POR HELENA OLIVEIRA
“O tempo que traz é o mesmo que leva
Leva momentos, lembranças, amigos e amores
O tempo tem pressa. Por isso é importante aproveitar e valorizar”
O fenómeno não é novo, mas ganhou renovado impulso no final do ano, quando dois funcionários de uma agência de publicidade japonesa morreram por “excesso de trabalho”. Este tipo de “causa” de morte tem, no Japão, um vocábulo próprio que o define – karoshi -, exactamente porque o país do sol nascente é conhecido por não estabelecer limites às exigências que faz aos seus trabalhadores (o Ministério do Trabalho foi agora “obrigado” a estabelecer novas regras para minimizar futuras ocorrências similares).
Também há poucos dias, mais precisamente no primeiro dia do ano e em França, entrou em vigor uma nova lei que “permite” ao trabalhadores desligarem-se do seu email fora do horário profissional de trabalho, uma luta que tem sido travada também há já algum tempo em alguns países ocidentais, nomeadamente nas instituições financeiras e consultoras (mas não só), conhecidas por não darem tréguas aos seus trabalhadores no que respeita a “jornadas e exigências contínuas”.
E porque é exactamente no início de cada ano que todos nós, quase sem excepção e nas habituais resoluções de “este ano é que é”, juramos a nós próprios fazer melhor uso do tempo que, e à medida que vamos envelhecendo, nos parece escorregar cada vez mais depressa das mãos, que iniciámos este texto com estas notícias.
Todavia, e esmagados que somos pelas exigências contínuas e crescentes a que somos submetidos logo que passa a euforia do champanhe e das 12 passas, cedo nos esquecemos desta promessa (e de outras) e, mais rapidamente ainda, voltamos a ser inundados pela quantidade interminável de emails não respondidos, das listas de “to-dos” que nunca conseguimos cumprir, dos remorsos que sentimos por não acompanhar mais os filhos ou dos convites de amigos que declinamos porque temos sempre algo para fazer. E, num fechar de olhos, passaram mais 365 dias, o voto é repetido e a intenção parece perpetuar-se, sem nunca chegar à acção, até ao dia em que o nosso tempo se esgota. E para sempre.
Não sendo nossa intenção deprimir os que nos lêem, antes pelo contrário, a escolha deste tema para iniciar aquele que parece ser o “2017 de todas as incertezas”, depois de 2016 ter sido obsessivamente qualificado como o “pior ano de sempre”, serve para tentarmos reflectir sobre uma das maiores cruzadas que definem a era em que vivemos: como sermos mais produtivos, mais eficientes e, em simultâneo, mais presentes e mais realizados, quando as tarefas se nos afiguram infinitas e o tempo crescentemente – passe o paradoxo – finito.
Tivesse o leitor tempo para ler um longo e interessante artigo publicado no The Guardian e intitulado “Por que motivo a gestão do tempo está a arruinar as nossas vidas” e ficaria a saber, entre várias outras coisas, que existe, nos Estados Unidos, a organização Take Back Your Time, devotada exactamente a “desafiar a epidemia do excesso de trabalho (…) e a fome de tempo nos Estados Unidos e no Canadá, a qual ameaça a nossa saúde, os nossos relacionamentos, as nossas comunidades” e que visa “a procura de uma compreensão renovada do valor do tempo de lazer e dos custos provocados pelo stress nas nossas vidas e locais de trabalho”.
Esta mesma organização realiza uma conferência anual sobre a temática e promove, desde 2015 e a 17 de Março, o Dia do Compromisso com as Férias (algo que nos Estados Unidos não é tão “sagrado” como na Europa no geral), entre outras iniciativas, como uma petição para que os dias de eleições passem a ser feriado e ainda o direito a vários benefícios (como a licença de maternidade e paternidade) que, realmente, ao não existirem, fazem da América um dos países mais “atrasados” nestas matérias e onde os níveis de stress, e de acordo com um relatório, sobre o qual o VER Já escreveu, aumentaram, entre 1983 e 2009, entre 10 e 30 por cento em todos os grupos demográficos. Neste mesmo artigo, é recordado que esta “realidade” foi também considerada pela Organização Mundial de Saúde como a “epidemia do século XXI” e que afecta globalmente o planeta.
Mas, e mais uma vez, a intenção deste artigo também não é a de listar as implicações físicas e psicológicas, em conjunto com os custos para as empresas decorrentes do excesso de trabalho – considerado por cá como uma nova forma de escravatura – mas sim desafiar os leitores a reflectirem no valor sem preço que o tempo tem nas nossas vidas. E também fazer saber que o tema é milenar – já Séneca, como recorda o artigo do The Guardian, filosofava sobre a gestão do tempo – e que todas as tentativas, seja ao nível da gestão e dos seus muitos gurus, seja através dos actuais “movimentos para a produtividade pessoal” tão na moda, em vez de o minimizar, apenas parecem contribuir para o agudizar. E porquê?
O problema não reside nas técnicas, apps, cursos e livros sobre a gestão do tempo, mas em nós
Se o leitor tem idade para se recordar da era prolífera dos gurus da gestão, que vigorou em particular entre meados da década de 80 e ao longo da década de 90, decerto que se lembra de um livro, best-seller durante vários anos, e que se intitulava Os 7 Hábitos das Pessoas Altamente Eficazes (lançado em 1989 e traduzido em português em 2013), escrito por Stephen R. Covey (entretanto falecido em 2012). Na altura, já abundavam os livros de auto-ajuda, mas Covey foi uma espécie de precursor do movimento de “desenvolvimento pessoal”, ainda hoje (e sempre) em voga e com tantos nomes diferentes para o definir, na medida em que combinava “princípios” que poderiam ser utilizados na vida em geral e não só limitados aos locais de trabalho, à gestão ou à liderança, e que convidavam ao “crescimento interno” e à realização plena que qualquer um de nós almeja. Covey foi um, entre inúmeros autores/gurus, que se dedicou a esta temática e a qual se transformou, para muitos, numa verdadeira mina de ouro. Mas o tempo para nós mesmos não sobrou.
Porque o problema da eficiência, da produtividade e da ansiedade que sentimos por não conseguirmos ter “tempo para nada” não diminuiu – nem com as promessas libertadoras das novas tecnologias ou antes pelo contrário – mas antes aumentou, vão surgindo, de tempos a tempos, novos “gurus da produtividade” que prometem conseguir organizar as nossas vidas e dar-nos tempo para gozarmos o tempo que não temos.
Um deles e mais recente é David Allen que, em 2012 e depois do lançamento de um outro best-seller, intitulado “Getting Things Done”, foi também considerado como um dos mais influentes pensadores do mundo sobre produtividade. O sucesso de “Getting Things Done” – cujas famosas iniciais ‘GTD’ identificavam, há já 30 anos, a consultora de Allen e a oferta de serviços de consultoria, coaching privado e de programas organizacionais testados por milhões de pessoas em todo o mundo, contando com clientes de peso como executivos da Microsoft, do Banco Mundial, da Marinha norte-americana, entre muitos outros, – foi de tal ordem, que o livro foi publicado em 28 línguas e considerado pela revista Time como a mais importante obra sobre produtividade na era moderna. Mas e na verdade, não há notícias de que tenha comprado tempo a ninguém.
Adicionalmente, na actual era das apps, basta fazer uma simples pesquisa exactamente por “productivity apps” e o motor de busca devolver-lhe-á quase 36 milhões de resultados. Se procurar workshops, palestras – tente, por exemplo, as famosas Ted Talks – técnicas avulsas, softwares, websites, blogs e afins, e ver-se-á mergulhado num imenso mar de promessas infalíveis para gerir a sua vida da melhor maneira possível, sobrando-lhe o tal tempo que tanto necessita. Mas continuam a ser meras promessas.
A verdade é que, e independentemente da qualidade e quantidade de “métodos” que vamos experimentando, é impossível, ou pelo menos aparentemente impossível, conseguirmos ganhar a eficiência necessária para nos libertarmos das obrigações que nos esmagam e ganhar tempo. Se perguntarmos à maioria das pessoas “sente-se mais produtivo agora comparativamente ao que se sentia há uns anos?”, sem grandes margens para dúvidas, a resposta será, muito provavelmente, um redondo “NÃO”. Na verdade, e à medida que as tecnologias e os processos no local de trabalho sofrem enormes progressos, e paradoxalmente, muitos profissionais sentem que a sua produtividade continua a cair para níveis assustadoramente baixos. E o tempo para nós é cada vez mais reduzido. E então? Desistimos? Chegaremos ao final das nossas vidas a lamentar o que não fizemos, o que não experimentámos, as festas de Natal dos filhos a que faltámos, o amigo no hospital que não visitámos, os nossos pais de quem não cuidámos? Talvez a resposta seja mais fácil do que parece.
E se aprendermos a não buscar continuamente a eficiência, mas a abrir mão do que é acessório e não verdadeiramente importante?
Tal como fez o The Guardian, regressemos ao início da “história da produtividade” desde os tempos de Frederick Taylor (1856-1915), o engenheiro norte-americano considerado “o pai” da administração científica e o precursor do agora denominado “desenvolvimento pessoal”. Taylor acreditava que, ao se oferecer instruções sistemáticas e adequadas aos trabalhadores, estes passariam a produzir mais e com melhor qualidade. Todavia, a sua doutrina de racionalização do trabalho, que viria a dar nome à corrente denominada Taylorismo, levaria, na altura, à desumanização do mesmo, pois a ideia era a adaptação do ritmo humano ao da máquina. E, um século passado, essa procura da eficiência enquanto forma de se fazer o mesmo, mas melhor, com menos custos e em menor tempo, continua a não se concretizar. Se na era da industrialização, estes princípios eram aplicados de “forma forçada” aos trabalhadores, 100 anos passados e a grande diferença reside no facto de os termos interiorizado “livremente”.
Seja pela pressão a que somos submetidos diariamente, seja pelo medo de podermos ser substituídos, seja pelo facto de as novas tecnologias terem, por um lado, facilitado o nosso trabalho, ao mesmo tempo que e por outro, nos passaram a exigir uma “presença” e resposta cada vez mais contínua às sempre crescentes solicitações, tornou-se natural, para todos nós, alinharmos pela bitola do ritmo frenético. Se o colega do lado responde a emails do chefe às 5 da manhã, para bem da manutenção da nossa imagem e, não vá o diabo tecê-las – do nosso posto de trabalho – o melhor é fazermos o mesmo. Mas a verdade é que toda esta corrida acaba por ser paradoxal: na sua essência, a procura pela eficiência e, consequentemente, pela produtividade, está mais preocupada com as exigências da economia, do que propriamente com a possibilidade de os trabalhadores ganharem tempo para si mesmos. Mas, e em simultâneo, os actuais especialistas da gestão não se cansam de apregoar que a pressão excessiva colocada em cima dos trabalhadores não é boa para o negócio, não estimula a criatividade e, muito menos, a criação de boas ideias. E talvez seja essa a razão que tem levado muitas empresas, nomeadamente as grandes tecnológicas – como a Google, por exemplo – a instaurarem “tempo para pensar” – num convite à inspiração e à criação. Mas também não é isso que resolve o tempo de qualidade para nós mesmos.
Assim, o que nos resta? Continuar a confiar e a experimentar as receitas milagrosas que nos são oferecidas por supostos especialistas em gestão do tempo ou colocarmos essa busca nas nossas próprias mãos? O que acontecerá se não fizermos horas extraordinárias para impressionar o chefe, se não respondermos de imediato a um email, se não devolvermos um telefonema, se negarmos estarmos uma hora numa reunião que poderia ser feita em 10 minutos, se não comparecermos aos “eventos de fim de tarde” que promovem o networking?
Em última análise, e não deixando de cumprir as nossas obrigações profissionais, é claro, talvez percamos o estatuto de “é tão bom trabalhador, que está disponível a qualquer hora”, a possibilidade de conhecermos uma ou outra pessoa que nos poderia ser útil no futuro, a oportunidade de subir mais rápido na escada empresarial, entre outras coisas que interiorizámos como sendo essenciais à nossa vida ou à busca incessante pelo sucesso, essa palavra que se transformou no principal objectivo das nossas vidas, e que é definida pelo dinheiro que ganhamos, pela posição hierárquica que ocupamos, pelo reconhecimento “público” que ansiamos.
Mas e no fim, o que vale o dinheiro, o degrau mais alto, a rede de pessoas “importantes” que conhecemos, se o tempo passar, se esgotar, e tomarmos consciência que perdemos momentos preciosos com os que gostamos, que trocámos reuniões sempre urgentes pelo concerto que não ouvimos, pelo passeio na praia que não demos, pelos locais com pessoas “normais” que não visitámos? No fundo, não precisamos de especialistas em gestão do tempo, porque esse tempo é nosso e cabe-nos a nós fazer escolhas, estabelecer prioridades, pesar na balança o que nos parece urgente no imediato e importante no longo prazo. E sim, teremos de optar por um caminho em detrimento de outro e de abrir mão de algumas coisas.
Maximizar a nossa produtividade não só é importante, como é um dever que temos, não para com os outros, mas para connosco próprios. Mas e bem lá no fundo, todos saberemos como a alcançar, sem apps, livros de auto-ajuda ou palestras inspiracionais. Talvez seja esta a altura de começarmos a pensar que o tempo que nos resta é limitado e que não pode ser comprado ou hipotecado. Está apenas nas nossas mãos.
E, tal como canta Caetano Veloso na sua “Oração ao Tempo”, este é um “Compositor de destinos, Tambor de todos os ritmos”. Bom ano e bons ritmos. Mas com tempo.
Editora Executiva