Um relatório agora publicado pela PricewaterhouseCoopers (PwC) e pelo Fórum Económico Mundial (FEM) estima que em 18 economias analisadas, mais de 100 milhões de pessoas – quer por estarem subempregadas, quer por quererem trabalhar mas terem desistido de procurar emprego por falta de esperança de sucesso – poderiam beneficiar directamente de uma abordagem que privilegiasse as competências. Ou seja, cada vez mais os directores de Recursos Humanos colocarão na gaveta (ou no lixo) os tradicionais currículos que contam a história profissional dos candidatos, bem como a sua formação académica, focando-se ao invés nas suas competências. Uma abordagem para hoje e amanhã que já devia ter começado ontem
POR HELENA OLIVEIRA

O termo “competências em primeiro lugar” é cada vez mais utilizado por um vasto leque de organizações dos sectores público e privado para descrever uma nova abordagem à gestão de talentos que dá ênfase às aptidões e competências de uma pessoa – em vez de diplomas, histórias ou títulos profissionais – no que diz respeito à atracção, contratação, desenvolvimento e reafectação de talentos. Ao centrar-se directamente nas competências em si, e não na forma como foram adquiridas, esta abordagem que coloca as competências em primeiro lugar tem o potencial de democratizar o acesso a oportunidades económicas e a vias para melhores empregos para muito mais pessoas do que as abordagens tradicionais.

Para os empregadores, uma abordagem que coloca as competências em primeiro lugar pode criar reservas de talentos mais sólidas – e pode ajudar a resolver a escassez de competências de que sofre o mercado laboral na actualidade e no futuro. Para os decisores políticos, a abordagem “prioridade às competências” pode promover a prosperidade económica e ser uma mais-valia para as comunidades locais. No entanto, o pleno potencial e a gama de casos de utilização desta mesma abordagem ainda não são totalmente compreendidos por muitos líderes e decisores, tanto no sector privado como no público.

Mas a verdade é que vários desenvolvimentos recentes contribuíram para o surgimento de práticas de gestão de talentos baseadas em competências. Estes incluem a escassez de mão-de-obra em várias economias e sectores, o aumento do trabalho remoto e as mudanças nas práticas de gestão de talentos durante a pandemia da COVID-19, a par da  utilização cada vez mais sofisticada da inteligência artificial (IA) e dos grandes volumes de dados para o mapeamento de empregos e competências.

Ter as competências certas dentro de uma organização continua a ser uma preocupação crítica para as empresas, uma vez que estas procuram reinventar o seu modelo de negócio, reduzir os custos e gerir as pressões económicas externas. Com base na análise apresentada neste relatório, a PwC e o FEM esperam que a popularidade, o potencial e a necessidade da abordagem “competências em primeiro lugar” cresçam exponencialmente nos próximos anos. Ainda de acordo com o FEM – e do seu relatório “The Future of Jobs 2023” – nos próximos cinco anos, as lacunas de competências e a incapacidade de atrair talentos constituirão os obstáculos mais importantes que impedirão a transformação de variadíssimos sectores. 

Eis alguns exemplos desta falta de competências:

  • Prevê-se que a procura de trabalhadores com competências “verdes” ultrapasse significativamente a oferta nos próximos cinco anos. Estima-se que, até 2030, será necessário um aumento de 66% neste tipo de funções para fazer avançar as transições ecológica e energética.
  • A literacia tecnológica continua a ser uma das competências mais procuradas, com milhões de postos de trabalho por preencher relacionados com funções digitais e tecnológicas a nível mundial, incluindo quase 3,5 milhões de postos de trabalho em falta na área da cibersegurança. A disrupção tecnológica também continua a criar a procura de funções totalmente novas, particularmente na área da inteligência artificial generativa.
  • De acordo com a UNESCO, e até 2030, o mundo precisará de mais 69 milhões de professores para cumprir os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável relacionados com a educação, ao mesmo tempo que a Organização Mundial da Saúde projecta uma carência de 15 milhões de trabalhadores na área da saúde, em particular nos países de baixo ou médio-baixo rendimento.
  • A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que, no âmbito da evolução demográfica e da profissionalização do sector, poderão ser necessárias 300 milhões de novas funções relacionadas com os cuidados às crianças e aos idosos na economia mundial dos cuidados até 2035.
  • De acordo com a União Internacional dos Transportes Rodoviários (IRU), à medida que a cadeia de abastecimento e a indústria logística se vão transformando, continua a haver uma escassez global de 2,6 milhões de condutores de camiões comerciais.

Desta forma e como se pode ler no relatório, a abordagem “competências em primeiro lugar” oferece uma oportunidade para criar reservas de talentos mais sólidas para muitos dos empregos de amanhã. Ao mesmo tempo, tem o potencial de beneficiar milhões de indivíduos que têm tido dificuldades em aceder aos mercados de trabalho mais tradicionais.

Benefícios para a gestão de talentos nas empresas

Em termos do ciclo de gestão de talentos nas organizações, a abordagem “competências em primeiro lugar” tem várias características inovadoras e únicas. No que diz respeito à contratação, as organizações estão a adaptar os seus sistemas de avaliação para serem mais orientados para as competências, considerando os candidatos com competências adquiridas através de métodos alternativos, como as microcredenciais.

No que diz respeito ao desenvolvimento, as organizações estão a mudar a forma como promovem os seus colaboradores, passando de uma abordagem centrada na função para uma abordagem centrada nas competências – compensando os trabalhadores que ajudem a desenvolver e a reter competências críticas dentro da organização. Para conseguir uma experiência consistente ao longo do ciclo de vida do talento, esta abordagem terá de ser executada em consonância com os objectivos estratégicos organizacionais mais amplos e com as políticas de recursos humanos.

Adicionalmente e com a reafectação, esta abordagem que privilegia as competências visa também evitar redundâncias e despedimentos. Em vez disso, as organizações desenvolvem e implementam políticas que permitem aos trabalhadores aproveitar as competências transferíveis de funções que estão a desaparecer para novas tarefas e responsabilidades, apoiando-os simultaneamente com requalificação, formação prática e reafectação em empregos novos e emergentes. Cada vez mais, tecnologias como a aprendizagem automática e a IA estão a ser aproveitadas pelas organizações para desenvolver as bases para a adopção das competências em primeiro lugar. Estas tecnologias podem ajudar uma empresa a compreender quais as competências que os seus trabalhadores possuem e quais as que serão necessárias num futuro próximo para atingir os seus objectivos de negócio.

Todavia, e embora o potencial da abordagem “competências em primeiro lugar” seja cada vez mais reconhecido em termos gerais, não existe uma estimativa abrangente, global e quantificada do seu potencial que consiga justificar a sua prioridade como um imperativo empresarial e político fundamental para os líderes e decisores.

Além disso, para além de simplesmente documentar as suas várias dimensões e benefícios para a economia, há também necessidade de orientações adicionais sobre boas práticas emergentes, bem como de recomendações mais específicas sobre o desenvolvimento de planos de acção para concretizar os benefícios da abordagem em causa. Assim, este relatório – o primeiro de uma série de duas partes – foi escrito especificamente a pensar nos decisores de topo das empresas e do governo.

O quadro de acção para as “competências em primeiro lugar”

Apesar do interesse crescente em abordagens baseadas em competências e da experimentação activa por parte de um número crescente de empregadores, apenas uma minoria de empresas começou a alargar sistematicamente as práticas que privilegiam as competências.

O presente relatório identifica cinco áreas de acção por excelência que as organizações devem adoptar para que esta nova abordagem possa ser mais facilmente integrada.

  • Identificar as necessidades e lacunas de competências actuais e futuras e mapear as competências para as tarefas de trabalho;
  • Articular as necessidades de competências nas descrições de funções e potenciar e reconhecer métodos inovadores de avaliação de competências;
  • Co-desenvolver e oferecer programas de formação baseados em competências com a indústria, “fornecedores” de aprendizagem e o governo;
  • Promover a aprendizagem ao longo da vida e o acesso a oportunidades de aprendizagem baseadas em competências;
  • Criar percursos baseados em competências para o desenvolvimento e a reafectação.

Embora os sectores industriais, as empresas e os governos operem em contextos diferentes, as acções e os factores de dinamização acima identificados aplicam-se a uma série de indústrias e regiões geográficas e foram concebidos de modo a que as empresas e os países os possam adaptar às suas necessidades específicas. 

E apesar de as áreas de acção estarem interligadas e se baseiem em temas que se apoiam mutuamente e que são susceptíveis de serem implementados de forma combinada como parte de qualquer empresa ou país que avance com êxito para um roteiro que privilegie as competências, as mesmas não foram concebidas para serem seguidas numa ordem cronológica específica: algumas organizações podem iniciar o seu percurso adoptando práticas de contratação que privilegiem as competências para colmatar as lacunas de talento existentes, enquanto outras podem procurar optimizar a gestão de talentos para a sua força de trabalho existente. Construir uma abordagem holística e adaptável às competências em primeiro lugar acabará por ser mais importante para o sucesso do que o ponto de entrada original.

O relatório conjunto da PwC e do FEM identifica igualmente os principais dinamizadores desta nova abordagem.

Adopção de uma cultura, políticas e mentalidade que privilegiem as competências

Adoptar uma cultura que privilegia as competências implica criar organizações que se comprometam a desenvolver os seus talentos, reconheçam o retorno do investimento na sua força de trabalho, recompensem a aprendizagem e a curiosidade ao longo da vida e valorizem a diversidade da força de trabalho. Para activar esta visão, estas organizações reforçam a importância de obter os detalhes certos sobre as competências; comunicam os benefícios de considerar cada função como um conjunto de competências e proficiências, experiências, valores, atitudes e mentalidade e dão formação aos gestores de contratação e às equipas de aquisição de talentos sobre a forma de atrair e avaliar os candidatos em termos de competências.

Para criar a adesão a uma cultura que privilegie as competências, quer a nível organizacional quer a nível nacional, é importante estabelecer uma ligação com os objectivos globais da empresa e do talento e estabelecer critérios alinhados para medir e documentar os benefícios, o retorno do investimento e o impacto da adopção desta abordagem. Embora seja provável que se trate de uma jornada contínua de vários anos, as organizações podem definir métricas para comparar e acompanhar o seu progresso em relação a medidas como as métricas financeiras (por exemplo, aumento de receitas), métricas de inovação (por exemplo, novos produtos ou serviços criados) e métricas de pessoas (por exemplo, níveis de envolvimento e satisfação dos empregados)

Adopção de uma linguagem comum de competências

O alinhamento numa linguagem comum quando se fala de competências – dentro das organizações e entre as partes interessadas – através de uma taxonomia de competências pode permitir uma colaboração e coordenação mais eficazes entre alunos, prestadores de serviços de aprendizagem, decisores políticos e empregadores. Para os empregadores, uma taxonomia de competências equilibrada ajuda os gestores de recursos humanos a alargarem a sua atenção das competências técnicas e especializadas para promoverem todo o espectro de competências que tornam um trabalhador eficaz.

Esta abordagem realça as semelhanças entre as necessidades de competências nas diferentes funções empresariais e as oportunidades para iniciativas de formação de competências em toda a organização, ao mesmo tempo que incentiva a mobilidade interna e a reafectação de talentos. 

A existência de uma terminologia comum para as competências permite que os prestadores de serviços de aprendizagem articulem e forneçam conteúdos de aprendizagem e programas de formação em termos de competências relevantes para o trabalho, preparando uma mão-de-obra pronta para o trabalho de hoje e de amanhã. 

Para os decisores políticos, uma taxonomia nacional de competências pode oferecer apoio tanto do lado da oferta do mercado de trabalho – permitindo aos formandos e a outros candidatos a emprego responderem aos critérios pretendidos e apoiar os empregadores a articularem as descrições de funções em termos de competências para encontrarem candidatos adequados – como do lado da procura, apoiando os empregadores na articulação de descrições de funções no que respeita às competências necessárias para encontrarem os candidatos certos. 

Muitos países adoptaram abordagens de colaboração público-privada para criar mapas de competências e taxonomias sectoriais para captar a procura de competências em cada sector, incluindo o desenvolvimento de normas profissionais correspondentes. Por exemplo, a Geórgia criou recentemente uma nova agência de competências sob a forma de uma parceria público-privada inovadora para coordenar a harmonização das competências e a reforma do sector da formação profissional.

O presente relatório apresenta vários estudos de caso sobre a abordagem “competências em primeiro lugar”, que valem a pena ser lidos por empregadores e decisores políticos.

Editora Executiva