Apesar das inúmeras dúvidas que continuam a subsistir em torno do novo coronavírus, existe um consenso: até que haja uma vacina vamos continuar a estar sujeitos a regras de distanciamento físico, o que implica a reformulação das nossas relações sociais. Com saudades da família e dos amigos, mas tendo de conviver com um inimigo invisível que pode estar em qualquer lugar, é quase impossível não sentirmos desconfiança face “ao outro”, ao mesmo tempo que somos obrigados a adoptar novos comportamentos, muitos deles avessos ao que nos faz humanos. Independentemente da duração e severidade da Covid-19, certo é que esta terá um enorme impacto na sociedade, deixando cicatrizes que não serão facilmente curáveis
POR HELENA OLIVEIRA

Muitas eram as pessoas que não andavam nos passeios, caminhando antes pelo meio das ruas para evitarem ser infectadas ao passar por casas onde tivessem ocorrido mortes. Conhecidos e amigos evitavam-se nas ruas, expressando apenas um frio cumprimento, acenando com a cabeça. O velho hábito do aperto de mãos caiu de tal forma em desuso que eram muitos os que se ofendiam ante uma mão que lhes fosse estendida. Uma pessoa que vestisse alguma peça de luto era evitada como se de uma víbora se tratasse”.

Filadélfia, 1793, no seguimento de uma epidemia de febre-amarela

[excerto retirado de “A short account of the malignant fever, lately prevalent in Philadelphia: with a statement of the proceedings that took place on the subject in different parts of the United States”, Mathew Carey, 1793]

Na chamada fase 1 do desconfinamento e mantendo a consciência de que o vírus permanece activo, que continuamos a correr riscos e que não devemos abrandar os comportamentos que adoptámos nos últimos dois meses, pouco parece ter mudado na vida dos portugueses. Não é ainda tempo de nos reaproximarmos fisicamente. Do estado de emergência passamos ao de calamidade, o que significa também que é nosso dever cívico respeitar muitas das medidas impostas, mesmo que algumas delas tenham deixado de ser obrigatórias. E se, racionalmente, sabemos exactamente o que fazer – ou o que não fazer – em termos emocionais tudo se torna mais complexo.

No início da semana, Diogo Cruz, subdirector-geral da Saúde cometeu a imprudência de afirmar que, desde com “as devidas precauções, cautelas e distanciamento social, seriam “aceitáveis jantares de família”. Mesmo reiterando que não o podemos fazer “nos moldes em que o fazíamos antigamente” – e porque muitas das vezes só prestamos atenção ao que nos directamente interessa – as redes sociais foram assaltadas por milhares de pessoas que tentaram “validar” a informação, o que obrigou de imediato a comunicação social e vários grupos de respostas à obscura Covid-19 a explicar e a alertar, mais uma vez, que não é possível deixar de cumprir as regras preventivas a que temos estado sujeitos. Não, não podemos – ou não devemos – jantar com a família nem com os amigos – por distanciamento social entenda-se distanciamento físico -, os beijos e os abraços continuam na lista do que não é de todo aconselhável fazer e há que manter estoicamente a barreira que nos isola dos que nos são queridos.

Na medida em que continuam a não existir previsões possíveis para o fim desta pandemia, a estagnação forçada dos nossos desejos começa a dar lugar a fantasias pós-isolamento. E, apesar do conformismo, é impossível não imaginar o quão bom seria que tudo isto não passasse de um pesadelo colectivo do qual pudéssemos acordar, recuperando a nossa liberdade e sem ter medo dos outros. Entretanto, passámos a viver entre a vontade de abraçar os que nos são queridos e o medo de o fazer, para o seu e nosso próprio bem. O que representa uma enorme angústia. Como afirmou o filósofo e autor Alain de Botton no programa The Late Late Show “todos nós estamos frágeis, vulneráveis e a sofrer, com momentos por vezes verdadeiramente assustadores”.

O problema (mais um), sinalizado por inúmeros psicólogos e especialistas em comportamento humano é que, mesmo contrariados, é muito provável que as marcas do isolamento provocadas pela quarentena estejam para ficar e que a forma como nos relacionamos com os outros, em conjunto com muitos hábitos e comportamentos, possa mudar definitivamente.

Um “estado de mente de quarentena” poderá reinar durante meses e até anos, “mesmo depois de a quarentena física ser levantada”, afirma Sheva Rajaee, fundador do Centro para a Ansiedade e Perturbações Obsessivo-compulsivas, em Irvine, na Califórnia. “O coronavírus transformou a intimidade num sentimento traiçoeiro pois, e como sabemos, a doença pode passar de pessoa para pessoa através das mais mundanas actividades, como falar, beijar e até cantar”, diz num artigo publicado pela Vox. Adicionalmente, o facto de poder ser transmitida assintomaticamente forçou-nos a considerar “os outros” como ameaças potenciais.

“Estamos a treinar as pessoas para verem o mundo como um local de perigo e em que o inimigo invisível pode estar em qualquer lado”, afirma David Spiegel, professor de psiquiatria e de ciências comportamentais na Universidade de Stanford no mesmo artigo. E não será fácil interagir com ninguém se estivermos constantemente a pensar que essa pessoa é um potencial portador do vírus. “Teremos de desfazer muitos danos quando tentarmos reconstruir alguma aparência com a vida normal”, acrescenta ainda Spiegel, que alerta também para o facto de “ o evitamento piorar as fobias”. Desta forma, o psicólogo acredita que a “exposição” deverá ser uma parte importante da retoma das nossas vidas sociais.

Todavia, as soluções temporárias para lidarmos com o coronavírus – que incluem o estado de confinamento por um período indeterminado de tempo – não só poderão atrasar este processo, como poderão ter igualmente repercussões psicológicas ainda difíceis de avaliar. Por exemplo, e como declara o psiquiatra Steven Taylor à revista Atlantic, “os meus colegas em Wuhan [a cidade chinesa onde o vírus teve origem e que está já numa fase mais avançada de desconfinamento] referem que são muitas as pessoas que se recusam a sair de casa e que desenvolveram agorafobia”. Taylor, que é professor na universidade de British Columbia e autor do livro The Psychology of Pandemics, acredita também que, tal como os sobreviventes da SARS, do Ébola ou do VIH, é provável que as pessoas que recuperarem da Covid-19 possam ser segregadas e estigmatizadas, recordando que depois de a SARS ter atingido Toronto, as pessoas que lidaram com o surto, e um ou dois anos depois, continuaram a ser menos produtivas e a exibir maiores probabilidades de sofrerem de burnout ou de stress pós-traumático.

Ou seja, um período longo de quarentena poderá deixar, nas pessoas, cicatrizes profundas e se esta reticência em voltar à vida em sociedade será mais fácil de resolver para uns, “para muitos, este é o início de uma nova gestão que poderá durar muito tempo”, complementa ainda Sheva Rajaee.

Dizer adeus aos apertos de mão e a outros rituais pode ser doloroso

Reconhecendo que a Covid-19 nos ameaça a todos, a enfermidade provocada directamente pelo vírus não é o único perigo para a nossa saúde e bem-estar. Os efeitos secundários do distanciamento social podem também ter consequências perturbadoras, com sequelas ao nível da saúde mental para as quais psicólogos de todo o mundo têm vindo a alertar. E mesmo que não estejamos já obrigatoriamente confinados aos nossos espaços domésticos, sabemos que teremos de continuar a manter dois metros de distância do “outro”, a saudarmo-nos de longe e a evitar os grupos. E com isso corremos igualmente o risco de nos privarmos de uma das principais características que nos faz humanos: o toque e a necessidade de estarmos face a face com quem gostamos. E são inúmeras as experiências reais que demonstram que eliminar estas “imersões” diárias da nossa actividade social debilita as infra-estruturas corporais da saúde física e mental.

Como afirma ao El Pais o antropólogo Agustín Fuentes, “quando os seres humanos estão isolados, aparecem depressões fisiológicas e psicológicas, diminui a função imunitária, surgem dificuldades cognitivas, entre outros efeitos”. Mas, para além destes transtornos, a perturbação dos aspectos quotidianos mais sociais e constantes da nossa vida está igualmente a afectar as culturas um pouco por todo o mundo. Ou, como afirma o antropólogo, “o que estamos a pôr em perigo não é só a tendência que temos de estarmos e trabalharmos juntos, fruto da nossa evolução, mas também milénios de cultura”. Para Fuentes, estamos habituados a partilhar uma história evolutiva de forte cooperação e ajuda mútua, de enfrentar em conjunto as dificuldades da vida e de imaginar e criar novas possibilidades. “Além disso, temos inscrita a vida social e a inovação na nossa neurobiologia e fisiologia. E são estas últimas que nos fornecem as ferramentas necessárias para resolver os desafios que a era do coronavírus está a impor nos nossos corpos, mentes e cultura”, diz ainda.

Por outro lado, também sabemos que no mundo actual a vida social não se limita às pessoas que temos por perto, pois existe a possibilidade de chegar ao outro lado da rua ou do planeta sem abandonar o nosso isolamento físico. E ninguém pode negar os benefícios – que ganharam uma gigantesca dimensão em pandemia – de termos acesso à Internet para remodelar e reinventar a nossa vida social. Todavia e naturalmente que a vida social electrónica não é o mesmo que estarmos juntos pessoalmente, mesmo que sejam muitos os estudos que demonstram que “as actividades sociais podem alimentar positivamente os nossos sistemas neurobiológicos e emocionais, satisfazer a nossa necessidade de conexão social e a ajudar a manter as infra-estruturas do nosso corpo, submetido ao stress que nos causa a calamidade trazida por este novo panorama”, afirma ainda o antropólogo.

Outras pesquisas psicológicas sugerem que as preocupações relativas à Covid-19 e ao distanciamento social irão afectar o quanto vamos querer socializar com as outras pessoas no futuro, o que vamos valorizar nos nossos parceiros e relacionamentos, as nossas preferências e o nosso pensamento convencional no que respeita à abertura a novas experiências.

Isto porque, “tal como o nosso sistema de imunidade fisiológica, também o nosso sistema de imunidade comportamental psicológico é flexível”, explica Vivian Zayas, professora de Psicologia na Universidade de Cornell, num artigo assinado na The Conversation. Ou seja, quando este percebe algum risco de infecção, despoleta respostas que possam minimizar esse perigo. “E uma dessas respostas é distanciarmo-nos das outras pessoas e tornarmo-nos menos ‘sociais’”, declara. A psicóloga de Cornell cita igualmente estudos que comprovam que as pessoas que se sentem vulneráveis a uma infecção desta natureza passam a ser menos extrovertidas, menos abertas a novas experiências e muito mais restritivas nos seus comportamentos sociais. “Mesmo uma exposição momentânea a informação sobre doenças infecciosas pode alterar a personalidade, as preferências e o comportamento”, acrescenta ainda.

Por exemplo, investigações levadas a cabo sobre a relação entre regiões com doenças infecciosas endémicas e os traços de personalidade demonstraram que as pessoas que vivem em locais com uma elevada prevalência deste tipo de doenças exibem níveis mais baixos de extroversão, são menos abertas a novas experiências e são muito mais cautelosas nas suas interacções sociais e sexuais. E descobertas como esta suportam a ideia de que a personalidade – a forma como interagimos com os outros e com o mundo – é configurada de acordo com a forma como o nosso sistema de imunidade comportamental gere o risco colocado por doenças infecciosas. “Os efeitos da pandemia do coronavírus ficarão implantados na personalidade da nossa nação durante um longo período de tempo”, afirmou, ao Politico, Anthony Fauci, o imunologista e principal figura de proa no combate à Covid-19 nos Estados Unidos. E, de acordo com Vivian Zayas, nos Estados Unidos, que está em modo de distanciamento social há menos de dois meses, a pandemia já está a moldar novos comportamentos. “As pessoas estão menos sociais, os padrões de relacionamentos amorosos sofreram disrupções e estes efeitos estão a emergir mesmo nos relacionamentos mais íntimos e estáveis”, garante.

Para Agustín Fuentes, a perda de alguns rituais importantes, pelo menos no futuro próximo, poderá ser igualmente dolorosa. Manter um risco reduzido de transmissão do vírus deverá continuar a ser uma prioridade, no mínimo ao longo deste e, muito possivelmente, do próximo ano. Consequentemente, “os apertos de mão, os beijos nas bochechas, as palmadas nas costas ou inclusivamente o mero acto de nos sentarmos próximos uns dos outros e sussurrar algum segredo são gestos que terminaram, pelo menos em 2020”, afirma o antropólogo. O seu lado optimista quer acreditar, contudo, que surjam novos rituais para substituirmos aqueles que perdemos. “Talvez vejamos mais inclinações de cabeça, sorrisos [dificilmente devido ao uso obrigatório da máscara] e até reverências como novos actos de saudação. É provável que se criem novas frases e movimentos do corpo, os quais serão difundidos pelas populações e sociedades, pois os seres humanos são criativos e imaginativos ao ponto de saberem desenvolver novas formas de sociabilidade”, diz ainda.

No geral, a literatura e a investigação psicológica apoiam a conclusão de Fauci de que a Covid-19 terá efeitos duradouros nas formas básicas segundo as quais interagimos com os outros e com o mundo. Viver durante um período alargado sob a sombra de riscos elevados de infecção irá, muito provavelmente, moldar a visão que as pessoas têm em relação à sua comunidade, bem como os seus comportamentos e sentimentos. E quanto mais tempo durar a ameaça do coronavírus, mais estas mudanças poderão reflectir não só alterações em comportamentos momentâneos, mas transformações duradouras nas personalidades das pessoas.

Por seu turno, a psicóloga Vivian Zayas considera que o coronavírus está a aumentar a capacidade e a disponibilidade das pessoas para seguirem directrizes para o bem da comunidade, numa espécie de promoção do lado colectivista dos indivíduos. Mas e em simultâneo, o trade-off implica menos experimentação e reduzida vontade de nos desviarmos do status quo, tendo em mente os comportamentos que, face à Covid-19, podem aumentar a exposição ao vírus e diminuir a nossa sobrevivência.

A verdade é que os humanos evoluíram como seres profundamente sociais, e a necessidade de tocar e ser tocado, de conversar, de debater e rir em conjunto, de interagir em grupo é fundamental para uma vida saudável.

Que não nos esqueçamos do poder revigorante de um abraço e saibamos manter viva a nossa faceta social em tempo de distanciamento.

Editora Executiva