Tristeza, stress, preocupação e raiva. São estes os sentimentos que caracterizam uma boa parte da população mundial, pelo menos de acordo com os resultados publicados no Gallup Global Emotions Report 2022, um estudo anual sobre as emoções colectivas realizado desde 2006 e que inquiriu, em 2021 e inícios de 2022, 127 mil pessoas em 122 países e regiões. As emoções negativas bateram valores recordistas e a tristeza assume-se como o sentimento preponderante para muitos cidadãos do mundo
POR HELENA OLIVEIRA
Num mundo que bateu vários recordes ao longo do ano que passou – como os lucros das empresas, o aumento obsceno da riqueza dos multimilionários, o número ainda mais obsceno de novos pobres, as emissões de CO2, a temperatura dos oceanos, a perda de biodiversidade – e a lista continuaria – existe um outro que não correu por essa internet fora nem despertou o interesse suficiente para que fosse divulgado, mesmo que a todos nós diga respeito. Estamos a falar das emoções negativas que, e de acordo com o habitual estudo anual da Gallup, atingiram um novo nível recordista desde que a famosa firma de consultoria e líder em inquéritos globais começou a analisar esta questão delicada e de difícil mensurabilidade, mais precisamente em 2006.
Tristeza, raiva, stress e preocupação são os lamentáveis e preocupantes sentimentos que a generalidade dos países – com excepções é claro – posiciona nos primeiros lugares quando aos seus cidadãos é perguntado quais as emoções que maior peso tiveram nas suas vidas em 2021 e inícios de 2022.
Claro que é possível afirmar que tais resultados não são surpreendentes porque vivemos sob a ameaça de um vírus desconhecido, que assustou, matou e alterou muitas das nossas convicções, bem como a forma como olhávamos para as nossas próprias vidas. Já em 2022, e como nos é lembrado continuamente a todas as horas do dia, à Covid (para já supostamente esquecida pela maioria) juntou-se a guerra, o êxodo de milhões de refugiados, o aumento explosivo da inflação, novos vírus e, basta pensarmos um pouco para que pareça até “normal” que o Gallup Global Emotions Report 2022 conclua que a tristeza esteja no topo das emoções expressas pela humanidade nos últimos 14/15 meses. O problema é que bem antes de grande parte das perturbações que abalaram o planeta e a nossa vida, o aumento global da infelicidade já existia, estando em crescimento há cerca de uma década. E, com os maus tempos que parecem espreitar o futuro, não existirão, a priori, muitas razões para termos esperança de que o fenómeno se vá inverter.
Ademais, e se almas mais endurecidas poderão não se importar com pessoas infelizes, a verdade é que o deveriam fazer. Um mundo cheio de emoções negativas altera negativamente o comportamento das pessoas, na medida em que as emoções influenciam as nossas decisões, acções e mesmo o nosso conhecimento – às vezes para o melhor, às vezes para o pior. Mas quando os nossos corpos e mentes estão sobrecarregados com as piores emoções, as hipóteses de tomar decisões lastimáveis aumentam, em particular porque as emoções negativas se disseminam mais rapidamente do que um vírus, especialmente quando amplificadas através das redes sociais. E como exemplifica o cientista comportamental do MIT George Ward , as nossas emoções guiam a nossa tomada de decisões também nas urnas eleitorais. Depois de décadas de pesquisa, Ward acredita que consegue prever os resultados das eleições e um aumento do sentimento populista observando e analisando o estado de espírito de uma população.
Tal como refere o relatório – cujas conclusões se baseiam em cerca de 127 mil entrevistas em 122 países e regiões, realizadas em 2021 e nos meses iniciais de 2022 – são muitas as coisas que tornam as pessoas infelizes, mas há cinco factores que contribuem significativamente para o aumento da infelicidade global: a pobreza, a vulnerabilidade das comunidades a vários níveis, a fome, a solidão e a escassez de trabalho digno e motivador. Por exemplo, e de acordo com a Gallup, dois mil milhões de pessoas vivem com rendimentos insuficientes e outros 2 mil milhões sentem-se tão infelizes no local onde vivem, que não o recomendariam a ninguém.
A contribuição da pobreza para o sofrimento global não é particularmente reveladora – no sentido em que, infelizmente, sempre existiu – mas a “notícia” neste caso assenta no inacreditável aumento da fome a nível mundial. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, o declínio da fome que se vinha a sentir no mundo durante as últimas décadas – e que, apesar de não ter ainda condições para cumprir a mais urgente meta dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), representava um bom avanço -, simplesmente terminou.
Em 2014, se 22% das pessoas a nível mundial sofriam moderada ou excessivamente de insegurança alimentar, actualmente e de acordo com a Gallup, a percentagem sobre para os 30%. Como afirmou Qu Dongyu, director executivo do Programa Alimentar Mundial, neste momento a situação assemelha-se a “tirar comida aos famintos para dar aos esfomeados”, com as estimativas a apontarem para que, e graças à convergência da crise pandémica, da invasão da Ucrânia, do aumento da inflação e, consequentemente, do pico nos preços dos alimentos, energia e fertilizantes, serão mais de 263 milhões de pessoas empurradas para a pobreza extrema ao longo deste ano, o que resultará num total de 860 milhões de seres humanos a viver abaixo do seu limiar, com cerca de 1,7 euros por dia.
Por outro lado, e como o VER tem também vindo a alertar continuamente, o mundo está também a lutar contra uma outra pandemia silenciosa – a solidão. Os dados da Gallup concluem que cerca de 330 milhões de adultos passam pelo menos duas semanas sem falar com um único amigo ou membro da família e que um quinto de todos os adultos não tem uma única pessoa com quem possa contar para obter ajuda ou simplesmente para desabafar.
O infortúnio global está igualmente a aumentar devido a um dos aspectos mais básicos da vida – o trabalho. Muitos acreditam que basta um bom salário para satisfazer as necessidades de motivação e bem-estar laboral, mas as respostas dos inquiridos conduzem-nos a uma outra direcção, a qual não deixa de ser surpreendente: as pessoas que se sentem miseráveis no trabalho são estatisticamente mais propensas a experimentar emoções negativas do que alguém que esteja desempregado.
Tendo em conta mais uma vez as investigações do cientista comportamental do MIT acima referido, e como as emoções negativas têm aumentado a nível global, também a agitação civil tem escalado consideravelmente. De acordo com o Índice de Paz Global, motins, greves e manifestações antigovernamentais sofreram um acréscimo de 244% entre 2011 e 2019 e, em 2020, os distúrbios desta mesma natureza aumentaram exponencialmente com cerca de 15 mil protestos estimados a nível global.
Em todo o mundo, as pessoas estão a tentar compreender o aumento da violência, do ódio e da radicalização e continuar-se-á a discutir sobre quais deverão ser as melhores respostas políticas e qual o papel que os meios de comunicação social desempenham para alimentar estas emoções negativas. No entanto e de forma urgente, os decisores políticos devem analisar criteriosamente por que razões (mesmo que muitas delas sejam óbvias) estamos a viver um estado de emoções negativas sem precedentes e concentrarem-se em soluções que as possam pelo menos minimizar. É que a nossa humanidade e bem-estar partilhados dependem desta análise e de acções concretas para que este fenómeno recordista se possa vir a inverter.
Os números do descontentamento
Não é de estranhar que a maioria das pessoas considerasse o ano de 2020 como aquele que ficaria, pelo menos na História recente, como um dos piores anos de sempre. Mas e de acordo com os resultados do Índice de Experiência Positiva e Negativa da Gallup (método utilizado para a avaliação e que questiona os participantes face às experiencias sentidas no dia anterior ao inquérito), a par da nossa própria experiência, seria apenas necessário esperar por 2021 para concluir que, comparativamente ao ano anterior, o mau conseguiria superar as mais pessimistas das expectativas, apesar de as percentagens não serem assim tão diferentes.
Assim e em 2020, cerca de sete em cada 10 pessoas em todo o mundo afirmaram sentir-se descansadas (69%), terem vivido vários momentos de prazer (70%) e terem sorrido ou rido muito (72%). Quase nove em cada 10 sentiram-se tratadas com respeito (86%). Todavia, e ao contrário do que é habito acontecer em anos “normais”, apena 50% responderam terem aprendido ou feito algo de novo.
Todavia, e com a incerteza a fazer-nos companhia todos os dias no segundo ano da pandemia, a par do aumento do número de mortes devido ao vírus face ao ano anterior mesmo depois do aparecimento das vacinas, as pessoas sentiram-se menos descansadas ou mais preocupadas e manifestaram menos momentos de prazer (o que também não é de admirar).
Assim, para aqueles que se sentiram descansados, houve uma queda de três pontos percentuais, a par da quebra de dois pontos para os que afirmaram terem tido momentos de prazer ou divertimento, o que e na verdade, não mostra um quadro assim tão negro. Mas e mesmo assim, a pontuação do índice global em 2021 – 69 – caiu pela primeira vez após vários anos de estabilidade. Adicionalmente, as pontuações do Índice Gallup Global Emotions 2022 em todo o mundo variaram entre um máximo de 85 no Panamá e um mínimo de 32 no Afeganistão, que representa a pontuação mais baixa de sempre desde que a Gallup iniciou esta avaliação, ou seja, nos últimos 16 anos.
Por outro lado, são os países da América Latina que constam da lista de países onde os adultos relatam um maior número de emoções positivas todos os dias, estando esta região bem representada no Índice de Experiência Positiva em 2021. O Panamá, que tem vindo a ser líder neste “ranking” há já vários anos, continua a ser o país com uma pontuação mais elevada (85), seguido de perto, com pontuações na ordem dos 80, pelo Paraguai, El Salvador, Honduras e Nicarágua. Dos países da Europa Ocidental, só a Islândia (7º lugar) e a Dinamarca (10º) fazem parte do top 10 deste índice.
Como já referido, e embora a maioria dos inquiridos ter afirmado que se sentia “descansada” em 2021, a última vez que esta percentagem apresentou valores tão baixos foi no meio da crise económica global em 2008. Assim, e no espaço de um ano, a percentagem de pessoas que disseram sentir-se descansadas caiu de 72% para 69%. Muitos países avançaram numa direcção negativa no ano que passou, incluindo declínios de dois dígitos em vários países de rendimento mais elevado, como os Estados Unidos (queda de 12 pontos), a Finlândia (queda de 11 pontos) e a Itália (queda de 11 pontos). Os libaneses foram os que apresentaram quebras maiores neste item, com um declínio de 17 pontos já em 2020, sendo recordistas mundiais do mesmo.
O Índice de Experiências Negativas continua a subir
Para além do declínio das experiências positivas, o Índice de Experiências Negativas continua a subir e mostra que o mundo se tornou um lugar mais triste, mais preocupado e mais stressado face ao ano anterior, apesar de as pessoas se sentirem ligeiramente menos zangadas.
Tal como no índice positivo, a Gallup perguntou a adultos em 122 países e regiões se tinham experienciado experiências negativas na véspera do inquérito. Quatro em cada 10 inquiridos afirmaram ter tido muitas preocupações (42%) e stress (41%), e pouco mais de três em cada 10 experimentaram muita dor física (31%). Mais de um em cada quatro sentiu tristeza (28%), com 23% a afirmar que sentiram igualmente raiva.
No que respeita aos níveis de stress, 2021 destronou 2020 como o ano mais tenso e depressivo da história recente, com um novo recorde já acima referido, ou seja, com 41% dos adultos em todo o mundo a afirmarem terem sofrido muito desta condição. Ainda assim, o aumento de um ponto nesta “categoria” está longe do aumento generalizado de cinco pontos entre 2019 e 2020. A nível mundial, os resultados variam consideravelmente. O stress reportado variou entre um máximo de 74% no Afeganistão e no Líbano e um mínimo de 12% no Cazaquistão e Uzbequistão, onde os níveis de stress têm sido historicamente baixos, fenómeno que se mantém estável.
Com 2022 chegado à sua segunda metade, não será de estranhar que o relatório sobre as emoções do próximo ano seja ainda mais pessimista do que este. Oxalá nos enganemos.
Editora Executiva