Um século passado sobre a celebração do primeiro dia dedicado às mulheres, a comunidade internacional “ainda ignora amplamente” as desigualdades sociais e de oportunidades entre estas e os homens. No mundo dos negócios, embora persista “uma aparente falta de preocupação” sobre o desenvolvimento da liderança no feminino, a temática “está a ganhar relevância nas agendas dos executivos de topo”. Sinais de mudança de algo que nunca foi novo
POR GABRIELA COSTA

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“Somos iguais? Até a resposta ser SIM, não
podemos deixar de perguntar…”
James Bond (Daniel Craig) apoia o Dia
Internacional da Mulher
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No dia 8 de Março de 2011 o mundo celebrou o centenário do Dia Internacional da Mulher. Cem anos depois de Clara Zetkin (professora, jornalista, política e activista social alemã nascida em 1857 que se tornou uma figura histórica do feminismo) ter tido a ideia de criar esta data, a qual viria a ser aprovada no congresso internacional das mulheres na Internacional Socialista, em 1910, a realidade actual é que “existe maior probabilidade de as mulheres serem pobres e maior probabilidade de serem analfabetas”, segundo a directora sénior da Amnistia Internacional para o Direito Internacional e Política.

O sexo feminino representa hoje dois terços do trabalho global, mas apenas ganha dez por cento do rendimento mundial, denuncia Widney Brown num artigo de opinião publicado recentemente. Finalmente, as mulheres “produzem cerca de oitenta por cento da alimentação nos países em desenvolvimento, mas possuem apenas um por cento da propriedade”, afirma.

Como conclui, “a igualdade das mulheres é vista como lamentável, mas inevitável”, já que a comunidade internacional “ainda ignora amplamente” factos como em muitos países continuar a ser-lhes dito aquilo que podem (ou não) fazer ou estas enfrentarem situações de perseguição ou abuso, caso não tenham em conta os códigos religiosos conservadores de vestuário (o que sucede, por exemplo, na Arábia Saudita, Chechénia e no Irão, ao mesmo tempo que as mulheres muçulmanas na Bélgica, França e em algumas regiões de Espanha poderão em breve estar a violar a lei, se o fizerem), ou caso promovam campanhas para a mudança (em países como a Rússia, as Filipinas, o México e o Nepal várias activistas têm sido assassinadas, enquanto na China, no Bangladesh, na Índia, no Zimbabué e em muitos outros países, são muitas vezes detidas e torturadas).
Há cem anos mais de um milhão de pessoas marcharam pela rua em toda a Europa, naquele que foi o primeiro Dia Internacional da Mulher, apelando à discriminação e a direitos igualitários no trabalho, na política e na sociedade. Depois de ter sido celebrado nos dias 19 de Março e 25 de Março, este dia passou a ser celebrado a 8 de Março, na sequência da greve das operárias russas nesse mesmo dia do ano de 1917, que marcou o início da Revolução Russa.

Em 1975, a Organização das Nações Unidas instituiu oficialmente a data como Dia Internacional das Mulheres. Com este dia, a ONU pretende homenagear as mulheres de todas as nações, que “viram o seu papel na sociedade menorizado e os seus direitos violados por terem nascido mulheres, independentemente da sua nacionalidade, religião, educação ou classe social, e que lutaram por direitos de cidadania, iguais aos direitos reconhecidos aos homens”.

A reflexão sobre o papel social que ao longo da história tem sido reservado aos homens e imposto às mulheres, bem como sobre o papel social que é necessário que as mulheres passem a desempenhar no futuro, “para que a violação e restrição dos seus direitos não continue e para que não se perpetue o desperdício das potencialidades que resultariam da sua participação plena num estado livre e democrático”, tem de ser feita em conjunto por homens e mulheres, defende a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM), que assinalou este dia com uma tertúlia, realizada em Lisboa, sobre os direitos humanos das mulheres, igualdade de género e feminismos em Portugal e no mundo.

A iniciativa contou com a participação de diversas activistas. A PpDM dinamiza, de resto, acções regulares e materiais de sensibilização sobre estas matérias, tendo desenvolvido um folheto informativo a propósito deste centenário do Dia Internacional da Mulher.

Direitos magnos mas pouco conhecidos
A CEDAW, ou Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, foi adoptada pela Assembleia Geral da ONU em Dezembro de 1979. Trinta anos depois, este instrumento internacional fundamental, considerado a Magna Carta dos Direitos Humanos das Mulheres, é ainda pouco conhecido em Portugal.

Mas Portugal é um dos Estados que subscreveram a CEDAW, a qual prevê explicitamente que estes reportem periodicamente junto das Nações Unidas em que medida estão a dar cumprimento às disposições ali contidas. Neste âmbito, no final de 2008, em Genebra, o Comité CEDAW das Nações Unidas analisou o comportamento de Portugal nesta matéria, tendo para tal ouvido a delegação do Estado Português, composta por dezanove elementos, e a sociedade civil organizada, representada pela Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, que enviou a Genebra duas activistas.

Ouvidas as duas partes, o Comité formulou um conjunto de recomendações ao Estado Português, compilados na publicação CEDAW: O Estado da Arte em Portugal. Algumas, nomeadamente as que se relacionam com o mercado de trabalho e o mainstreaming da igualdade de género, foram particularmente veementes e obrigaram Portugal a dar-lhes resposta no decurso de 2010. O documento inclui também um Relatório Alternativo apresentado pela PpDM.

A CEDAW fornece um conjunto de directrizes que permitem orientar o trabalho de todas as pessoas e organizações que intervêm em defesa dos Direitos Humanos das Mulheres. Com esta Convenção, a ONU procura a adopção destes mesmos direitos por parte de todas as pessoas que, nas mais variadas esferas de actividade, pugnam por uma sociedade mais democrática, igualitária e participativa.

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Liderança sem estratégia
Mas na sociedade actual, a maioria das organizações não possui programas que assegurem o acesso de mulheres com talento a cargos de liderança. Um estudo da Mercer demonstra que, entre 450 empresas europeias, a maioria (67 por cento) não tem uma estratégia ou uma filosofia claramente definidas para o desenvolvimento de mulheres em cargos de liderança, e falha na identificação de potencial, na diversidade de género na selecção e recrutamento, e nas experiências de desenvolvimento para apoiar a evolução profissional de mulheres com talento de forma a alcançarem posições de liderança.

De acordo com o “Women’s Leadership Development Survey”, cerca de 41 por cento das organizações inquiridas não disponibiliza programas orientados para as necessidades de desenvolvimento de líderes femininas e apenas 21 por cento das organizações admitem ter implementado programas neste sentido, como regimes de horários flexíveis, mentoring e coaching. Outros onze por cento referem que estão a planear incluir alguns destes programas no futuro (uma percentagem que está acima da média mundial, na ordem dos seis por cento).

E em que medida pode o ambiente organizacional influenciar o desenvolvimento das mulheres? Para 48 por cento das empresas, este tem uma importância relativa, enquanto catorze por cento afirmam ter uma grande importância e 25 por cento confirma que a influência é reduzida. Já onze por cento dos inquiridos consideram que o ambiente organizacional não apoia o desenvolvimento das mulheres.

Embora persista “uma aparente falta de preocupação em torno dos aspectos relacionados com o desenvolvimento da liderança no feminino, há sinais de mudança”, defende, ainda assim, Marta Sacramento, Principal da Mercer em Portugal. A liderança no feminino é um tema que “está a ser cada vez mais discutido no mundo dos negócios e está a ganhar relevância nas agendas dos Executivos de topo”, acredita, adiantando: “muitos países estão inclusivamente a ponderar estabelecer requisitos para a representação de mulheres nas administrações, como parte dos seus objectivos de diversidade de género.

A flexibilidade no horário de trabalho, o mentoring, o coaching e a diversidade de género no recrutamento são os principais programas definidos especificamente para as necessidades das mulheres com posições de liderança implementados. Estes foram também os programas referidos como sendo os mais eficazes no desenvolvimento da liderança no feminino. O survey da Mercer demonstra, contudo, “alguma incerteza por parte das empresas sobre o que é mais adequado e eficaz no que respeita ao desenvolvimento da liderança no feminino”, conclui Marta Sacramento. As empresas colocam muitas vezes o foco na flexibilidade de horários de trabalho, quando decidem apoiar as mulheres, o que “pode ser um bom ponto de partida, mas não é a solução final”.

Em relação aos factores que mais impedem as mulheres de evoluir para uma carreira de liderança, os inquiridos apontam o equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho (52 por cento), a falta de apoio das chefias (43 por cento) e alguma relutância à mobilidade (27 por cento).

Em resumo, o estudo Women’s Leadership Development Survey aponta para uma percepção “de falta de confiança das mulheres como um dos principais obstáculos à sua promoção para cargos de chefia. Isso pode dever-se, até certo ponto, à tendência europeia (e ultrapassada) de que os cargos de chefia devem ser ocupados por homens”. Problemático é que, “com a contínua falta de apoio dos executivos de topo”, esta situação tenda a manter-se. A Mercer conclui também, a partir dos dados apurados, que os homens “simplesmente replicam a sua própria experiência, formando mais líderes como eles próprios para cargos de gestão”. Para que as organizações rompam com este ciclo e criem “um perfil de liderança que reflicta verdadeiramente o seu contexto empresarial actual, devem investir na identificação e desenvolvimento de mulheres com elevado potencial para cargos de liderança”, alerta a consultora.

Culpas no feminino
Um outro estudo, realizado pela Universidade de Toronto e recentemente publicado no Journal of Health and Social Behaviour, conclui que as mulheres que levam trabalho para casa lidam mal com a situação e sentem-se culpadas por não conseguirem conjugar a vida profissional com a vida familiar.

A partir de dados de um inquérito nacional feito a trabalhadores americanos, os investigadores canadianos estudaram a frequência com que os participantes se mantinham a trabalhar fora do escritório, através de telefone, e-mail ou mensagens escritas. Avaliando os efeitos desta realidade, a equipa descobriu que as mulheres que mais trabalho levavam para fora do escritório reportavam níveis de mal-estar mais elevados do que os homens, que não se revelavam tão afectados.

Pôde assim concluir-se que apesar de as tecnologias de informação, que permitem esta ligação permanente às responsabilidades do trabalho, serem predominantemente encaradas como uma solução para a conjugação da vida pessoal e profissional, representam um custo para a saúde dos trabalhadores, ainda que com efeitos diferentes entre homens e mulheres.

Segundo o mesmo estudo, as mulheres não manifestam um mal-estar maior do que os homens face a esta situação por dificuldades de conciliar os constantes contactos de trabalho com as suas responsabilidades familiares, mas antes porque se sentem mais culpadas por estarem sempre ligadas ao trabalho. “Esta culpa parece ser o centro do mal-estar”, de acordo com as palavras de Paul Glavin, responsável pelo estudo, citado pelo jornal El Mundo.

De resto, homens e mulheres têm muitas vezes expectativas diferentes sobre os limites que separam a vida familiar do trabalho, o que influencia as reacções emocionais, acrescenta o co-autor do estudo, Scott Schieman, concluindo: “a culpa parece ter um papel central na diferença entre mulheres e homens no que diz respeito a experiências associadas ao trabalho e à família. Ao mesmo tempo que as mulheres vão ganhando um papel mais preponderante a nível económico no agregado familiar, as fortes normas culturais continuam a pesar naquilo que são as responsabilidades familiares. Estas forças podem conduzir a que algumas mulheres se questionem ou se avaliem de forma negativa”.

Europeus pela igualdade de género
O Centro Regional de Informação das Nações Unidas lançou, no dia 8 de Março, um concurso de anúncios apelando à igualdade de género e ao fim de todas as formas de violência contra as mulheres e as raparigas, em parceria com a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Género e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres) e com gabinetes de informação da ONU de toda a Europa.O concurso, de âmbito europeu, faz parte da Campanha UNiTE promovida pelo Secretário-Geral das Nações Unidas para acabar com a violência contra as mulheres e convida europeus de 48 países, profissionais e não profissionais, a criarem um anúncio dizendo “Não à violência contra as mulheres”.

O vencedor do primeiro prémio, no valor de cinco mil euros, será conhecido a 25 de Novembro de 2011, Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres. As candidaturas para este concurso estão abertas até 31 de Maio
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Desmascarar a violência sobre as Mulheres
A Violência Sobre as Mulheres é uma das mais generalizadas e persistentes violações de Direitos Humanos, manifestando-se nos mais diversos contextos: na família, na comunidade, nas instituições estatais, em situações de custódia e em situações de conflito e pós-conflito armado.

Em 2004, a Amnistia Internacional (AI) lançou uma campanha global dedicada à violência sobre as mulheres, focando a sua investigação e acção em diversas contornos que esta assume: a violência na família, a violência sexual, a violência durante e após situações de conflito, práticas nocivas e o tráfico de seres humanos.

Apesar de a campanha global ter terminado em 2010, a AI continua a  reunir esforços para, mais do que chamar a atenção para a inacção dos Estados, sublinhar o papel que todos temos a desempenhar para desmascarar a violência sobre as mulheres, especialmente aquela que nos é mais próxima – a denúncia. Para assinalar o Dia Internacional da Mulher, a AI escolheu dar destaque, a nível internacional, aos abusos sexuais e violação de raparigas na Nicarágua. Saiba aqui como pode ajudar a por fim a estas práticas.

Em Portugal, um dos maiores reflexos desta violência acontece no contexto íntimo da família. A violência doméstica é um crime público, ou seja, é passível de ser exposto por qualquer pessoa que tenha conhecimento da sua ocorrência. No entanto, e apesar da legislação favorável, existe ainda muita relutância em denunciar casos de violência doméstica.

O medo, o isolamento e a vergonha continuam a impedir que as mulheres afectadas relatem as situações de violência vividas. A acção da AI surge assim como forma de sensibilização para um problema que é frequentemente escondido e para incentivar a denúncia e a partilha de situações de violência doméstica.

Principais formas de Violência contra a Mulheres em Portugal
VIOLÊNCIA NA FAMÍLIA
A violência no seio familiar assume variadas formas, desde a agressão física à agressão psicológica, como a intimidação e a humilhação, incluindo vários comportamentos e atitudes tais como isolar a pessoa da sua família e amigos, controlar e restringir os seus movimentos e o acesso à informação ou auxílio.

Sendo uma das formas de violência sobre as mulheres com maior relevância a nível nacional, a AI Portugal realizou diversas actividades nas quais se destacam a edição do relatório ‘Mulheres (In)visíveis‛ (2006), várias campanhas e acções de sensibilização pública sobre o tema da violência e discriminação laboral, e a emissão de pareceres jurídicos sobre leis da violência doméstica.

VIOLÊNCIA SEXUAL
A violação é a forma mais violenta de violência sexual. Está também associada à gravidez não desejada e a doenças sexualmente transmissíveis, como o HIV/SIDA. Contudo, poucas vezes é denunciada devido ao estigma que lhe está associado, e muito menos vezes é punida.

Com alguma surpresa, a AI verificou que no nosso país, em 2007, houve apenas quatro pessoas a apresentar queixa às autoridades relativamente a crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, sendo que 87 por cento destas pessoas eram do sexo feminino. Contudo, a grande maioria dos crimes são de assédio ou outras formas menores de violência sexual, e não de violação, o que reforça a noção de existir necessidade de uma maior sensibilização pública para a questão da não discriminação com base no género.

TRÁFICO DE SERES HUMANOS
Na Europa mais de oitenta por cento das vítimas de tráfico humano são mulheres e crianças, das quais cerca de setenta por cento são forçadas a prestar serviços de natureza sexual, segundo o Conselho da Europa. Estudos internacionais apontam Portugal como país de destino de vítimas de tráfico, sendo que a maioria das vítimas conhecidas são originárias do Brasil e utilizadas para exploração sexual.

A AI tem vindo a desenvolver campanhas sobre o tráfico de seres humanos, através das quais pretende sensibilizar o público, mas também pressionar as autoridades competentes a proteger e procurar dar resposta às violações dos direitos humanos das vítimas de tráfico.

PRÁTICAS NOCIVAS
A maioria das culturas contêm formas de violência sobre as mulheres quase invisíveis, por serem consideradas ‘normais’. A mutilação genital feminina, os casamentos forçados e os crimes de honra são algumas das práticas ‘consentidas‛ pelas comunidades.

A prática da Mutilação Genital Feminina (MGF) é uma forma de violência com alguma incidência em Portugal, devido à presença de comunidades imigrantes dos países que a exercem. Neste âmbito, a AI tem desenvolvido algumas actividades, incluindo o lançamento do Estudo sobre Mutilação Genital Feminina em Portugal (Fevereiro 2009), emissão de pareceres jurídicos e a integração na Campanha Europeia “Fim à MGF”, que tem como objectivo a elaboração e adopção de uma estratégia europeia para o fim definitivo da prática de MGF, procurando também garantir a existência de programas de apoio para mulheres e raparigas que tenham sido vítimas de MGF ou que estejam em risco de serem mutiladas.

Fonte: AI Portugal

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Jornalista