A forma como as empresas estão a utilizar os dados que partilhamos na Internet para determinar o preço mais alto que nos conseguirem “espremer” por determinado produto ou serviço é o tema central do livro “All You Can Pay: How Companies Use Our Data to Empty our Wallets”. Numa crítica ao capitalismo predatório com base na informação, a obra em causa obriga-nos a pensar melhor antes de saltarmos para o botão “Aceito” sem lermos as letrinhas pequeninas que constam das políticas de privacidade ou dos acordos de utilização
POR
HELENA OLIVEIRA

Confesse. Sempre que entra num website, assina uma newsletter, adquire um produto ou serviço ou se inscreve para um free trial, quantas vezes opta por pensar duas vezes antes de preencher, de imediato, todos os dados que, sobre si, são pedidos? E, ao longo de toda a sua vida enquanto utilizador da Internet, quantas vezes se deu ao trabalho de ler as letras miudinhas e aparentemente intermináveis presentes nos acordos de utilização, políticas de privacidade ou na isenção de responsabilidade (legal disclaimer, em inglês) que constam de todos os websites?

Não é muito mais fácil e rápido – que são exactamente as características que mais apreciamos na Internet – saltar imediatamente para o botão que diz “concordo e aceito” e prosseguir com a sua navegação online, esquecendo de imediato todo o “legalês” não lido e, mais importante ainda, toda a informação oferecida sobre a sua pessoa? A verdade é que não está sozinho, porque a esmagadora maioria dos utilizadores da rede que mudou o mundo faz exactamente o mesmo. Mas a verdade é que não o devíamos fazer.

[pull_quote_left]“Praticamente tudo o que existe para saber sobre nós é conhecido e armazenado”[/pull_quote_left]

Comece por pensar na seguinte questão: faz alguma ideia do que as empresas fazem com os dados que, de forma livre, lhes faculta? “E qual é o problema”, responderá de imediato, “se eu não tenho nada a esconder”? Ou que tipo de mal ou problema existe em digitarmos o nosso nome, a nossa morada, as nossas preferências ou até a escolha entre pagarmos por multibanco ou via cartão de crédito aquele produto que nos parece responder exactamente a uma necessidade ou desejo por nós mesmos formulado?

A verdade é que você, eu ou qualquer outra pessoa, é apenas um entre milhões e milhões de consumidores que, de forma displicente, está a contribuir para que empresas poderosas concorram entre si para armazenar quantidades inimagináveis de dados, e a permitir que, em termos económicos, estas informações supostamente privadas se estejam a transformar num dos mais valiosos activos do no planeta, ultrapassando, de longe, o que a Segurança Social, a Banca, as Finanças, ou os governos no geral, sabem sobre a nossa vida. Sim, o objectivo é, à primeira vista, bem-intencionado: compreender o nosso comportamento e os desejos que formulamos, do mais comum ao mais íntimo dos pormenores, para que, enquanto consumidores, sejamos tratados o melhor e o mais rapidamente possível, que a vida já é complicada demais para perdermos tempo com o que não é realmente inevitável.

Todavia, e à medida que as empresas armazenam, não em grande, mas em gigantesca escala, tudo o que é possível saber sobre os nossos comportamentos, desejos e necessidades, toda essa informação serve para que controlem, detalhadamente, as nossas decisões de compra, muito antes de termos tempo de abrir a carteira e pegarmos no nosso dinheiro de plástico para fazermos determinado pagamento.

Apesar de todos nós termos um relativo conhecimento sobre a forma como opera a poderosíssima indústria do armazenamento de dados privados, no máximo, conseguimos ver a ponta do icebergue. E é sobre a gigantesca quantidade de “gelo” que permanece imerso, que a jornalista sénior Anna Bernasek, em conjunto com o marido, o advogado D.T. Mongan, especializado em finanças e em transacções comerciais, escreveu o livro “All You Can Pay: How Companies Use Our Data to Empty Our Wallets”, considerado pela revista strategy + business como um dos melhores livros de gestão de 2015.

[pull_quote_left]“A capacidade para compreender os consumidores a um nível detalhado, em tempo real e, simultaneamente, customizar o preço oferecido a cada pessoa, desequilibra as regras do poder do consumidor e ameaça dramaticamente a liberdade do mercado”[/pull_quote_left]

“De gestão ou de marketing?”, poderá o leitor questionar, na medida em que há muito que sabemos que os nossos dados constituem o mais precioso activo para os profissionais desta disciplina e que há décadas que são utilizados para chegar ao consumidor “certo”. De gestão, escreve a revista, porque graças às repetidas violações de privacidade, em geral, e a Edward Snowden e à NSA, em particular, os consumidores começam a estar minimamente atentos e, ainda que ligeiramente, preocupados, com o que acontece com as informações que pronta e voluntariamente partilham na Internet. De gestão porque o crescente manancial de dados que as empresas possuem sobre os seus consumidores individuais está a ser utilizado não apenas para a customização de ofertas de produtos e serviços, mas também para a crescente customização do valor que por eles são pagos. De acordo com os autores, o mercado de massas, ou livre, acabou.

E nesta obra, perturbadora q.b., demonstram de que forma é que as empresas poderosas usam aquilo que sabem sobre nós para determinar o quanto estamos dispostos a pagar por isto ou por aquilo. De acordo com os autores, a tendência é crescente e cada vez mais vulgarizada. Hotéis, eventos desportivos e produtos ou serviços de saúde estão também a utilizar esta estratégia. “O preço online de quase tudo, desde o de um bilhete de avião até ao do papel higiénico, flutua de momento a momento”, garantem. Através de uma combinação de discriminação de preço e de tecnologia de vanguarda, as empresas conseguem alterar, de forma instantânea, o preço que cobram a cada individuo com base em cálculos de oferta e procura num determinado ponto do tempo.

Já alguma vez se interrogou, por exemplo, por que motivo e nos Estados Unidos, em particular, qualquer que seja o website onde se registe para fazer uma compra ou até para receber determinada newsletter, o código postal consta sempre como um dos campos obrigatórios a preencher? O mesmo acontece com variados tipos de “informação sem importância” que cedemos gratuitamente, todos os dias e a toda a hora, seja através das pesquisas que fazemos no Google, seja no que partilhamos no Facebook ou num simples pedido de informação sobre a “mais recente e fantástica dieta que lhe permitirá perder 10 quilos num mês, sem sofrimento”.

Neste livro que mudará, significativamente, a forma como encaramos a aquisição de conhecimento, produtos e serviços na Internet, os autores alertam e demonstram de que forma os famosos big data ameaçam o mercado livre: “a capacidade para compreender os consumidores a um nível detalhado, em tempo real e, simultaneamente, customizar o preço oferecido a cada pessoa, desequilibra as regras do poder do consumidor e ameaça dramaticamente a liberdade do mercado”, escrevem. Mas e apesar de pessimista, a visão dos autores ajuda-nos a perceber de que forma é que os nossos dados, que deixaram de ser privados e passaram a ser mais do que públicos, são utilizados e cuidadosamente armazenados, ao mesmo tempo que oferecem uma alternativa, difícil, mas ainda possível, para que cidadãos e empresas mudem o curso desta tendência enganadora, e muito mal conhecida pela maioria de nós.

Sei o que fizeste o Verão passado, e hoje, e ontem e há dois minutos

12112015_ComprasOnline“Praticamente tudo o que existe para saber sobre nós é conhecido e armazenado”, asseguram os autores. E, em quase todos os minutos do dia estamos a enviar torrentes de informação que ficará, para sempre, no ciberespaço. Mas o já comum ditado de que tudo o que fazemos na Internet, permanece e permanecerá na Internet, parece continuar a não fazer grande diferença nos comportamentos que assumimos e perpetuamos todas as vezes em que ligamos os nossos dispositivos e entramos na nossa realidade virtual que, afinal, deixa de ser nossa, e passa a ser de “quem a apanhar”. E, sempre que ligamos o nosso smartphone, tablet ou computador, e permitimos que “estes novos e insubstituíveis melhores amigos” revelem o que queremos, o que compramos, onde estamos e quem somos, “passamos a fazer parte da tendência que está a substituir o mercado de massas pela customização massificada” pela qual não pagamos apenas um preço abstracto, mas real – a perda da nossa privacidade – mas também um “verdadeiro”, em euros ou em dólares, acrescentam.

Com o progresso acelerado da tecnologia, em especial do data mining, são cada vez mais as empresas que vão variando as suas ofertas, preços e condições contratuais, a todo o momento, adaptando-os a cada consumidor, de acordo com a sua localização específica e em momentos particulares no tempo. Os websites personalizam as nossas experiências, recordando-nos de quem “somos” e do que gostamos ou não. O nosso historial de browsing, os emails que recebemos e enviamos, e as pesquisas que fazemos influenciam tudo o que vemos – ou que nos é – “por mera coincidência” – mostrado. Por exemplo, a pesquisa personalizada do Google significa que a duas pessoas que estejam a pesquisar o mesmo termo, não lhes seja devolvido o mesmo resultado ou as mesmas ofertas. Ou, em breve sínteses, a Amazon recomenda produtos diferentes a clientes distintos e a Netflix (recém-chegada a Portugal) sugere que série ou filme deverá ver com base no que já aprendeu sobre as suas preferências “televisivas”.

[pull_quote_left]A pessoa que está sentada ao nosso lado num avião pode ter pago metade do valor que reembolsámos pela mesma viagem[/pull_quote_left]

E, tal como os produtos, os preços são customizados a todo o momento. Sem o sabermos, a pessoa que está sentada ao nosso lado num avião pode ter pago metade do valor que reembolsámos pela mesma viagem. Os economistas chamam a este fenómeno “discriminação de preço”, o qual está a proliferar em toda a nossa economia.

Um estudo realizado pelo economista Benjamin Reed Shiller, da Brandeis University, citado pelo The Guardian, analisou os lucros do Netflix depois de este ter recolhido um conjunto variado de níveis de informação sobre os seus clientes e ter cobrado preços diferentes pelo mesmo produto. Tendo apenas em conta a variável da informação demográfica para cobrar preços distintos, os lucros aumentaram 0,14%. Mas, ao adicionarem à equação informação mais detalhada proveniente do histórico de pesquisas na web de determinados clientes, os lucros aumentaram 1,4% com alguns consumidores a pagarem o dobro do preço exactamente pelo mesmo produto.

Como escrevem os autores, entre muitas outras de menor dimensão, as grandes beneficiárias desta oferta gratuita de dados que continuamos a apelidar de privados, são as denominadas Big Ten, ou gigantes corporativos como a Google, a Amazon, o Facebook, entre outras similares, que estão a ganhar aquilo que os autores denominam como a “world-wide data war”, ou a Guerra Mundial pelos Dados.

Como se pode ler na strategy + business, os denominados mercados saudáveis – denominados como mercados de massas, são relativamente transparentes, pois tanto o consumidor como o vendedor têm uma ideia geral, e coincidente, do que significa um preço justo. Mas a verdade é que o progresso da customização massificada veio acompanhado de uma crescente assimetria na informação. Devido aos dados que os consumidores partilham de forma incessante e, muitas vezes, inadvertidamente, sobre as suas preferências e vidas privadas, as empresas estão a ter acesso a um conhecimento desmesurado no que respeita aos consumidores, com um peso ainda maior se comparado com o conhecimento que os consumidores (não) têm sobre elas.

Ou, por outras palavras, tal significa que as empresas sabem o quanto os seus clientes estão dispostos a pagar, cobrando-lhes de acordo com essa disponibilidade. O que, à primeira vista, não parece ser assim tão mau. Se o meu vizinho tem uma condição financeira superior à minha, não me importo nada que ele pague o dobro do preço pela viagem de avião que fizermos lado a lado. Mas, para além das questões éticas que esta realidade acarreta, nenhum de nós ficará satisfeito ao saber que aquilo que oferecemos de livre e espontânea vontade, porque acreditamos na boa fé de quem está do outro lado, está a ser usado não em nosso benefício, mas para satisfazer a sede de lucro destes gigantes empresariais.

“Se acredita que as empresas não utilizarão o conhecimento crescente que têm sobre si para lhe cobrar preços o mais elevados possíveis, pense duas vezes”, alertam os autores. “Com a sofisticação contínua relativa à extração e análise de dados, a exploração só se tornará mais facilitada e muito mais generalizada”, acrescentam.

“Apesar de o mecanismo que torna os guarda-chuvas mais caros durante uma tempestade ou os voos mais caros em período de férias – o denominado preço dinâmico – ser uma estratégia de marketing comum e aceite pelo consumidor na generalidade, a forma como o livro pinta o actual estado de “flutuação de preços” no mundo online significa que, teoricamente, se a Amazon sabe que a sua vida financeira vive melhores dias do que a do seu vizinho do lado, poderá cobrar-lhe mais por um par de ténis Nike”, escrevem.

A strategy + business sugere ainda a leitura atenta de um dos capítulos do livro que fala, especificamente, do mercado da educação superior [nos Estados Unidos, em particular, em que os gastos com o ensino superior são elevadíssimos, o que dá origem a empréstimos bancários que muitos alunos simplesmente não conseguem depois pagar ou que ficarão a pagar durante toda a vida]. Se, em teoria, o valor das propinas é transparente – basta ir ao website da universidade em causa e consultá-lo, os valores pagos pelos estudantes variam significativamente. À família do aluno é exigido um batalhão gigantesco de informação financeiro e, no final, é a universidade que decide, num processo que nada tem de transparente, o que cada jovem poderá pagar.

Nem todas as empresas são diabólicas e nem todos os consumidores são ingénuos

12112015_ComprasOnline2Com maior ou menor detalhe, todos sabemos que o negócio dos dados privados recolhidos pela Internet é gigantesco, opaco e completa e politicamente incorrecto. E que a venda de bases de dados é feita com a maior das facilidades, sem que não nos apercebamos disso até ao momento em que recebemos no nosso email, telemóvel ou página do Facebook, anúncios disto ou daquilo ou profissionais de marketing que nos ligam para o nosso número privado, como se nos conhecessem bem e com quem nunca travámos conhecimento antes. Com o tempo, habituámo-nos a não nos preocupar com tal “acto comum” e continuamos a partilhar a nossa informação com cada vez maior à vontade. Mas, quando se lê este livro, é impossível não se ficar a pensar no assunto e não questionar até que ponto as nossas vidas são conhecidas por entidades estranhas e “transaccionadas” com a maior naturalidade e facilidade possíveis.

O livro “All You Can Pay” oferece-nos, sem dúvida, reminiscências da sociedade orwelliana, mesmo sabendo que existem fenómenos muitíssimo mais graves no que à vigilância do Big Brother actual diz respeito, comparativamente a esta customização e “disparidade” de preços. E são vários os (menos) críticos que defendem que a customização tecnológica um-para-um para além de tecnologicamente possível, não é assim tão má. E se é verdade que são muitas as empresas que estão dispostas a dar mau uso aos dados que com elas partilhamos, o “modelo” ainda não está massificado e não o podemos criticar ou analisar à luz de critérios fundamentalistas: nem todas as empresas são diabólicas, nem nós, utilizadores da Internet e consumidores do que ela nos oferece, somos tão ingénuos e desprovidos de poder para nos acautelarmos como se afigura.

[pull_quote_left]“Através de uma combinação de discriminação de preço e de tecnologia de vanguarda, as empresas conseguem alterar, de forma instantânea, o preço que cobram a cada individuo com base em cálculos de oferta e procura”[/pull_quote_left]

Se é certo que o progresso tecnológico permite uma monitorização do que fazemos, também é certo que o mesmo também serve para termos mais voz, sermos mais críticos e conseguirmos boicotar uma empresa que teve um comportamento demasiado mau para passar impune. E também não é correcto afirmarmos que somos ingénuos e que não sabemos o que está em causa quando partilhamos os nossos dados pessoais com as empresas que escolhemos para o fazer. Afinal, se aproveitamos os descontos das Grupons e companhia, se somos invadidos por promoções das marcas que preferimos, ou se nos cai uma viagem barata no email porque há um ano andámos a pesquisar preços para esse mesmo local de sonho, enquanto consumidores, também colhemos os nossos benefícios.

De qualquer das formas, o livro em causa serve de alerta para uma maior responsabilidade e responsabilização, empresarial e pessoal, acompanhada de um aumentar de consciência dos trade-offs necessários no mundo digital em que não hesitamos viver e conviver.

Os autores colocam a sua esperança no que denominam como “Ambientalismo de Dados”, numa aproximação ao que deu início ao movimento de activismo ambiental e que tem por base duas realidades por excelência: a boa informação e a melhor utilização possível dessa informação.

Será que, para a próxima, se dará ao trabalho de ler as letras miudinhas? Pelo menos, por enquanto, não nos parece. Mas fica o alerta.

Editora Executiva

1 COMENTÁRIO

  1. Este é um problema verdadeiramente preocupante nos dias que correm. E faz-nos sentir ameaçados e, pior do que isso, absolutamente desprotegidos. Realmente, o “big brother” está a controlar-nos permanentemente. E de forma perversa. Parece-me da maior importância que começem a ser criadas medidas que regulem o uso dos chamados “cookies” (que não são aquelas bolachas deliciosas, que normalmente sabem tão bem, quanto engordam..). Mas o fenómeno adquiriu tal dimensão que já não acredito que possa haver um recuo…

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