Janet Yellen será a primeira mulher a liderar a Reserva Federal norte-americana e já fez saber que a sua principal prioridade será a de lutar contra o desemprego. Fiel a toda a sua carreira no próprio Fed, a mulher casada com o Nobel da Economia George Akerlof, sempre se concentrou no lado humano da economia. Adepta da transparência, com uma capacidade significativa para gerar consensos, Yellen pode vir a ser a “pomba” que faltava no mundo dominado pelos “falcões”
POR HELENA OLIVEIRA

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Em 2010, Christine Lagarde, afirmava, em tom bem-humorado, apesar de a situação não ser propícia a graças, que “se o Lehman Brothers fosse, ao invés, Lehman Sisters, a crise económica da actualidade seria bastante diferente”. Três anos depois e com os Estados Unidos num “shutdown” que só terminou há dois dias, a imprensa não se tem escusado de comentar, de diferentes formas e feitios, o facto de Obama ter nomeado Janet Yellen para suceder a Ben Bernanke nos destinos do Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos da America (Fed), a partir do Fevereiro do próximo ano.

E serão estes comentários e análises acerca das políticas económicas que defende? Do seu currículo académico e profissional ser ou não ser suficientemente bom para um cargo desta natureza? Por ser a primeira democrata a liderar o Fed desde Paul que Volcker em 1987? Se navegar uns minutos pela internet, a possibilidade de encontrar algumas destas informações existe, certamente mas, na sua maioria, no que a imprensa se tem vindo a focar é, e também como não poderia deixar de ser, no facto de ser uma mulher a ocupar um dos mais poderosos lugares na economia mundial.

Com o exagero habitual quando uma mulher consegue atingir um cargo elevado, sobretudo na política ou no mundo financeiro, nas quais a sub-representação feminina continua a ser uma evidente realidade, a imprensa, particularmente a norte-americana, deu (poucas) asas à imaginação e, a seis meses que faltam para que Janet Yellen ocupe legitimamente o cargo de presidente da Fed, multiplicaram-se títulos como: “Sai da frente, Angela Merkel, Yellen pode vir a tornar-se a mulher mais poderosa do mundo” ou “Uma mulher que ninguém conhece está prestes a ser a mulher mais poderosa do mundo” ou ainda “Janet Yellen, a mulher mais poderosa da história dos Estados Unidos”.

Pese embora a falta de originalidade, a verdade é que o facto de uma mulher ocupar um cargo de poder continua a ser mais notícia do que as qualidades da mesma que foram tidas em consideração para a sua nomeação. Adicionalmente, e como escrevia a Businessweek, a questão roça o absurdo: “ a simples ideia de Yellen passar a utilizar uma ‘coroa’ nacional reflecte a obsessão dos media em classificar as mulheres influentes como se de um concurso de beleza se tratasse”.

A revista norte-americana questiona ainda a noção subjectiva de “poder e mulheres”, questionando se é possível (e útil) comparar Yellen a Merkel, que foi reeleita como líder da mais influente nação da Europa, ou Christine Lagarde, responsável máxima do FMI ou Dilma Roussef, presidente do Brasil, a sexta maior economia mundial. E o que dizer das antigas secretárias de Estado norte-americanas como Hillary Clinton, Condoleezza Rice ou Madeleine Albright? E a lista (apesar de, na verdade, não ser assim tão grande) poderia continuar.

Todavia e para muitos outros analistas, é sempre positivo dar o devido destaque quando uma mulher alcança uma posição predominantemente masculina. Porque as demais mulheres precisam de “modelos”, como afirma Cecilia Rouse, economista de topo em Princeton e reitora da universidade Woodrow Wilson School for Public and International Affairs, afirmando que, entre as várias teorias que explicam os motivos devido aos quais as mulheres continuam a ser sub-representadas principalmente nas áreas de Economia e Finanças, uma dela é a inexistência de modelos suficientes que dêem o exemplo às demais mulheres. E, mais uma vez, as estatísticas ajudam a contextualizar a questão. Se nos dermos ao trabalho de acedermos à página da Central Bank Directory, ficamos a saber que, face a 2011, o ano de 2012 revelou um aumento de 50% (uau!) no que respeita ao número de mulheres governadoras de bancos centrais. Este aumento significativo deve-se ao facto de a Bielorrússia, o Quirguistão, Samoa e o Banco da Reserva Federal de Kansas City serem, desde 2012, geridos por mulheres.

Dos 160 bancos centrais existentes no mundo, 12 ou 6% são geridos por mulheres. Talvez depois de esta estatística – e de muitas outras que continuam a apontar para a sub-representação feminina na política e no universo empresarial – se perceba porque continua a ser notícia o facto de Janet Yellen ter sido nomeada para o cargo de presidente da Reserva Federal. Afinal de contas, as suas acções e decisões terão impacto na vida de milhões de pessoas e ninguém duvida da influência que tal cargo representa.

Enquanto líder do sistema bancário central dos Estados Unidos, será Yellen a definir as políticas do Comité de Operações de Mercado Aberto (FOMC, na sigla em inglês), através do qual o Fed estabelece as taxas de juro; estará envolvida na regulação da banca e será responsável por lidar com qualquer crise financeira que possa vir a surgir. Todavia e de acordo com a maior parte dos analistas, uma das suas principais responsabilidades será a de comunicar as acções e intenções da Fed ao mercado, o que poderá trazer consequências para todo o mundo. Convém, no entanto, não esquecer que a Fed é composta por um conselho de governadores – nomeados também pelo presidente – e por 12 membros dos bancos regionais, cada um dos quais com um “mini-feudo”. Ou seja, Yellen passará grande parte do seu tempo a tentar persuadir os vários players a tomarem as melhores decisões possíveis. E para quem? Se existe tema consensual no que à nomeação desta mulher diz respeito, é o de Yellen ser reconhecida, desde o início da sua carreira, como alguém com capacidade para gerar consensos e não só. Um dos três economistas vencedores do Nobel da economia este ano, Robert Schiller, que se encontra actualmente a escrever, pela segunda vez, um livro em parceria com outro laureado com o Nobel, George Akerlof [casado com Janet Yellen], afirma que Yellen “é uma pensadora brilhante que sempre se concentrou no lado humano da economia”. E talvez seja devido a esta característica que Obama, depois de não conseguir que o seu favorito Larry Summers (o qual, por acaso, foi aluno de Yellen) aceitasse a nomeação para o cargo, escolheu a actual vice-presidente da Fed para subir o degrau seguinte.

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Janet Yellen, com o marido, o Nobel da
Economia George Akerlof
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Rodeada de “Nobels”
Diz o Finantial Times que o seu interesse pela economia foi herdado da mãe, a mulher que geria as finanças em casa, e que desde pequena, Yellen lia as páginas de economia e de negócios do jornal, mantendo sempre um interesse particular pelo mercado de acções.

Enquanto estudante, coleccionou todos os prémios que existiam para coleccionar e em matérias tão diferentes como a matemática, as ciências ou o Inglês, tendo sido igualmente vencedora do famoso prémio Phi Beta Kappa, em 1963. Como conta também a BusinessWeek, que falou com alguns colegas de Yellen na altura, sempre foi uma “aluna brilhante, uma liberal clássica, anti-guerra e anti-bombas, mas sempre discreta”. Pertencia também ao clube de psicologia, de história e foi editora-chefe do Pilot, o jornal escolar, o qual tinha por hábito entrevistar, todos os anos, o aluno que mais se distinguia. Sem querer quebrar a tradição, Janet Yellen acabou por entrevistar-se a si própria.

Quando foi para Universidade de Brown, em Rhode Island, a sua ideia inicial era seguir Matemática. Mas acabou por mudar para Economia, por considerar a disciplina igualmente rigorosa, mas menos abstracta.

Mas foi em Yale que Yellen viria a escolher a sua carreira futura, depois de ouvir uma palestra de James Tobin (vencedor do Nobel em 1981), que ali leccionava. Tobin, um acólito acérrimo de James Maynard Keynes – o economista inglês que defendia, em tempos de recessão, uma agressiva intervenção estatal na economia – viria a ter uma enorme influência em Yellen. Como afirmou, em 2012, à Reuters “o seu enorme sentido de moralidade e de responsabilidade social impressionaram-se sobremaneira”.

E foi com a orientação de Tobin que Yellen viria a tirar o seu doutoramento em Yale. De acordo com a The New Yorker, as notas que Yellen tirava das suas aulas eram tão precisas que foram muitos os estudantes que, nos anos seguintes, as utilizavam como referência. O próprio Joseph Stiglitz, outro laureado com o Nobel e na altura a leccionar em Yale, confirma também que as visões de Tobin no que respeitava à forte interacção dos mercados financeiros com a economia real marcaram profundamente Yellen. “A Janet sempre compreendeu muito bem o poder e as limitações do mercado”, referiu ao Financial Times.

Depois do doutoramento, Janet Yellen foi convidada para leccionar em Harvard, onde viria a ser professora de Lawrence Summers (o escolhido por Obama para ser o próximo presidente do Fed, mas que acabou por desistir), mas seria por pouco tempo. Na cafetaria da universidade, conheceu George Akerlof – que ali estava como professor convidado e seria com este futuro Nobel que viria a casar. Depois de algum tempo a viver e a ensinar em Londres, na London Business School, o casal mudou-se para São Francisco onde, em parceria, haveria de escrever uma longa série de artigos académicos ao longo de toda a década de 1980. De acordo com o testemunho de alguns colegas, e como escreveu o The New York Times, a complementaridade entre ambos era visível: “o intuitivo Akerlof tinha as ideias doidas e a rigorosa Yellen converti-as em argumentos cuidadosos e lógicos”.

Como refere o Financial Times, Janet Yellen poderia ter tido uma carreira académica de sucesso relativamente anónima (em 1980, foi dar aulas na Haas School of Business da Universidade da Califórnia) se não tivesse sido recebido uma chamada, em 1994 e com 48 anos, da Casa Branca. E foi pela mão de Bill Clinton que a sua história no Fed teria inicio, ao ser nomeada por este para o Conselho de Governadores da Reserva Federal (o qual inclui os 12 bancos regionais do sistema).

Já na altura, Yellen opunha-se à opacidade da gestão da Reserva Federal, afirmando que esta deveria ser mais transparente e inverter a sua tradição de secretismo. Por outro lado, o modelo de “salários de eficiência” que desenvolveu sugeria que se as pessoas se sentiam mal pagas nas suas funções, seriam muito menos produtivas e teriam uma maior tendência para se despedirem, o que implicava, no fundo, que o corte nos salários baixava a produtividade. Como referiu, à Businessweek, Alan Binder, economista de Yale e nomeado ao mesmo tempo que Yellen para o Conselho de Governadores, esta sempre considerou “o desemprego como um flagelo devastador”.

Em Fevereiro deste ano, numa conferência na Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais (AFL-CIO), assegurou: “O desemprego não é, para mim, uma questão de estatísticas. Todos sabemos que o desemprego de longa duração é devastador para os trabalhadores e para as suas famílias, para além de ter um custo terrível na sua saúde física e mental”. Ou seja, desde sempre que o desemprego constituiu a sua principal área não só de investigação, com variadas obras publicadas, mas também de “coração”.

Entre 1997 e 1999, presidiu ao Conselho dos Consultores Económicos do Presidente democrata Bill Clinton, o qual acabou por abandonar alegando razões familiares. No que a este episódio diz respeito, a Businessweek avança que, de acordo com alguns amigos, Yellen não se adaptou à função, por esta ser “demasiado competitiva e elevadamente política”. Em 2001, o marido seria laureado com o Nobel da Economia e, em 2004, Yellen tornava-se presidente do Banco da Reserva Federal de São Francisco, o qual foi transformado num enorme centro de pesquisa macroeconómica. Mesmo a subir vários degraus na escada do poder, Yellen nunca deixou de comer na cantina, junto com os demais trabalhadores, algo que era impensável por parte dos seus colegas masculinos.

Yellen é, desde 2010, vice-presidente da Reserva Federal e, com Ben Bernanke, manteve exactamente as qualidades que a acompanharam desde sempre. A ela se dá o crédito da maior transparência existente na Fed, com uma política de comunicação por si criada, e que inclui conferências de imprensa trimestrais, em conjunto com o apoio ilimitado a Ben Bernanke no prosseguimento das políticas de “quantitative easing”, o programa de injecção de dinheiro na economia para promover o crescimento económico. Como refere a edição do Economist da semana passada, “o ano passado [Yellen] demonstrou publicamente a sua pressão, para que as taxas de juro se mantivessem perto do zero durante um período mais longo do que aquele planeado pelo Fed, para se acelerar a queda do desemprego, mesmo que isso provocasse um aumento na inflação ligeiramente superior a 2%. Yellen foi também a autora principal da actual declaração da Fed sobre os objectivos de princípios operacionais de longo prazo, a qual sublinha a importância dos seus “objectivos-gémeos” estatutários de pleno emprego e baixa inflação.

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A pomba não disfarçada de falcão
Se o leitor se der ao trabalho de pesquisar alguns artigos na internet sobre Janet Yellen, certamente que irá encontrar, em muitos títulos dos mesmos, a expressão pomba e/ou falcão. Esta taxonomia tradicional, que teve origem na altura em que Kennedy era presidente e se via a braços com a crise dos mísseis de Cuba, há muito que foi adoptada pela Reserva Federal para fazer uma distinção entre os que se preocupam mais com a inflação – os falcões – e aqueles que colocam o emprego no topo das suas prioridades – as pombas. Enquanto banco central dos Estados Unidos, a Reserva Federal tem dois objectivos por excelência: o pleno emprego e uma inflação baixa. O problema é que principalmente em tempos conturbados, as acções que se concentram num dos lados podem piorar as condições do outro. Ou, como explica o The Wall Street Journal, a verdade é que o Fed só consegue fazer uma coisa de cada vez.

De acordo com o The New Yorker, os presidentes tendem a escolher, para presidir à Reserva Federal, falcões disfarçados de pombas: ou seja, alguém que tenha credibilidade nos mercados para assegurar que o Fed não sucumbirá às tendências inflacionárias do sistema político, como Paul Volcker ou Alan Greenspan, mas que sejam também sensíveis às necessidades mais alargadas da economia e, consequentemente, às necessidades políticas do partido que está no poder (na verdade, há quem considere Volcker e Greenspan como falcões puros, quem ache que Bernanke é falcão disfarçado de pomba e quem considere este último, com a ajuda de Yellen, como uma pomba).

Mas o que a imprensa norte-americana discute neste momento é se Yellen poderá ser a pomba, “pura”, que o Fed nunca teve. E são muitos os analistas, economistas e comentadores que acreditam que sim. Um mês depois do já mencionado discurso que realizou na conferência na Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais, no qual qualificou, mais uma vez e publicamente, o desemprego como a sua principal preocupação, a questão foi novamente introduzida um mês depois, num discurso proferido na National Associacion for Business Economics. No mesmo, Yellen reafirmou o seu compromisso de manter  às taxas de juro de referência próximas do zero, pelo menos até o desemprego baixar até aos 6,5%, mesmo que isso provoque um aumento na inflação.

No dia em que Obama deu a conhecer a nomeação de Yellen na Casa Branca, foi o próprio presidente que citou o seu discurso de Fevereiro último, ao qual acrescentou que a futura Presidente da Reserva Federal “está comprometida com o aumento das taxas de emprego e que é das pessoas que melhor compreende os custos humanos quando os norte-americanos não conseguem arranjar trabalho”. Todavia, Obama não deixou de referir que, para substituir Bernanke, precisava de alguém que “compreendesse o mandato duplo do Fed – uma política monetária coesa que assegure a manutenção da taxa de inflação [definida pelo Fed como inferior a 2%], mas também uma política de emprego que crie postos de trabalho, que consiste ‘no nosso maior desafio da actualidade’. “E eu encontrei essas duas qualidades em Janet Yellen”, concluiu o presidente.

Certo é que Yellen vai herdar o pesado dossier do “quantitative easing” o qual, em princípio, será mantido a médio e longo prazo, terá os republicanos (que ainda terão de concordar com a sua nomeação) a clamar por políticas monetárias menos expansionistas e terá de terminar uma enorme tarefa iniciada por Bernanke: enquanto defensora de uma maior regulamentação do sector financeiro, a “re-regulação” do sistema bancário e de Wall Street continuará, decerto, na sua pesada agenda.

Todavia e ao que parece, a pomba tem garras de falcão suficientes para lidar com as responsabilidades gigantescas que o cargo de presidente da Reserva Federal norte-americana implica. E poderá vir a ser, na verdade, uma das mulheres mais poderosas do mundo. O que continuará a ser notícia, para o bem e para o mal.

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