentabilidade: implementar ESG nas empresas”
Parabéns pela reflecção tão atual 🙂
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