As famílias portuguesas em situação de pobreza podem demorar cinco gerações a alcançar rendimentos médios. Num relatório dedicado à falta de mobilidade social, a nível salarial, educativo e de emprego, a OCDE conclui que a possibilidade de os jovens terem uma carreira de sucesso “depende fortemente da sua origem socioeconómica ou do nível de capital humano dos seus pais”, perpetuando-se as desigualdades crescentes entre ricos e pobres. Portugal está na média dos restantes países analisados, mas a “cola social” é persistente entre a população na base da pirâmide, o que se relaciona com o elevado nível de desemprego de longa duração e a segmentação do mercado de trabalho
POR GABRIELA COSTA

A desigualdade nos rendimentos tem vindo a aumentar desde os anos 90, o que provocou a estagnação da mobilidade social. Neste contexto, cada vez menos pessoas na base da pirâmide social conseguiram ascender economicamente, ao mesmo tempo que os mais ricos mantiveram as suas grandes fortunas. Em muitos países a população com os rendimentos mais baixos tem poucas possibilidades de subir e a que está no topo aí permanece. Esta “cola” social, como lhe chama a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), perpetua as desigualdades crescentes entre ricos e pobres.

Na prática, “o elevador social está quebrado”, como conclui a organização no relatório “A Broken Social Elevator? How to Promote Social Mobility”, divulgado a 15 de Junho. Esta quebra tem “graves consequências sociais, económicas e políticas” e, a prazo, “a falta de mobilidade ascendente implica que muitos talentos são perdidos, o que prejudica o crescimento económico potencial” e “reduz a satisfação com a vida, o bem-estar e a coesão social”, conclui a OCDE.

O documento revela que, considerando os actuais níveis de desigualdade e a mobilidade intergeracional dos rendimentos, em média, entre os países da OCDE, uma criança de uma família pobre necessitaria, pelo menos, de cinco gerações para alcançar um nível de rendimentos mediano. Este cálculo varia de entre duas a três gerações, nos países nórdicos, a nove ou mais gerações, em algumas economias emergentes, como o Brasil.

Portugal está na média dos restantes países analisados – Alemanha, Austrália, Brasil, Canadá, Chile, Coreia, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Japão, México, Reino Unido e Suécia -, necessitando de cinco gerações para que os descendentes de uma família de baixos rendimentos alcancem rendimentos médios.

Em Portugal podem ser necessárias cinco gerações para que os descendentes de uma família de baixos rendimentos alcancem rendimentos médios

Lares portugueses com “pisos pegajosos”

A mobilidade social “é multifacetada”, já que se avalia comparando o estatuto de cada geração a nível salarial, mas também quanto às dimensões da educação, emprego e saúde, e certo é que a mesma não é distribuída uniformemente ao longo das gerações.

O estudo da OCDE conclui que Portugal é dos países desenvolvidos onde é mais difícil sair da pobreza ou, por oposição, deixar de ser rico. Isto é, o nosso país é dos mais mal classificados, entre as economias avançadas, no que respeita a mobilidade social.

De acordo com a recente análise, em Portugal a condição económica “transmite-se fortemente” entre gerações: “tendo em conta a mobilidade de rendimentos de uma geração para a seguinte, bem como o nível de desigualdade salarial, pode demorar cinco gerações para que as crianças de uma família na base da distribuição de rendimentos consigam um salário médio”, aponta o fórum económico na sua avaliação.

Desigualdade e mobilidade ao longo de diferentes dimensões

Globalmente, e em comparação com os restantes países analisados, Portugal tem má nota em mobilidade na educação e no emprego, mas revela um desempenho um pouco melhor em termos de mobilidade dos rendimentos, o qual está próximo da média da OCDE. Este padrão é semelhante ao da maioria dos países do Sul da Europa.

Os dados da OCDE revelam que 33% dos portugueses concordam que a educação dos pais é importante para progredir na vida (uma percentagem ligeiramente inferior à média da OCDE, com 37%), ao mesmo tempo que muitos se mostram pessimistas quanto às hipóteses de melhorarem a sua situação financeira.

De destacar que a “mobilidade medida em termos de educação é a mais baixa”, entre todos os países analisados: “apesar das várias reformas para melhorar o nível de escolaridade e reduzir o abandono escolar precoce em Portugal, as possibilidades de os jovens terem uma carreira de sucesso depende fortemente da sua origem socioeconómica ou do nível de capital humano dos seus pais”, conclui o relatório.

Por outro lado, quanto ao tipo de ocupação profissional, 55% das crianças filhas de trabalhadores manuais acabam por ter a mesma profissão dos pais, contra 37% da média da OCDE. Simultaneamente, os filhos de gestores têm cinco vezes mais probabilidades de serem também gestores do que os filhos de trabalhadores manuais, naquela que é uma proporção muito maior do que a da média da OCDE. A organização conclui, pois, que no País “existem pisos pegajosos na mobilidade de ocupação”.

[quote_center]A prazo a falta de mobilidade ascendente prejudica o crescimento económico potencial[/quote_center]

Com base no inquérito, “Riscos que contam“, realizado em 2018, a organização divulga ainda que 58% dos pais portugueses listam como uma das principais preocupações o risco (de longo prazo) de os seus filhos não alcançarem o nível económico e de conforto que eles próprios têm. Segundo a OCDE há uma preocupação significativa em relação “às perspectivas futuras dos descendentes”.

Em 2015 apenas uma minoria (17%) dos portugueses esperava que a sua situação económica melhorasse no ano seguinte. E a verdade é que actualmente24% dos filhos de pais com baixos rendimentos acabam também por ter baixos rendimentos, mas 21% deles chegam ao topo da pirâmide – o que indica que a mobilidade entre gerações na base é, ainda assim, ligeiramente maior que a da média da OCDE. No extremo oposto, 39% das crianças cujos pais têm rendimentos elevados crescem para também elas terem rendimentos elevados (a exemplo da média dos países analisados).

Olhando para a mobilidade salarial ao longo da vida, o fenómeno em Portugal é limitado e persistente, particularmente na base e no topo. A quinta parte (ou 20%) da população que vive com rendimentos mais baixos tem poucas hipóteses de subir nos quatro anos seguintes (projecção traçada com base no período de quatro anos durante o qual se realizou o estudo). Dois terços (67%) acabam por nunca sair dessa condição financeira, dado preocupante que faz a OCDE sublinhar que “este piso pegajoso” se tornou mais forte desde os anos 90. Mas, e paralelamente, os lares portugueses têm também “tectos pegajosos”: no topo, a persistência é ainda mais forte, com 69% das pessoas cujos rendimentos se enquadram na quinta parte mais rica da população a permanecerem nessa mesma condição durante quatro anos.

Para a OCDE, a falta de mobilidade na base “pode estar relacionada com o elevado nível de desemprego de longa duração e a segmentação do mercado de trabalho”. Muitas vezes, este tipo de desempregados permanece encravado na base da escala de rendimentos, e os que ingressam em trabalhos temporários não conseguem garantir a estabilidade de rendimentos por meio das suas trajectórias no mercado de trabalho.

Recentemente Portugal implementou um conjunto abrangente de reformas do mercado de trabalho, reduzindo as diferenças na Legislação de Protecção do Emprego entre trabalhadores temporários e permanentes, e estimulando a mobilidade profissional. Estas reformas ampliaram a rede de segurança proporcionada pelos benefícios aos desempregados e aumentaram a oferta de programas de formação de curto prazo e a contratação de subsídios para os desempregados – provando que é possível melhorar a mobilidade ascendente de forma sustentável entre as pessoas menos qualificadas e os desempregados.

De resto, a OCDE defende que a falta de mobilidade social não é uma inevitabilidade, pelo contrário: as grandes diferenças registadas entre os países avaliados sugerem que “há margem para que as políticas tornem as sociedades mais móveis e protejam as famílias das consequências adversas dos choques de rendimentos”. São, pois, imprescindíveis medidas que fortaleçam as principais dimensões do bem-estar, e promovam o empoderamento individual e a capacitação.

[quote_center]Portugal é dos países desenvolvidos onde é mais difícil sair da pobreza ou, por oposição, deixar de ser rico[/quote_center]

Em Portugal, e na perspectiva do fórum económico, as prioridades políticas passam por apoiar as crianças de origem desfavorecida, assegurando uma boa educação pré-escolar, melhorando a formação de professores e acompanhando os estudantes com dificuldades e em risco de abandono escolar; combater o desemprego de longa duração, reforçando serviços de orientação e acompanhamento; e aumentar os esforços para elevar o nível de qualificações através da educação para adultos, antecipando as necessidades de competências a nível nacional e regional.

Políticas de educação, saúde e família no elevador social

Uma em cada três crianças cujos pais têm baixos rendimentos também terá baixos rendimentos na sua carreira futura e para as restantes duas, na maioria dos casos, a mobilidade ascendente ficará circunscrita ao nível de rendimentos seguinte, estima a OCDE. Esta realidade parece ser percepcionada pelos cidadãos, já que “demasiadas pessoas sentem que estão a ficar para trás e que os seus filhos têm muito poucas oportunidades de seguir em frente”, segundo a directora de Gabinete da OCDE.

As perspectivas de mobilidade salarial, entre as gerações, tendem a ser mais desfavoráveis em países onde a desigualdade nos rendimentos é elevada e mais propícias nos países com menos desigualdade. Enquanto nos países nórdicos a pouca desigualdade se relaciona directamente com a alta mobilidade, os latino-americanos e algumas economias emergentes têm uma grande desigualdade mas pouca mobilidade.

O relatório destaca ainda que a mobilidade salarial tem sido uma realidade para muitas pessoas nascidas entre 1955 e 1975 e com pais com um nível de educação baixo, mas que a mesma estagnou para os que nasceram depois de 1975. Ao longo do período de quatro anos durante o qual se realizou a análise deste estudo, cerca de 60% das pessoas que se encontravam na categoria de rendimentos abaixo dos 20% permaneceram retidas nessa categoria, ao passo que, nas categorias superiores, 70% das pessoas se mantiveram nas mesmas. Paralelamente, um em cada sete de todos os lares de classe média e uma em cada cinco pessoas que vivem com categorias de rendimentos consideradas baixas pioraram a sua situação, caindo para rendimentos inferiores a 20%.

[quote_center]Os filhos de gestores têm cinco vezes mais probabilidades de serem também gestores do que os filhos de trabalhadores manuais[/quote_center]

Para a OCDE, os países precisam instituir políticas que proporcionem a todos a oportunidade de obterem êxito profissional. Aumentar o investimento em políticas para a educação – sobretudo em idade precoce -, para a saúde e para a família é a receita para “gerar condições mais justas para as crianças desfavorecidas e moderar o impacto das privações financeiras no futuro”, alertao fórum de políticas globais que actua em cerca de cem países para promover o bem-estar económico e social.

Ter acesso a habitações económicas de boa qualidade e a transportes, bem como a um melhor planeamento urbano, são outros factores que contribuiriam para reduzir as divisões regionais e a concentração de lares desfavorecidos nas cidades. Por outro lado, reduzir a evasão fiscal sobre heranças e doações e elaborar sistemas tributários progressivos com taxas razoáveis e isenções reduzidas melhorariam a mobilidade social. Fortalecer as medidas de protecção social e os programas de capacitação, assim como vincular os direitos de protecção social aos indivíduos, e não aos empregos, ajudaria as pessoas – particularmente as que ganham pouco – a superar situações de desemprego.

Face às principais conclusões do relatório, que ditam que quer a mobilidade salarial ao longo da vida, quer a mobilidade social dos pais para os seus descendentes, nas diferentes dimensões avaliadas (rendimentos, educação, emprego e saúde), são reduzidas, a OCDE pretende demonstrar que é premente implementar políticas que tornem as sociedades mais móveis e protejam os agregados familiares de impactos adversos no que respeita aos seus rendimentos. E aponta as medidas mais relevantes, entre diversas opções, para que os decisores melhorem essa mobilidade entre gerações e dentro de cada uma delas.

Como defende Gabriela Ramos, “devemos assegurar-nos que todos têm a oportunidade de triunfar, especialmente os mais desfavorecidos, e que o crescimento se torna verdadeiramente inclusivo”, pois só assim limitaremos as consequências sociais, económicas e políticas da falta de mobilidade social.


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Crescimento inclusivo para combater desigualdades

O relatório “A Broken Social Elevator? How to Promote Social Mobility” integra a Inclusive Growth Initiative, a iniciativa de crescimento inclusivo mais abrangente da OCDE, e que acaba de apresentar o seu Quadro para a Acção de Políticas Públicas, com um painel de indicadores e instrumentos de política pública para combater as desigualdades.

A OCDE apresentou também uma versão actualizada da ferramenta interactiva online Compare os seus rendimentos (Compare your income), que permite de uma forma fácil e rápida dar uma perspectiva sobre a condição económica dos utilizadores, comparativamente à realidade socioeconómica do seu país de origem. Pressupondo que a maioria das pessoas não tem ideia – ou formula uma ideia errada – de como o seu rendimento familiar se compara com o da restante população, em termos de pobreza ou riqueza, a OCDE permite, em dez cliques, descobrir quantas famílias estão numa situação melhor ou pior do que a nossa.

Esta versão melhorada inclui novas perguntas sobre a mobilidade económica intergeracional e está disponível em 11 idiomas. A ferramenta foi criada com recurso à informação mais recente da Base de Dados da OCDE sobre Distribuição do Rendimento (OECD Income Distribution Database).


Jornalista