Professora pacata durante o dia, super-heroína de noite, Jiya luta, no Paquistão, pelo direito universal à educação, sobretudo para as mulheres. Na primeira série televisiva para crianças produzida no Paquistão – onde apenas 40% das raparigas tem acesso à escola -, a Vingadora de Burka visa estimular o debate, entre crianças e adultos, sobre várias temáticas sociais que tocam muito de perto a sociedade islâmica, em particular a paquistanesa. Mas são também muitos os activistas que afirmam que a vestimenta escolhida – símbolo de opressão das mulheres – perpetua a sua invisibilidade
POR HELENA OLIVEIRA

Durante o dia, Jiya é uma mulher reservada e uma professora calma. À noite, transforma-se numa super-heroína, defensora acérrima da paz, da justiça e, sobretudo, do direito à educação para todos. Vestida de negro, tem como ajudantes três crianças e é mestre em Tahkt Kabaddi, uma arte marcial que domina como ninguém para combater o mal. As suas armas: livros e canetas; os seus inimigos: os políticos corruptos e, essencialmente, os talibãs, que consideram que o lugar das meninas é em casa e nunca numa escola.

Se o leitor pensa que estamos perante mais uma super-heroína (sim, pois também as há) fabricada no Ocidente ou, mais precisamente, nos sofisticados estúdios da Disney, desengane-se. Criada pela estrela pop paquistanesa Haroon Rashid, a Vingadora de Burka é a primeira série televisiva animada produzida no Paquistão, destinada a crianças, mas com poder suficiente para encantar e, sobretudo, educar os adultos.

Apesar de os episódios-piloto terem sido produzidos na altura em que a jovem Malala Yousafzai, na altura com 15 anos, foi brutalmente atingida com um tiro na cabeça por um talibã, no interior do autocarro escolar, o que parecia ser um acontecimento triste mas providencial, não passou de uma mera coincidência. Mas tal como a história de Malala – activista convicta no que respeita aos direitos da educação no feminino e que aos 13 anos se deu a conhecer ao mundo através de um blogue, no qual denunciava as práticas atrozes do regime do Tehrik-i-Taliban Pakistan (TTP) e agora vencedora do Prémio Sakharovm, entre outros -, a Vingadora de Burca está não só a fazer furor (e a gerar polémica também) no seu país de origem, como a receber uma enorme atenção um pouco por todo o mundo. Como já foi noticiado, uma empresa de distribuição de programas televisivos, sedeada na Europa, está a negociar os direitos de tradução da série animada para 18 línguas, incluindo o inglês e o francês, bem como a sua exibição em 60 países (associado à série existe também já um jogo para o iPhone, que pode ser adquirido através da App Store da Aple).

“Vamos pegar nos nossos livros e canetas. Eles são as nossas armas mais poderosas. Uma criança, um professor, uma caneta e um livro podem mudar o mundo. A educação é a única solução”. O discurso não foi retirado da série televisiva paquistanesa, mas proferido pela heroína da vida real, Malala, a 12 de Julho último, dia em que comemorou o seu 16º aniversário com um discurso na Assembleia da Juventude na Organização das Nações Unidas em Nova Iorque. Depois de uma longa e árdua estadia num hospital em Birmingham, no Reino Unido, a jovem activista conseguiu, de forma quase miraculosa, recuperar. E a lição que deu ao mundo figura, de forma quase literal, na série animada protagonizada pela Vingadora de Burka.

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© DR
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A super-heroína muçulmana
Num país em que quase 50% do total de crianças não frequenta o ensino primário, sendo que destas, 75% são raparigas, o sucesso e a capacidade de mobilização de A Vingadora de Burka é facilmente explicável e por duas vias. Por um lado, representa um “abrir de olhos” para o Paquistão (e, por consequência, para o resto do mundo), na medida em existe uma profunda desconexão entre a elite urbana rica e os pobres que habitam as suas zonas rurais. De acordo com números das Nações Unidas, a taxa de literacia total é de 54,9% e de apenas 40,3% para as mulheres, o que faz do Paquistão um dos ainda muitos países que não adoptaram a imprescindível “educação para todos”. Por outro lado, o facto de a série abordar não só a educação e a literacia, mas também um conjunto de questões sociais – de uma forma inteligente e “cheia de tacto” – está não só a gerar um debate extremamente produtivo no interior e exterior das suas fronteiras, como também a denunciar o sistema político corrupto do Paquistão e a “militância diabólica” representada pelos próprios talibãs.

Adicionalmente, o formato animado da série e a sua personagem principal têm como público principal os mais jovens, expondo-os à ideia da igualdade de género e à necessidade de estes se erguerem contra as injustiças que grassam no seu país. Até o nome da Vingadora – Jiya – foi criteriosamente escolhido para cumprir a sua missão. Jiya pode significar “vida” ou “coração”, sendo que a ideia é sugerir que lutar pela justiça social – e, em particular, através da educação para todos – está no “coração” da sobrevivência e progresso do Paquistão.

Esta super-heroína não dá murros, nem pontapés, não bate e não mata ninguém, apesar de ser mestre em arremessar, com uma pontaria invejável, pesados livros à cabeça dos inimigos e de lançar espadas, perdão, canetas, aos mesmos.

Como não há bela sem senão, o que poderia ser considerado como uma ideia genial, está também a gerar polémica. E existe uma espécie de empate entre os críticos que louvam a originalidade e o poder de apelar a valores que deveriam ser universais e outros tantos que se uniram para se centrar na vestimenta da heroína: a burca negra que a envolve e que, para os activistas que defendem os direitos das mulheres e que vêem a burca como um sinal de submissão feminina. Na verdade, e em termos culturais, realmente é o que significa. Todavia e como se defende o criador da série, tudo depende do ponto de vista. Numa entrevista transmitida pela France Press, Haroon Rashid explicou que a vestimenta escolhida para a super-heroína em causa, a qual revela apenas os seus olhos,constitui uma conversão inteligente de uma veste culturalmente relevante e comummente utilizada.

Haroon Rashid argumenta ainda que muitas mulheres islâmicas utilizam a burca como uma escolha pessoal e não porque são oprimidas ou a isso obrigadas. Por outro lado, as mulheres que são forçadas a usar a burca podem considerar a missão da super-heroína como um caminho para o seu próprio empowerment – na medida em que poderão ser estimuladas a lutar contra costumes culturais com os quais não concordam. E talvez a explicação mais simples seja a de que a burca da heroína serve como um excelente disfarce quando Jiya pretende esconder a sua verdadeira identidade – tal como a esmagadora maioria de super-heróis como o Homem-Aranha ou o Batman, por exemplo.

A romancista e jornalista paquistanesa Bina Shah elogiou também, num programa de televisão, toda a equipa responsável pela série animada no que respeita à inovação e dedicação no sentido de levar às crianças paquistanesas mensagens sociais num país no qual a programação infantil é praticamente inexistente. Todavia, a escritora, jornalista e blogger também não concorda com as vestes da super-heroína, afirmando que “Jiya é apenas capaz de travar as suas batalhas quando veste a burca, o que pode contribuir para uma difusão errada da mensagem, especialmente para as raparigas mais pequenas que vêem a série: a de que uma mulher no Paquistão possa apenas fazer a diferença no seu país se for invisível”.

Rashid, por seu turno, recorda que das três principais mulheres protagonistas da série, duas não usam burca (a própria Jiya não o faz durante o dia, altura em que é professora). Numa entrevista ao Washington Post, o criador explica que existe Ashu – uma menina esperta e corajosa que é a responsável, logo no primeiro episódio” por um monólogos poderoso sobre o direito à educação no feminino na altura em que a escola onde Jiya é professora é fechada à força e ainda uma jornalista que trabalha para uma revista e que, na altura em que a escola é encerrada, pergunta se a próxima medida destes homens em particular será a de impedir as mulheres de se alimentarem.

A ideia de Rashid é tratar, em cada um dos episódios, várias temáticas sociais como a discriminação, o trabalho infantil, os cortes de energia que são comuns no Paquistão ou ainda as questões ambientais, e tendo sempre o poder da educação como pano de fundo.

Ou seja, mais importante que a polémica em torno da burca negra, o que realmente interessa é que a série animada estimule o debate, entre crianças e adultos, sobre as temáticas sociais, culturais e educacionais, que fazem da primeira série animada paquistanesa uma arma poderosa sobre os direitos e o papel da mulher nas sociedades muçulmanas.

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Editora Executiva