Crescemos a ouvir falar sobre a importância da igualdade de género. E continuamos a falar sobre o mesmo tema em 2021. Mas a situação global das mulheres e raparigas deteriorou-se. Os dados mais recentes, divulgados pelas organizações internacionais de referência, identificam, entre os vários impactos da Pandemia COVID-19, uma regressão nas metas associadas, em particular, ao ODS 5 “Igualdade de Género”, relativamente às concretizações alcançadas nos últimos anos
POR PAULA VIEGAS
Anujath Vinayal tinha 10 anos quando, para um trabalho escolar em Kerala, Índia, registou as actividades quotidianas da mãe e das mulheres da sua comunidade, dando-lhes forma, cor e expressão. Oferecendo-lhes existência e voz. Transformando a sua ilustração de notável vividez num testemunho autêntico e numa terna homenagem ao trabalho não remunerado das mulheres – reconhecido como “trabalho não produtivo”, apesar de dedicar actividades e cuidados informais que em muito contribuem para o bem-estar de cada pessoa, de cada agregado familiar, para o equilíbrio dentro das comunidades e o bom funcionamento da Sociedade.
O facto de um rapaz tão jovem ter sido capaz de observar e atribuir valor ao que a sociedade, em geral, e os agentes económicos e políticos, em particular, não têm conseguido Ver, é encorajador e reforça a esperança de que as novas gerações vejam a Humanidade com outros olhos, para que, também elas, saibam desenhar um futuro mais equitativo. Porque Anujath[1] viu o “seu” mundo sob uma visão diferente e descobriu que, contrariamente ao que ouvia do pai, a mãe trabalhava todos os dias. Infelizmente, Sindhu, sua mãe, não sobreviveu para acompanhar o reconhecimento internacional, em 2019, da mensagem ilustrada de Anujath.
O valor que não se percebe
O trabalho que se realiza sem rendimento auferido e que acontece, maioritariamente, na esfera privada e na prestação de cuidados informais tem impactos sociais e económicos significativos. E, nesse âmbito, a confederação africana de ONG, Oxfam, estimou[2] em 12,5 mil milhões de horas o trabalho diário não remunerado assegurado por mulheres e raparigas, à escala global, calculando a sua correspondente contribuição financeira em cerca de 9 biliões de euros anuais, montante equivalente ao triplo do valor da indústria tecnológica mundial.
A arte de Anujath – “Minha mãe e as mães do meu bairro” – vive na capa do plano anual de Kerala para o exercício financeiro de 2020-2021 que, curiosamente, contempla a dotação orçamental para o “empowerment” das mulheres. Tema que também preenche a Agenda 2030 das Nações Unidas, seus referenciais e metas associados.
Os padrões de desenvolvimento dominantes persistem sustentados em desigualdades, evidenciando a sua insustentabilidade no que respeita a questões que incluem o crescimento económico, o trabalho digno, a premissa da igualdade e o contributo para se alcançarem as metas urgentes dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). As causas e consequências tácitas da insustentabilidade permanecem, assim, interligadas e enraizadas em paradigmas concentrados numa actividade económica e financeira orientada para lucros a curto prazo.
Por quem os sinos tocaram
Esta semana, no Dia Internacional da Mulher, as Bolsas de Valores de todo o mundo voltaram a tocar os sinos de abertura ou fecho das sessões[3] para reforçar a importância da igualdade de género (ODS 5) e promover os Women’s Empowerment Principles (WEP). Lisboa voltou a ser anfitriã de uma iniciativa que, ao longo dos anos, tem contribuído para uma maior consciencialização quanto aos argumentos a favor da ascensão das mulheres em todas as esferas da vida, em particular na vertente profissional, identificando as oportunidades para o sector privado fazer mais e melhor.
Este objectivo estruturante deve ser debatido sem “telhados de vidro”, assumindo que as fragilidades e fraquezas são potenciais oportunidades que o mercado reconhecerá e valorizará, transformando-as em relações profícuas. O debate público promovido pela Euronext e o Global Compact Network Portugal, no passado 8 de Março, sobre a barreira de vidro [4] – The Glass Ceiling – que sustenta a gestão de topo no sector financeiro, onde a representatividade do sexo feminino é residual, evidenciou a premência de uma evolução que, embora branda, está a acontecer.
A necessidade de eliminar barreiras que impeçam a ascensão profissional das mulheres a cargos de gestão de topo, está directamente relacionada com o primeiro dos sete princípios WEP: “Estabelecer uma liderança corporativa sensível à igualdade de género, ao mais alto nível da gestão”. Este referencial estabelece a ambição maior de se atingir a equidade por via da relação entre o mérito, a devida remuneração e o acesso ao poder. Os subsequentes referenciais WEP complementam e trabalham oportunidades igualitárias em diferentes contextos, evocando o equilíbrio e a salvaguarda da dignidade entre homens e mulheres, apoiando milhares de empresas na integração e reconhecimento de práticas adequadas, programas e acções promotores de uma cultura de equidade e valorização do género, do mérito e da imparcialidade no acesso a gestão de topo.
Crescemos a ouvir falar sobre a importância da igualdade de género. E continuamos a falar sobre o mesmo tema em 2021. Mas a situação global das mulheres e raparigas deteriorou-se. Os dados mais recentes, divulgados pelas organizações internacionais de referência, identificam, entre os vários impactos da Pandemia COVID-19, uma regressão nas metas associadas, em particular, ao ODS 5 “Igualdade de Género”, relativamente às concretizações alcançadas nos últimos anos. As mesmas fontes confirmam, ainda, que a atividade profissional das mulheres, quando comparada com a dos homens, é duplamente mais vulnerável à crise pandémica.
A crise que clama pela evolução
As mulheres são fundamentais para a resiliência das comunidades e aplicam uma parte substancial do seu rendimento na família, mas as estatísticas também mostram que as mulheres são potencialmente mais dependentes da assistência humanitária, devido às barreiras que enfrentam no acesso a oportunidades geradoras de rendimento.
As mulheres representam 39% do emprego global, mas reflectem 54% da perda total de postos de trabalho. E uma razão identificada para este maior impacto prende-se com o aumento significativo da carga de rotinas, actividades e ou cuidados não remunerados que desproporcionadamente assumem. Este indicador está, também, relacionado com a quebra do emprego feminino numa escala superior à média global, comprometendo, adicionalmente, a integração de ambos os sexos em diferentes indústrias.
Impõe-se uma inversão destes efeitos regressivos. Por isso, a ONU classificou esta década como “A década da acção”. Porque é preciso agir para mudar. E mudar, para evoluir. Para valorizar as qualidades e benefícios que as mulheres aportam às empresas, contribuindo para a inovação, produtividade, rendibilidade e sucesso.
Reconhecer o valor e o mérito pela independência financeira, responsabilidade e acesso a carreiras que possibilitem atingir patamares superiores, assegura a sustentabilidade e a reputação da empresa. A título de exemplo, um dos maiores bancos de investimento do mundo – Goldman Sachs – declarou que não tornará públicas as empresas que apresentem conselhos de administração disfuncionais, ou seja, sem representatividade de mulheres. Recuperando a Bolsa de Valores como referência, no PSI20 apenas oito mulheres (10,5%) ocupam cargos executivos nos conselhos de administração das empresas cotadas. Em sentido similar, embora com melhor resultado, a composição média na gestão de topo em Portugal fica aquém dos referenciais mínimos indicados pelo próprio Estado.
Na actual conjuntura, todas as empresas se posicionam para o crescimento pós-pandémico, sendo, por isso, essencial garantir que todos os seus empregados tenham igual capacidade de sucesso, as mesmas oportunidades de conciliação entre a vida profissional, pessoal e familiar, e sejam recompensados pelo seu mérito e empenho.
A pandemia não pode ser a razão que justifica uma regressão dos indicadores da igualdade de género no local de trabalho. Porque a igualdade representa a “opção inteligente” para a competitividade e para a captação de negócio.
Mas para agilizar a mudança, é crítico que as leis e metas nacionais estejam alinhadas com os compromissos internacionais; que o reporte estatístico se mantenha actual; que a vigilância de incumprimentos seja consequente, que os modelos produtivos evoluam e que os actores essenciais e os cidadãos trabalhem em conjunto sob objectivos e valores fundamentais. Que saibamos, enquanto partes interessadas desta ambição 2030, medir e reportar o sucesso alcançado, não só na satisfação geral das necessidades, mas também quanto à resolução das carências das pessoas que servimos e para as quais trabalhamos com o objectivo de assegurar uma maior igualdade e melhor paridade salarial.
A evolução de normas sociais estereotipadas e preconceitos que impeçam raparigas e rapazes de evoluírem na educação, desporto, artes e ciências e de se transformarem nas mulheres e homens poderosos e influentes de Amanhã, ajudam a construir confiança, aumentar a vitalidade e a aprender a estar em equipa, a liderar e a aplicar um atributo fundamental: a Solidariedade.
Para elevarmos a Humanidade, “fazer acontecer” é o nosso desafio comum.
[1]https://www.timesnownews.com/india/kerala/article/kerala-boy-draws-painting-to-show-mothers-daily-routine-artwork-selected-as-gender-budget-document-cover/719316
[2] “Time to care – Unpaid and underpaid care work and the global inequality crisis”, Oxfam International, 2020.
[3] “Ring the Bell for Gender Equality” – Parceria anual entre UN Global Compact, IFC, Sustainable Stock Exchanges (SSE), UN Women, World Federation of Exchanges e Women in ETFs.
[4] “Breaking the Glass Ceiling in the Financial Industry”
Convenor, Women's Empowerment Principles in Portugal