Estamos, neste momento, a servir de cobaias para uma gigantesca e sincronizada experiência social: até que ponto é que a psique humana consegue tolerar um estado de isolamento? Apesar de serem muitas as evidências de podermos vir a sofrer uma enorme dor social, com consequências nefastas para a nossa saúde física e mental, saber que neste momento ficar em casa é a única estratégia possível para fazer face ao inimigo comum pode ajudar a suportar o contexto de confinamento social. Com base em pesquisas realizadas com pessoas que viveram e trabalharam em ambientes isolados, confinados e extremos, segue-se um conjunto de fórmulas que nos poderão ajudar a não bater com a cabeça na parede
POR HELENA OLIVEIRA

Esta é uma crise com contornos e magnitude sem precedentes que a sociedade está a enfrentar na sua História. Mesmo em tempo de guerra, e apesar do racionamento de comida, vestuário e outros bens essenciais, as pessoas podiam juntar-se e, em conjunto, partilharem a experiência de abrigo e refúgio. E apesar da terrível carnificina que caracterizou as guerras mundiais, as pessoas não estavam, na maioria das vezes, isoladas das suas famílias e amigos. Todavia, e nesta nova guerra contra o coronavírus, não temos esse luxo. Uma enorme cortina de ferro desceu sobre as nossas casas e não só as pessoas foram separadas umas das outras, como poucas hipóteses existem de nos sentirmos úteis a ajudarmos na linha da frente.

Apesar de não ser possível – independentemente de todos os modelos matemáticos, opiniões de cientistas e outros especialistas – uma previsão para o fim deste estado de isolamento, as suposições mais pessimistas apontam para a possibilidade de a crise provocado pela Covid-19 poder durar mais de um ano, com cenários diversos que podem incluir um confinamento indefinido ou a perspectiva de períodos múltiplos e não consecutivos de isolamento forçado. E seja qual for a duração desta “prisão domiciliária”, é necessário fazer-se perguntas difíceis sobre a forma como as pessoas irão lidar com este novo estado.

E, na verdade, pese embora não seja a primeira vez que existem regiões de quarentena por causa de epidemias virais, não sabemos muito sobre os efeitos de se “cortar” a liberdade de milhões de pessoas no que respeita a estar com os seus amigos e familiares e à impossibilidade de se manter rotinas diárias e actividades de lazer. Pegando num caso extremo, os prisioneiros sujeitos a confinamento solitário desenvolvem rapidamente um conjunto alargado de problemas fisiológicos, como perda de peso, desordens digestivas e insónia, bem como efeitos psicológicos como ataques de pânico, depressões severas e pensamentos autodestrutivos que podem levar ao suicídio. Ou seja, existe uma razão para que muitos observadores considerem o confinamento solitário como uma violação dos direitos humanos básicos.

Claro que não é este o caso: não estamos presos, nem em regime solitário (apesar de serem muitos, em particular os idosos, que estão realmente sozinhos) nem a ser privados dos nossos estímulos. Mas, e apesar de toda a valiosa ajuda que a tecnologia nos pode dar (e sublinhando-se o facto de nem toda a gente ter acesso à mesma), a verdade é que os nossos universos sociais tangíveis foram miniaturizados e, para já, temos apenas liberdade para sair à rua para actividades essenciais e, no melhor dos casos, conversarmos com outrem a uma distância segura. Todavia, a verdade é que iremos enfrentar uma nova dor social e não será fácil, de todo, lidar com ela.

A melhor forma de se perceber o que nos pode acontecer em caso de isolamento prolongado é olharmos para os estudos sobre a solidão e desconexão social. E existem vários. De acordo com um estudo de 2009, o isolamento social envolve “uma pequena rede social com relacionamentos reduzidos, ausência de interacção ou contactos sociais e inexistência de participação em actividades sociais/colectivas”. E, basicamente, esta é a definição do estado em que nos encontramos.

Para uma análise ainda mais pessimista contam ainda várias outras pesquisas que afirmam que o isolamento de longo prazo aumenta o risco de morte prematura. “As pessoas que têm mais conexões sociais demonstram menos probabilidades de inflamações comparativamente às que estão mais isoladas, que as podem ter de forma crónica e com implicações para um conjunto diverso de doenças”, afirma Julianne Holt-Lunstad, professora de psicologia e neurociência na Brigham Yung University. “Temos também evidências de que esta situação está relacionada com a função cardiovascular, como a tensão arterial, ritmo cardíaco e até com a circulação das hormonas do stress, para além de ter efeitos também no envelhecimento celular”, acrescenta ainda. Ao analisar dados de vários países do mundo para estudar os efeitos do isolamento por longos períodos de tempo nas pessoas, Holt-Lunstad concluiu que a solidão pode aumentar a morte precoce em 26% e o isolamento social em 29%, na medida em que se multiplicam as probabilidades de se contrair doenças coronárias, cancro, falência renal, entre outras. Na verdade, os prejuízos de longo prazo causados pela solidão são similares aos da obesidade e tabagismo.

Por seu turno, Dhruv Khullar, médico e investigador na Weill Cornell Medicine em Nova Iorque afirma também que períodos curtos de isolamento podem causar um aumento da ansiedade e da depressão “em poucos dias”. “Evoluímos para nos tornarmos criaturas sociais. Em toda a história da humanidade, as pessoas sempre procuraram a estrutura de grupo como forma de interagir com outros seres humanos”, ou seja, é anti-natural não o fazer, diz ainda o médico. “E a tecnologia não é o substituto perfeito. O contacto físico, o estar face a face com outras pessoas e todas as demais formas de proximidade social estão profundamente enraizadas na nossa sociedade”, acrescenta.

Também a revista científica The Lancet publicou recentemente, e já a propósito das consequências do isolamento social necessário para travar o contágio em marcha, uma revisão de vários estudos que analisam o impacto psicológico de se estar em quarentena e que incluem múltiplos efeitos adversos como distúrbios emocionais, depressão, stress, dificuldade em dormir, mau humor, irritabilidade e até raiva. E está mais do que comprovado que o isolamento social em massa afecta um número considerável de pessoas. Mas de que forma é possível mitigar estes efeitos e garantir que, enquanto estivermos dentro de quatro paredes, a nossa saúde mental será preservada? Existem algumas fórmulas que podem ajudar e é sobre as mesmas que escreveremos a seguir.

Identificar os agentes de stress e enfrentá-los

Na medida em que a situação de isolamento social que estamos a viver não teve ainda nenhum precedente, olhar para as experiências de indivíduos e pequenos grupos que escolheram viver e trabalhar em ambientes Isolados, Confinados e Extremos (ICE) pode ser de grande utilidade. Foi o que fizeram os psicólogos e investigadores Nathan Smith, cuja pesquisa se centra na psicologia da performance e saúde sob condições de stress extremo, e Emma Barrett, co-autora do livro “Extreme: Why some people thrive at the limits”, ambos professores na Universidade de Manchester, que recolheram testemunhos de cientistas polares, astronautas, tripulantes de submarinos, trabalhadores em plataformas petrolíferas, espeleólogos e expedicionários. Apesar do contexto físico em causa ser diferente do isolamento e confinamento doméstico, as exigências psicossociais com as quais estas pessoas têm de lidar são bastante similares às que muitos de nós teremos de enfrentar nas próximas semanas e/ou meses. Assim, vejamos.

Adaptação

A adaptação ao isolamento social ou a uma situação de quarentena provoca, naturalmente, uma enorme disrupção na vida normal dos indivíduos. E este é um dos principais desafios enfrentados pelas pessoas e/ou pequenos grupos que trabalham nos já denominados ambientes isolados, confinados e extremos (ICE). Quando se inicia a transição para um ambiente “novo” – mesmo que, neste caso em particular, seja a nossa própria casa – é normal que sejam necessários alguns dias (até cerca de 10) para as pessoas se ajustarem à sua nova situação. Saber e estar consciente de que será assim no futuro próximo pode ser útil, permitindo às pessoas olharem para a frente e imaginarem uma altura em que as coisas gradualmente irão melhorar à medida que as condições se tornarem mais normalizadas. Uma estratégia comum utilizada pelas populações ICE para se adaptarem rapidamente às suas novas condições é estabelecer uma rotina, na medida em que tal facilita um sentimento de controlo e ajuda a reduzir a incerteza ao conferir uma certa estrutura aos dias que temos pela frente.

Ameaça, perigo e incerteza

A incerteza de não sabermos o que nos espera, especialmente em tempos de adversidade como os que estamos a viver, conduzem normalmente a sentimentos de ansiedade e de medo, também estes sentidos pelas populações ICE. A pesquisa de Nathan Smith e Emma Barrett sugere que reavaliar estes sentimentos e procurar os pontos positivos da situação em causa pode ser bastante útil. As pessoas que já experimentaram situações de confinamento descrevem um “desprender emocional” da situação a ser substituído por um enfoque no pensamento racional acerca dos verdadeiros riscos que enfrentam e no que pode ser feito para minimizar esses mesmos riscos. O enfoque ajuda a oferecer alguma perspectiva e a reduzir os sentimentos de ameaça. Em simultâneo, as pessoas que se encontram nestes ambientes (ou situações) extremos tentam não “cismar” nas ameaças e perigos que não conseguem controlar.

A escala da actual pandemia pode parecer esmagadora (a juntar à nossa ansiedade e medo) e informações minimamente fidedignas relativamente ao futuro são escassas. As pessoas em situações ICE enfatizam a importância de se manterem no presente e não serem distraídas por um hipotético fim do estado em que se encontram. Ao invés, devem “parcelar”o desafio (neste caso, estar em isolamento) e concentrarem-se nas tarefas mais importantes, imediatas e exequíveis, ou seja, no que pode ser feito nas próximas horas, dias ou semanas.

Monotonia e aborrecimento

À medida que a necessidade de isolamento persistir, a monotonia e o aborrecimento irão instalar-se. Muitas das pessoas entrevistadas pelos investigadores mencionaram os desafios associados à repetição, à ausência de variedade e à privação sensorial. Apesar de uma parte significativa da população ter acesso a uma ampla gama de entretenimento e fontes de distracção via Internet – sejam plataformas de jogos, conteúdos em streaming, podcasts, entre outros – a variedade é muito importante e é fortemente sugerido que as pessoas se envolvam em outras actividades criativas ou hobbies que devem ser perseguidos longe de qualquer que seja o ecrã e, em particular, longe dos media sociais.

Desde o início da exploração polar, as pessoas a viver em contextos ICE aprenderam o valor de “inventarem” o seu próprio entretenimento em situações extremas. Fontes de distracção da tripulação do famoso explorador Ernest Shackleton na expedição que fez, em 1908, à região antárctica incluíam um gramofone e livros cujas histórias eram lidas em voz alta. A encenação de peças de teatro ou passar o tempo a discutir argumentos teóricos servia igualmente para impedir a monotonia. E as expedições modernas utilizam escapes similares, como ler, jogar às cartas ou cozinhar para preencher o tempo. Sempre que possível, transformar o exercício físico numa rotina é igualmente uma forma eficaz de desafiar sentimentos de monotonia e aborrecimento e reduzir sentimentos de stress. Adicionalmente, e quando os estímulos externos e o acesso a recursos do exterior são reduzidos, optarmos por técnicas como o diálogo interno, a visualização ou práticas de respiração e meditação pode igualmente ajudar. Estas técnicas podem ser usadas para criar um sentimento de controlo pessoal quando outros aspectos da situação não podem ser alterados.

Moral em baixo e desmotivação

É praticamente inevitável que, durante o período de isolamento ou quarentena, as pessoas passem por momentos de desânimo e desmotivação, o que também é comum entre as pessoas que vivem em condições ICE. E saber de antemão que isso irá acontecer, que existirão dias maus, mas também dias bons, pode ser reconfortante. Formas de lidar com a baixa moral e com a desmotivação incluem reconhecer progressos e concentrarmo-nos em pequenos feitos para ajudar a estimular um sentimento de “competência”. Esta estratégia é igualmente valiosa para reforçar a auto-eficácia: o sentimento de que somos capazes de lidar com as exigências enfrentadas. Estas pequenas vitórias podem ser celebradas no interior da nossa rede de apoio, seja com as pessoas com quem estamos a partilhar o isolamento ou até com outros através das plataformas sociais. Uma técnica comum utilizada para manter a moral elevada e a motivação em ambientes ICE é a de se fazerem refeições celebratórias. As celebrações podem ser feitas quando se atinge uma determinada conquista, um evento festivo (um aniversário, por exemplo), o que ajuda a encorajar o espírito de camaradagem e união. Como sabemos e com as tecnologias modernas, são muitos aqueles que estão já a “jantar” com amigos e familiares através do skype, por exemplo, existindo várias aplicações que permitem “estar perto” longe.

Procurar um novo propósito consiste igualmente numa boa ajuda para o período de isolamento ou quarentena. Completar projectos deixados a meio, fazer cursos online e aprender novas competências é uma forma de nos mantermos motivados e de nos dar um novo enfoque.

Por último, manter um diário ao longo do período de confinamento é uma outra estratégia comum aos indivíduos que se mantêm em ambientes ICE. É uma boa forma para processar pensamentos, incluindo frustrações e preocupações, e uma boa via de catarse para expressar os nossos mais profundos sentimentos. Manter esta rotina regularmente, seja em papel, online ou em vídeo, pode ajudar as pessoas a melhor digerir a sua experiência e criar uma ideia de ordem no que, de outra forma, poderá assemelhar-se a tempos de caos.

O paradoxo da proximidade social e da separação

Estar em ambientes isolados e confinados e em estreita proximidade com as mesmas pessoas durante longos períodos de tempo pode ser desgastante, mesmo que estas sejam as que mais amamos. Os indivíduos que viveram em ambientes ICE enfatizam a importância de se ser tolerante relativamente aos outros e toleráveis connosco próprios. Para reduzir a probabilidade de conflitos em tempos que já são particularmente difíceis, ter autodomínio é crucial. Assim, é aconselhável identificar uma área de espaço pessoal para a qual nos possamos retirar em alturas de maior frustração. As equipas de expedição alertam também para o desenvolvimento de normas de equipa e para a necessidade de se ter conversas honestas e abertas com os que nos acompanham – e que fazem algo que nos irrita – para resolver problemas antes que a situação evolua em termos de tensão e consequente discussão. Estabelecer um conjunto de regras básicas de convivência torna-se assim fundamental.

Por outro lado, estar separado dos amigos e da família em tempos de isolamento e quarentena pode ser verdadeiramente angustiante. Como sabemos, as plataformas de mensagens instantâneas e de vídeo permitem manter os relacionamentos, mesmo que à distância. Todavia e apesar desse contacto com os outros ser crucial e estimular as relações sociais, pode também ter alguns impactos negativos. O trabalho feito pelos dois investigadores com populações ICE indica que a comunicação com o exterior tem de ser criteriosamente considerada para se assegurar que é benéfica para o individuo ou grupo que a está a receber. Tal pode requerer alguma gestão de expectativas e cuidado com o tipo de mensagens partilhadas, as quais têm também impacto na disposição e moral dos intervenientes, devendo-se escolher os tópicos que se quer ou não quer verem-se discutidos. A mesma regra vale para a partilha de conteúdos nas redes sociais e nas plataformas de mensagens instantâneas.

As estratégias acima identificadas têm como base pesquisas realizadas com pessoas a viverem em ambientes isolados, confinados e extremos, mas podem ser valiosas para todos nós que estamos a enfrentar a actual situação de isolamento. Claro que a quarentena doméstica encerra vários outros desafios, desde o facto de se ter de ocupar os mais novos até lidar-se com problemas financeiros. Estas questões exigem, assim, outro tipo de soluções criativas. De qualquer das formas, as ideias e abordagens acima mencionadas podem ser úteis na gestão de algumas exigências psicológicas e sociais que, inevitavelmente, iremos enfrentar nas próximas semanas e meses.

Editora Executiva