POR HELENA OLIVEIRA
O que sentem os europeus relativamente às mudanças trazidas pela revolução tecnológica? No geral, sentem-se confusos, preocupado e ansiosos sobre a forma como a tecnologia irá afectar as suas vidas, os seus empregos e os seus sistemas políticos. Mas não só.
O Center for the Governance of Change (CGC), a funcionar na Universidade espanhola IE, tem como objectivo estudar e investigar as implicações políticas, económicas e societais da actual revolução tecnológica e os avanços e soluções para ultrapassar os seus efeitos indesejáveis.
Depois de, nos últimos dois anos, ter lançado vários programas de investigação e realizado um conjunto de eventos sobre inteligência artificial, automação, dados e criptomoedas, divulgou o seu primeiro relatório de consulta pública sobre o que sentem e temem os europeus relativamente ao mar de mudança que as tecnologias trazem e trarão aos vários domínios das suas vidas. O inquérito explora de que forma os cidadãos de oito países europeus – França, Alemanha, Irlanda, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Reino Unido – olham para as transformações que se estão a desenrolar nas suas cidades e locais de emprego e o que pensam sobre a forma como os seus governos devem lidar com as mesmas. E, no geral, as conclusões estão em linha com a intuição partilhada pelos investigadores responsáveis pelo estudo: a de que a Quarta Revolução Industrial está a produzir um sentimento crescente de insegurança e incerteza entre os cidadãos europeus.
[quote_center]A Quarta Revolução Industrial está a produzir um sentimento crescente de insegurança e incerteza entre os cidadãos europeus[/quote_center]
O inquérito, realizado a 2576 adultos entre os 18 e os 99 anos, revelou 12 grandes preocupações sobre o presente e futuro tecnológico que tem e terá impacto em todas as esferas da nossa vida. E muitas delas apresentam-se como surpreendentes e distantes da percepção optimista que estamos habituados a divulgar no que à revolução tecnológica diz respeito.
Um em cada quatro europeus confiaria mais numa máquina do que num político de carne e osso para tomar decisões sérias sobre o seu país
Se os “seguidores” de Silicon Valley celebram continuamente os avanços na inteligência artificial e na automação como um fenómeno que irá estimular o crescimento económico e melhorar a vida das pessoas, essa mesma narrativa não é encarada com o mesmo optimismo na Europa, onde 56% dos cidadãos expressam o seu desânimo face a um mundo no qual as máquinas irão ser, a seu ver, responsáveis pela maioria das tarefas até então realizadas pelos humanos. Este nível de preocupação, o qual aumenta significativamente quanto mais velhos são os entrevistados – 60% para a faixa etária entre os 50 e os 64 anos e 69% para os maiores de 65 anos – é quase o dobro face aos 30% de inquiridos que se sentem “entusiasmados” com os avanços tecnológicos, e com este estado de desconfiança e temor a ter implicações nas empresas que estão já a trabalhar para automatizar os seus processos de produção.
Esta apreensão torna-se ainda mais visível quando 67% dos europeus auscultados consideram que a governança das novas tecnologias é, a par das alterações climáticas, o maior desafio que a União Europeia enfrenta na actualidade, com os níveis de desconfiança a serem ainda mais visíveis quando se conclui que quase três quartos dos mesmos entrevistados (70%), e de todas as idades, acreditam que se as novas tecnologias não forem controladas de forma apropriada, irão causar mais mal do que bem à sociedade ao longo da próxima década.
Todavia, e pior do que a desconfiança face ao futuro digital, é a descrença nos políticos, quando, no mesmo inquérito, um em cada quatro europeus confessa que deixaria, de alguma forma ou totalmente, ser uma entidade dotada com inteligência artificial a tomar decisões sérias sobre a gestão do seu país, em detrimento de políticos com “inteligência humana”. O resultado é ainda mais pronunciado em países como a Holanda, a Alemanha e o Reino Unido, com um terço dos respondentes a afirmar o mesmo. A interpretação destes dados não deixa margem para dúvidas: a desconfiança dos cidadãos face aos seus políticos e respectivos governos está em crescendo, o que coloca em causa também o modelo europeu da democracia representativa.
[quote_center]São 70% os inquiridos que acreditam que se as novas tecnologias não forem controladas de forma apropriada, irão causar mais mal do que bem à sociedade ao longo da próxima década[/quote_center]
Adicionalmente, e ao contrário do que seria expectável, factores como o género, o nível de educação ou a ideologia não parecem ter qualquer influência neste depositar de confiança nas máquinas, em detrimento de políticos de carne e osso. Por exemplo, as pessoas com níveis de educação superior mostraram ter a mesma inclinação – ou ainda maior – para deixar as decisões políticas nas “mãos” da inteligência artificial, face aos que nunca frequentaram a universidade. A falta de confiança nas elites políticas revelada por estas percentagens está em linha com uma ampla gama de estudos e questionários realizado ao longo dos últimos anos, mas acentua o paradoxo em que vivemos: as pessoas estão desiludidas com os seus governos mas, e em simultâneo – e sem ainda haver inteligência artificial que resolva o problema – pedem-lhes que lidem com os efeitos societais e económicos negativos que as tecnologias emergentes possam vir a causar.
Apesar de parecer surpreendente, tendo em conta a adopção massiva das redes sociais, os europeus não estão só preocupados com o impacto das tecnologias nas suas vidas profissionais, mas também no que estas podem causar às suas vidas sociais, com dois terços dos inquiridos a demonstrarem preocupação com o facto de as pessoas passarem a socializar mais online do que pessoalmente no futuro. Ou seja, se a maioria dos debates e temores demonstrados se concentram nos efeitos materiais da substituição dos humanos pelas máquinas no que ao trabalho diz respeito e nas tensões económicas que tal irá causar, os cidadãos conferem um peso similar aos seus efeitos negativos em termos sociais.
Cidadãos esperam legislação e impostos que limitem a automação, mesmo que isso signifique colocar um ponto final no progresso
A maioria dos cidadãos inquiridos é a favor da intervenção por parte dos governos, através da introdução de medidas políticas eficazes, para que restrinjam a automação que as empresas estão ou estarão aptas a introduzir nos seus negócios. Apesar da medidas menos intervencionistas como impostos adicionais para empresas que eliminem postos de trabalho por causa da automação (67%) ou o providenciar de apoios extra para aqueles que forem afectados pela perda dos seus empregos (71%) tenham recebido um forte apoio, são as políticas mais rigorosas que recebem o maior nível de apoio, com 72% dos indivíduos auscultados a concordarem que os governos devem estabelecer limites ao número de postos de trabalho que possam vir a ser substituídos por máquinas e com 74% a declararem que as empresas só deveriam substituir funções que sejam perigosas ou que provoquem danos à saúde. Também nesta questão em particular não existem variações em termos de ideologia, com apenas uma excepção à regra: o apoio para compensações a trabalhadores “desalojados”. Enquanto os entrevistados mais à esquerda apoiam fortemente este tipo de acção (84%), a percentagem desce para 68% para os que se posicionam mais à direita. E, mais uma vez, são os que têm níveis mais elevados de estudos que se sentem mais inclinados a concordar com a necessidade destas medidas.
Tal como o que acontece em termos educativos e ideológicos, as respostas a estas questões não diferem significativamente de país para país, apesar de existirem algumas variações. Os níveis de concordância com todas as medidas acima mencionadas são maiores em Espanha, Portugal e Itália. Aliás, o nosso país é aquele que regista as percentagens mais elevadas em três das quatro “medidas possíveis” de virem a ser implementadas. Em França (82%), Itália (84%), Portugal (86%) e Holanda (74%), a política com maior nível de apoio é a que visa restringir a automação a actividades perigosas e danosas para a saúde. Por seu turno, a política mais favorecida na Alemanha (83%) e em Espanha (86%) é a que tem como objectivo limitar o número de postos de trabalho a serem automatizados e a que é, em simultâneo, menos votada em Portugal (68%), com o nosso país a ser aquele que mais defende o apoio a trabalhadores deslocados por causa das máquinas, com 92%. O apoio a impostos especiais é, por seu turno, o que recebe os níveis mais variados de concordância entre os países europeus auscultados: Espanha (83%) e Portugal (82%) apresentam valores elevados de apoio a esta medida, comparativamente ao menor apoio demonstrado pelos italianos (64%), ingleses (69%) e alemães (70%).
[quote_center]Para 72% dos indivíduos auscultados, os governos devem estabelecer limites ao número de postos de trabalho que possam vir a ser substituídos por máquinas[/quote_center]
Uma outra conclusão particularmente interessante e surpreendente é a inversão das normas há muito vigentes contra a censura nos media, na medida em que os cidadãos europeus apoiam de forma significativa o banir de “conteúdos políticos ou ideológicos” das redes sociais. Em média, 53% dos europeus apoia esta “inibição”, sendo os valores significativos em quase todos os países, apesar de distintos. Os países que apresentam as percentagens mais baixas no que a este tema diz respeito são a Espanha (41%) e Portugal (48%), com o valor a subir para 63% dos alemães e para 64% dos holandeses, e com a Irlanda, o Reino Unido a comandarem este pelotão em particular, com 65%. França (55%) e Itália (56%) são os países que apresentam os níveis mais intermédios de apoio.
Quatro em cada 10 europeus acreditam que a empresa para onde trabalham pode desaparecer nos próximos 10 anos, caso não sejam implementadas medidas significativas
Para 40% dos europeus inquiridos, a possibilidade de as suas empresas desaparecerem na década que se avizinha é uma forte probabilidade, a não ser que as mesmas apliquem grandes e céleres alterações no que respeita aos seus sistemas produtivos e modelos de negócio. Esta noção de fragilidade é particularmente acentuada entre os millennials entre os 18 e os 34 anos (54%), os quais parecem ter uma visão substancialmente negativa face ao futuro das empresas onde trabalham, o que contrasta com os empregados mais seniores: apenas 36% daqueles que se encontram na faixa etária entre os 50 e os 64 anos demonstram essa mesma preocupação, com uma percentagem ainda mais reduzida – 22% – entre os que têm mais de 65 anos a questionar a continuidade dos seus locais de trabalho.
[quote_center]Portugal é o país que mais defende (92%) o apoio social dos trabalhadores “desalojados” por causa das máquinas[/quote_center]
Preocupante e funcionando como uma enorme chamada de atenção para os governos e para as suas políticas de educação é facto de 60% dos licenciados europeus inquiridos afirmarem que as universidades onde estudaram os preparou mal, ou muito mal, para a transformação tecnológica que se avizinha, apesar de esta ser a questão que apresenta maiores diferenças em termos etários. Os que se licenciaram mais recentemente, com idades compreendidas entre os 18 e os 34 anos, afirmam que a universidade os preparou suficientemente bem, com apenas 37% a declarar o contrário, e com as percentagens a subir proporcionalmente para os respondentes mais velhos, chegando aos 68% de inquiridos entre os 50 e os 64 anos a afirmar o quão mal preparados se sentem para o futuro tecnológico. Sem surpreender, este fosso de competências percepcionado pelos respondentes mais velhos é a prova da divisão digital existente no local de trabalho, onde estes últimos se sentem incapazes de beneficiar das oportunidades oferecidas pela tecnologia. Adicionalmente, é mais um sinal de que será – ou já é – urgente a existência de programas de requalificação sistemática ao longo da vida para estes trabalhadores, sendo que as transformações tecnológicas em constante aceleração significarão também que os mais jovens que se sentem preparados na actualidade irão precisar de formação adicional no futuro.
Editora Executiva