À medida que as tensões geopolíticas aumentam, a incerteza económica se aprofunda e a disrupção tecnológica acelera, os líderes mundiais reuniram-se em Davos numa encruzilhada crítica. Outrora um símbolo da cooperação global, o Fórum Económico Mundial debate agora um mundo cada vez mais definido pela fragmentação – política, económica e social. Com o enfraquecimento do multilateralismo e a erosão da confiança nas instituições, poderão os líderes mundiais, os executivos e os decisores políticos encontrar um terreno comum para enfrentar os desafios prementes do nosso tempo? Ou será que a cimeira deste ano serviu apenas para o aprofundamento das divisões que moldam o futuro da ordem global?
POR HELENA OLIVEIRA

Como habitualmente, a Reunião Anual do Fórum Económico Mundial em Davos em 2025 reuniu, entre 20 e 24 de Janeiro, líderes mundiais, executivos de empresas, académicos e representantes da sociedade civil para discutir as questões globais mais prementes sob o tema “Colaboração para a Era Inteligente”. Os debates centraram-se na forma como as nações, as indústrias e as instituições se devem adaptar às transformações tecnológicas, económicas, ambientais e geopolíticas num mundo profundamente dividido. Segue-se uma resenha dos principais temas debatidos e das principais mensagens de alerta partilhadas:

  1. A ascensão da Inteligência Artificial e o futuro do trabalho

Na cimeira de Davos 2025, um dos temas mais debatidos foi, sem surpresa, a rápida aceleração da Inteligência Artificial (IA) e as suas implicações de longo alcance para as empresas, economias e sociedades. Sob o lema “Colaboração para a Era Inteligente”, os líderes mundiais e os executivos tecnológicos exploraram os riscos, as oportunidades e os dilemas éticos colocados pela evolução sem precedentes da IA.

A adopção generalizada da IA generativa, da automação e da aprendizagem automática está a remodelar as indústrias a uma velocidade espantosa, conduzindo tanto a oportunidades económicas como a desafios disruptivos.

Prevê-se que a IA aumente o PIB global em até 7 biliões de dólares até 2030, à medida que as empresas adoptam a automação alimentada por IA, a análise preditiva e os sistemas inteligentes de tomada de decisões.

Por seu turno, esta poderosa tecnologia está a impulsionar a inovação nos cuidados de saúde, finanças, fabrico e logística, criando novos mercados e modelos de negócio, com as startups e os unicórnios a emergirem rapidamente, desafiando as indústrias tradicionais.

Como foi amplamente discutido, o impacto da IA no emprego continua a ser uma preocupação fundamental. Um relatório do Fórum Económico Mundial (sobre o qual o VER escreveu) prevê que 85 milhões de empregos poderão ser deslocados pela automação até 2030, ao mesmo tempo que 97 milhões de empregos relacionados com a IA poderão surgir. Todavia, é urgente que as empresas requalifiquem e melhorem as competências da sua força de trabalho, uma vez que a fluência em IA se está a tornar tão essencial como a literacia digital na economia moderna.

Os governos e as organizações deverão apostar assim no lançamento de programas de reconversão profissional, assegurando que os trabalhadores estejam equipados para funções “aumentadas” pela IA, em vez de serem totalmente substituídos por ela.

No que respeita a alguns dos seus principais riscos, as ameaças à cibersegurança e à desinformação foram alguns dos mais falados. O aumento da tecnologia deepfake e da desinformação gerada por IA está a ameaçar as democracias, os mercados financeiros e a estabilidade social. Adicionalmente, a decisão da Meta de acabar com a verificação de factos (sobre a qual o VER escreveu) foi fortemente criticada em Davos, uma vez que se espera que as notícias falsas geradas por IA aumentem perigosa e consideravelmente. Uma das novidades anunciada em Davos foi o facto de os governos estarem a considerar sistemas de verificação de IA, semelhantes a marcas de água digitais, para autenticar conteúdos reais.  Os ciberataques impulsionados pela IA também estão a aumentar, invadindo e ameaçando instituições financeiras, empresas e infra-estruturas críticas.

A mensagem principal: a IA já não é uma tecnologia emergente, mas sim uma força transformadora que está a remodelar as indústrias, a governação e o próprio tecido social.

  1. Geopolítica e segurança global num mundo instável: uma nova era de incerteza

Um dos outros temas mais prementes analisado e discutido em Davos foi a erosão da cooperação multilateral e a crescente probabilidade do exacerbar de conflitos geopolíticos, da dissociação económica e das ameaças à segurança. Os debates reflectiram um consenso crescente de que a ordem global pós-Guerra Fria está a fracturar-se e que as empresas, os governos e as instituições internacionais devem preparar-se para uma era de risco geopolítico acrescido.

Durante décadas, instituições como as Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial do Comércio (OMC), a NATO e o G20 desempenharam um papel crucial na manutenção da estabilidade mundial, na resolução de litígios e na promoção da cooperação económica. Contudo, nos últimos anos, tem-se vindo a assistir a um declínio crescente da sua eficácia, uma vez que as grandes potências dão prioridade aos interesses nacionais em detrimento da colaboração global.

Como principais ameaças foram eleitas as seguintes: a ascensão de alianças regionais para assegurar interesses económicos e de segurança ; a dissociação económica e tecnológica; um mundo onde as tensões entre os EUA e a China ditam as cadeias de abastecimento, o acesso ao mercado e as estratégias de investimento; as guerras, os conflitos e as ameaças à segurança num ambiente crescentemente polarizado; a volatilidade no Médio Oriente e os riscos de disrupção nas cadeias de abastecimento, entre outras. Todas estas ameaças identificadas constituem sinais de alerta de que os riscos geopolíticos e de segurança vão definir a próxima década e de que as empresas terão de se adaptar. Ou, em suma, a questão central levantada em Davos não foi a de saber se o mundo se está a tornar mais instável, mas sim como é que as empresas, os governos e os indivíduos irão enfrentar a turbulência que se avizinha. Para o Fórum Económico Mundial, nesta nova era, aqueles que se conseguirem adaptar rapidamente irão prosperar. Os que ignorarem as realidades geopolíticas arriscam-se a ficar para trás.

A mensagem principal: a instabilidade global já não é uma excepção. É o novo normal.

  1. Alterações climáticas e sustentabilidade: a transição verde sob pressão

Apesar dos complexos desafios económicos e políticos, as alterações climáticas marcaram presença obrigatória na reunião de líderes em Davos, constituindo igualmente um dos principais temas da sua agenda, mas com uma mudança notória de tom. Enquanto as cimeiras anteriores se centraram frequentemente em objectivos ambiciosos e compromissos empresariais, as discussões deste ano foram mais pragmáticas, urgentes e profundamente interligadas com as realidades geopolíticas e económicas. Os principais debates giraram em torno do papel dos combustíveis fósseis na economia global, com a ONU a sublinhar a necessidade de reduzir a dependência do petróleo, do carvão e do gás. Na verdade, a necessidade de reduzir esta dependência nunca foi tão urgente, especialmente num momento em que os impactos das alterações climáticas se tornam mais evidentes e a transição energética enfrenta desafios políticos. No entanto, a decisão de Donald Trump de retirar novamente os Estados Unidos do Acordo de Paris e promover uma expansão agressiva da exploração de combustíveis fósseis — enfatizada no seu discurso em Davos 2025, onde defendeu o “drill, baby, drill” como estratégia para reforçar a independência energética dos EUA — representa um grande obstáculo para os esforços globais de descarbonização. Esta postura não só mina o compromisso internacional no que respeita à redução das emissões, mas também cria incertezas para empresas e governos que já investem em energias renováveis e em novas tecnologias sustentáveis. Num cenário de crescentes tensões geopolíticas e de instabilidade nos mercados energéticos, insistir num modelo baseado em combustíveis fósseis pode comprometer a competitividade económica a longo prazo, enquanto o mundo deve caminhar, inevitavelmente, para uma matriz energética mais limpa e resiliente.

Desta forma e com a Europa a manter a sua posição de líder no domínio da sustentabilidade, com fortes compromissos em matéria de políticas de emissões líquidas nulas, tarifação do carbono e financiamento ecológico, mas aparentemente cada vez mais sozinha, temas como a urgência da aceleração da adopção de energias renováveis, incluindo as tecnologias solar, eólica e de hidrogénio, a importância crescente das iniciativas ESG (Environmental, Social, Governance) das empresas e o papel do preço do carbono e do financiamento verde no incentivo a práticas empresariais sustentáveis estiveram igualmente em destaque.

Um dos principais pontos de discórdia foi o equilíbrio entre o crescimento económico e a responsabilidade ambiental. Muitos países em desenvolvimento argumentaram que precisam de apoio financeiro das nações mais ricas para fazer a transição para fontes de energia mais ecológicas sem sacrificar o desenvolvimento económico.

Mas um sentimento geral parece ter reunido os participantes: a transição verde já não é apenas um imperativo moral ou ambiental – é um desafio geopolítico, económico e de segurança. No entanto, o aumento dos custos, a resistência política e a incerteza económica estão a criar obstáculos que ameaçam o seu progresso.

As mensagens principais: a acção climática é cada vez mais moldada pela geopolítica, com uma resposta global mais fragmentada do que unificada e a transição ecológica está a acontecer, mas será mais lenta, mais complexa e mais contestada politicamente do que muitos esperavam

4. Crescimento económico, desigualdade e resiliência

Perante as incertezas económicas globais, assistiram-se a debates acesos sobre os modelos de crescimento económico e a forma de construir economias resilientes. No geral, as discussões abrangeram o futuro da globalização numa era de crescente proteccionismo, o papel dos bancos centrais na gestão da inflação e das taxas de juro, o impacto da desigualdade da riqueza – com apelos a uma tributação mais justa e a uma maior redistribuição dos rendimentos – e as tendências do trabalho, com as empresas a navegarem em políticas de trabalho híbridas que, aos poucos, começam a ser mais contestadas.  

No geral e embora algumas regiões dêem sinais de recuperação das perturbações dos últimos anos, os desafios persistentes – crescimento lento, aumento da desigualdade, pressões inflacionistas, crises da dívida e instabilidade geopolítica – continuam a criar um cenário económico incerto.

O agravamento da desigualdade económica nos últimos anos esteve também em debate, com o aumento do custo de vida, a estagnação salarial e a concentração da riqueza a empurrarem milhões de pessoas para a precariedade económica, sublinhando-se a necessidade urgente de políticas de crescimento inclusivo para evitar a agitação social e a instabilidade política.

Por outro lado, e embora a IA esteja a aumentar a produtividade e a eficiência em muitos sectores, a deslocação de postos de trabalho é uma preocupação crescente, especialmente para os trabalhadores pouco qualificados. Ou seja, os empregos bem remunerados estão concentrados nos sectores tecnológico e financeiro, aumentando o fosso salarial entre os profissionais com formação superior e os que trabalham nos sectores tradicionais.

Em Davos, foram sugeridas algumas medidas para fazer frente à crescente desigualdade: o aumento de políticas salariais mais fortes, com um apelo especial aos governos e às empresas no sentido de garantirem salários justos e protecções sociais para os trabalhadores mais vulneráveis; programas de requalificação da IA, com as empresas a investir na requalificação da mão-de-obra para ajudar os trabalhadores na transição para a nova economia, bem como reformas fiscais progressivas, com alguns líderes em Davos a propor impostos mais elevados sobre a riqueza e sobre os gigantes digitais para financiar programas sociais.

A mensagem principal: Se a desigualdade não for abordada, o descontentamento económico alimentará a instabilidade política e perturbará o crescimento global

5. Confiança e liderança: reconstruir a confiança nas instituições

Por último, um outro tema que dominou os debates em Davos foi a crise global da confiança: desde os governos e as empresas até aos meios de comunicação social e às organizações multilaterais, a confiança nas instituições atingiu o seu nível mais baixo de sempre, devido à polarização política, à desinformação, à instabilidade económica e a uma crescente desconexão entre a liderança e o sentimento público.

A questão central colocada: como podem as instituições recuperar a legitimidade e reconstruir a confiança do público numa era de cepticismo?

Existem vários factores que explicam este preocupante défice de confiança:

Assistimos a uma era onde impera a polarização e a disfunção política, com os governos de todo o mundo a lutar para manter a sua legitimidade à medida que a polarização se aprofunda e que os movimentos populistas ganham força ao mesmo tempo que os partidos tradicionais perdem influência; os cidadãos sentem-se desiludidos com os sistemas políticos, considerando-os ineficazes ou corruptos; os conflitos geopolíticos e a fraca cooperação multilateral reforçaram o cepticismo em relação às estruturas de governação global como a ONU, a OMC e o FMI; os media sociais estão a corroer as fontes tradicionais da verdade, alimentando a disseminação de teorias da conspiração e de narrativas manipuladas; o fim das iniciativas de verificação de factos, como a recente decisão do Meta, intensifica as preocupações com a desinformação não controlada nas plataformas digitais e com os conteúdos gerados por IA, incluindo deepfakes e notícias fabricadas, tornando cada vez mais difícil distinguir a realidade da ficção.

Por outro lado, é patente também o aumento do cepticismo do público em relação às empresas devido a escândalos relacionados com a privacidade dos dados, danos ambientais e má conduta dos executivos. E, embora os líderes empresariais em Davos tenham defendido as iniciativas ESG, muitos consumidores e trabalhadores continuam a não estar convencidos da sua legitimidade, considerando estes esforços mais performativos do que transformadores. Adicionalmente, reina igualmente o pensamento a curto prazo nos negócios e na política, com muitos líderes a darem prioridade aos ganhos imediatos (eleições, lucros trimestrais) em detrimento do bem-estar social a longo prazo, reforçando a ideia de que as instituições não estão orientadas para a sua missão e enfatizando a urgência de líderes que dêem prioridade à ética, à sustentabilidade e ao impacto social, e não apenas aos ganhos financeiros ou políticos.

A incapacidade de enfrentar os desafios societais constitui também causa para o enfraquecimento da confiança nas instituições, pois desde as alterações climáticas e a desigualdade económica até à instabilidade geopolítica, a implementação de soluções reais não tem dado os resultados desejáveis, o que conduz à frustração e ao desinteresse.

Mensagem principal: a erosão da confiança não é apenas um problema de percepção. É uma crise real e perigosa que ameaça a estabilidade, a governação e o crescimento económico.

Em suma, a reunião mundial de líderes em Davos em 2025 reforçou a ideia já presente de que vivemos numa nova era de crescente incerteza e transformação. A IA, as alterações climáticas, as tensões geopolíticas e as desigualdades económicas representam desafios complexos que exigem uma cooperação global. No entanto, as divisões entre nações, empresas e ideologias dificultam a colaboração e a cooperação, colocando em sério risco toda a Humanidade.

Ficou também patente que economia global está a entrar num período de “desglobalização” e realinhamento, no qual as empresas devem dar prioridade à resiliência, adaptabilidade e gestão de riscos. O multilateralismo já não é uma garantia, e as empresas devem desenvolver estratégias regionais, consciência política e antecipação/ preparação relativamente a novas crises para prosperar num mundo cada vez mais incerto.

Embora o fórum tenha apelado ao crescimento económico inclusivo, à governação responsável da IA e à acção climática urgente, o alerta principal residiu na necessidade urgente de se restaurar a confiança e a liderança para enfrentar eficazmente estes tempos turbulentos.

Imagem:©Pixabay.com

Editora Executiva

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