POR HELENA OLIVEIRA
Se existe uma mensagem central que foi transmitida às mais de 1000 pessoas que se deslocaram à Gulbenkian, na passada terça-feira, para ouvir o laureado com o Nobel das Ciências Económicas em 2001, foi a de que “ a desigualdade é uma escolha e não um inesperado ou desafortunado resultado económico”. E, apesar do peso do tema, foi também um economista bem-disposto, com um saudável sentido de humor, que subiu ao palco para proferir uma intervenção sobre a “Desigualdade num Mundo Globalizado”, com particular enfoque para a que grassa nos Estados Unidos, mas sem esquecer a que também persiste na Europa.
Crítico da troika e das políticas de austeridade implementadas na Zona Euro, Joseph Stiglitz é ainda mais aguerrido nas apreciações que faz relativamente ao seu país, afirmando que as velhas ideias do “sonho americano” e da América enquanto “terra das oportunidades” nada mais são do que “um mito”. Adicionalmente, e “como a América faz tudo ‘melhor’ e em ‘maior quantidade’ do que os demais ”, a desigualdade não escapa a esta “mania das grandezas” e, mais estranho do que tudo, “é o facto de serem muitos os países que imitam o seu (mau) exemplo”, ironizou.
A intervenção obedeceu a uma divisão entre a visão que Joseph Stiglitz tem do aumento generalizado das desigualdades – desde sempre que o tema lhe é particularmente caro – não só a económica mas, e em particular, a de oportunidades, focando também as suas principais dimensões e (maus) resultados.
As múltiplas dimensões da desigualdade e a falência da “trickle-down economy”
A ideia de que a desigualdade se agravou significativamente em termos de rendimentos, e não só, não é novidade para ninguém. Stiglitz recordou, na conferência, um estudo que foi divulgado este ano, em Davos, pela Oxfam International, o qual afirmava que a desigualdade estava fora de controle, descontrolo este bem representado pela diferença entre o 1% da população cuja riqueza combinada corresponde à que é detida pelos restantes 99%. E, apesar de os ricos não andarem de autocarro, Stiglitz recordou que uma das formas que a organização sem fins lucrativos utilizou para transmitir esta mensagem foi através da ideia de que “a riqueza das 80 pessoas mais ricas do mundo metidas num autocarro excederia os recursos materiais dos 3 mil milhões de pobres que fazem parte da base da pirâmide”.
No meio deste padrão persistente e crescente de desigualdade – que “é muito sério também na Europa, com a recessão e as elevadas taxas de desemprego, nomeadamente entre os jovens” – Stiglitz recuou no tempo e recordou que, após a segunda guerra mundial, a mesma se manteve sem grandes alterações, aumentando consideravelmente nos últimos 30 a 40 anos, nomeadamente desde a década de 1980. E, ao longo deste mesmo período, o crescimento dos salários foi também inferior ao crescimento da produtividade. Um outro factor relevante consiste no facto de a desigualdade na riqueza ser mais pronunciada do que a desigualdade nos rendimentos, tendo em conta o capital acumulado e outros activos.
[pull_quote_left]A desigualdade na riqueza é mais pronunciada do que a desigualdade nos rendimentos[/pull_quote_left]
Acrescentando que não existe uma forma fácil de enfatizar as múltiplas dimensões que caracterizam a desigualdade, Stiglitz apontou, no entanto, algumas das mais importantes: a abissal concentração da riqueza no topo, o número impressionante de pobres, a “evisceração” da classe média, a desigualdade na saúde – muito pronunciada nos Estados Unidos, na medida em “que não é reconhecida como um direito básico, representa 17% do PIB e conduz a uma baixa esperança de vida” – e a desigualdade na justiça.
Tendo, neste caso, como pano de fundo os Estados Unidos, o economista citou um artigo no qual se dava conta que, nos Estados Unidos e entre os homens brancos, a esperança de vida estava a diminuir de forma preocupante, devido ao álcool, ao abuso de drogas e ao suicídio. Ou, por outras palavras, estes “efeitos” – que estão directamente relacionados com questões de desigualdade – suportam os dados de que os rendimentos de muitos americanos, em particular dos que apenas têm o ensino secundário e que trabalham a tempo inteiro, sofreram um declínio considerável, e que, em média, o salário mínimo norte-americano, é mais baixo do que há 60 anos. Em contrapartida, o aumento dos recursos dos que pertencem ao 1% mais rico do país “mais do que duplicou nos últimos 30 anos”.
Através da apresentação de vários dados estatísticos e gráficos sobre a evolução dos rendimentos nos agregados e nos salários norte-americanos, Stiglitz comprovou facilmente a ideia de que os mais ricos, e os mais ricos entre os mais ricos, foram os únicos que beneficiaram do crescimento económico dos últimos 30 anos. Se a estagnação caracterizou o rendimento das classes médias, o declínio no dos mais pobres (e depois de descontado o efeito da inflação) consegue ser inferior aos valores de há seis décadas.
Mas e se não existem dúvidas face à desigualdade, elas existem e não geram consenso no que respeita às suas “origens”. Uma das teorias defendidas – assente no conceito da trickle-down economy – suporta o argumento de que a desigualdade “até” pode ser uma coisa boa: ou seja, que o crescimento económico, mesmo que chegue a beneficiar primeiro os mais ricos, acabará por ajudar todos. “Nada mais falso”, assegura Stiglitz.”Enquanto os ricos se tornam mais ricos, a maioria dos americanos – e não só os mais pobres – não consegue manter os seus padrões de vida”.
O que suporta também aquele que é, para o Nobel da Economia, o mais insidioso aspecto da desigualdade: a falta de oportunidades.
“Escolham bem os vossos pais”
“Não constitui surpresa”, afirma o professor de economia norte-americano, que exista “um relacionamento sistemático entre a desigualdade de rendimentos (e de resultados) e a desigualdade de oportunidades”. As expectativas de “vida futura” nos Estados Unidos – e nos demais países desenvolvidos – dependem, em muito, dos progenitores em causa. Motivo pelo qual Stiglitz costuma dizer aos seus alunos para “escolherem os pais certos”. Se o conselho só pode ser levado a brincar, a verdade é que o nível de educação dos pais determina seriamente os rendimentos dos filhos, o que explica também a perpetuação da desigualdade entre ricos e pobres – salvo algumas excepções, é claro – e, consequentemente, o ciclo vicioso da pobreza.
Ao longo de toda a sua carreira, Stiglitz sempre se interessou pela relação directa entre o acesso – ou a sua negação – a bons serviços de saúde e de educação e a forma como estes interferem na desigualdade de rendimentos e na igualdade de oportunidades.
Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos e em grande parte da Europa, é possível ver que “os países escandinavos possuem os mais elevados níveis de oportunidades e, ao mesmo tempo, os mais baixos de desigualdade”. E, sempre que estamos perante uma diminuição da igualdade de oportunidades, isso significa “que não estamos a usar o mais valioso de todos os activos – as pessoas – da forma o mais produtiva possível”, acrescenta.
[pull_quote_left]O aumento dos recursos dos que pertencem ao 1% mais rico dos Estados Unidos “mais do que duplicou nos últimos 30 anos”.[/pull_quote_left]
Na América, as possibilidades de alguém atingir o “topo”, ou até o “meio caminho”, sendo proveniente da “base”, são mas baixas do que em qualquer outro país desenvolvido, afirma, e o mesmo acontece ao contrário: os ricos sabem que as hipóteses de “descerem” na espiral dos rendimentos são muito remotas. Esta dificuldade de mobilidade ou ascensão para os que têm menos oportunidades é outro sinal inequívoco da força da desigualdade.
Ou, por outras palavras, os filhos das famílias ricas serão sempre mais favorecidos do que os filhos das famílias pobres, na medida em que têm, na esmagadora maioria das vezes, o acesso facilitado a melhor e mais educação, o que se traduz num potencial directo de maiores rendimentos e oportunidades no seu futuro.
Adicionalmente, não são só os pobres, e os mais pobres entre os pobres, que sofrem a desigualdade em todas as suas dimensões. Como anteriormente citado, tanto nos Estados Unidos, como na Europa, a denominada classe média está a sofrer uma enorme erosão, como foi demonstrado num gráfico exibido durante a intervenção: “quase todos os países que fazem parte da OCDE sofreram, nos últimos 30 anos, um acréscimo de desigualdade”, afirmou, acrescentando ainda que o que é mais pronunciado é o facto de “nos primeiros três anos de recuperação da Grande Recessão [entre 2009 e 2012], 91% do rendimento foi para os bolsos dos mais ricos”.
E é por isso que o Nobel da Economia afirma que a economia norte-americana “não recuperou verdadeiramente e, na Europa, muitos países se encontram ainda em pior posição”.
A desigualdade resulta das políticas e é moldada pela política
No seguimento da crise económica e financeira mundial e, sem surpresa, a desigualdade global sofreu um ainda maior agravamento, conduzindo – e como todos nós sabemos – a níveis mais elevados de desemprego e a “cortes nos serviços básicos, de crucial importância para os que menos recursos têm”. E Stiglitz cita a Espanha – a par de outros países – que “celebram o fim da recessão devido a quebras muito pouco significativas nas suas taxas de desemprego. “Em Espanha, a taxa de desemprego está nos 23% e, entre os jovens, quase nos 50%”, recorda. “E por acaso isso é motivo de celebração?”, questiona. “Para mim, isso não é retoma, mas recessão”, acrescenta.
[pull_quote_left]O mais insidioso aspecto da desigualdade é a falta de oportunidades[/pull_quote_left]
O mesmo comentário ácido é suscitado a propósito do seu próprio país, nomeadamente quando a administração Obama resolveu resgatar a banca com 700 mil milhões de dólares. “Supostamente, este valor deveria beneficiar todos”, declara, questionando de seguida: “E por que motivo alguns desses mil milhões não beneficiaram os norte-americanos que perderam as suas casas?”. Porque, mais uma vez, estamos perante o conceito da trickle-down economy, responde.
“Toda a gente fala sobre reformas, mas estas beneficiam sempre os mais ricos e mais ninguém”, diz. Na verdade, o único grupo que beneficiou do crescimento foi o dos que pertencem aos 10% mais ricos e, de forma mais acentuada, o dos que fazem parte do 1% mais rico e ainda os 10% por cento mais ricos entre o 1% mais rico”, sublinhou para que não subsistissem dúvidas.
E é por isso que defende que são as políticas, e não as forças inexoráveis da economia, que são responsáveis pelo aumento persistente das desigualdades.
[pull_quote_left]Nos primeiros três anos de recuperação da Grande Recessão [entre 2009 e 2012], 91% do rendimento foi para os bolsos dos mais ricos[/pull_quote_left]
“A desigualdade é uma escolha e é o resultado da forma como estruturamos a economia, os sistemas de impostos, as despesas públicas, a estrutura legal e forma como conduzimos a política monetária”. Todas estas políticas “afectam o poder de mercado e o poder de negociação dos diferentes grupos sociais”, acrescenta, defendendo que a principal razão para o crescimento das desigualdades está nas políticas adoptadas a nível macroeconómico – daí a sua crítica à austeridade imposta na Europa – em conjunto com o financiamento da economia, com a fraqueza nos salários e com o enfoque no curto prazo em detrimento do longo prazo, o que personifica a preferência para recompensar os accionistas em detrimento dos trabalhadores e consumidores, algo que defende e explica também no seu mais recente livro “The Great Divide: Unequal Societies and What We Can Do About Them, o qual se concentra na importância crucial para “se reescrever as regras”.
A nível microeconómico, o economista norte-americano propõe a revisão das regras que conferem um poder de mercado excessivo às empresas, em particular às de grande dimensão, através de uma expansão orçamental financiada por impostos sobre os lucros destas e com especial destaque para a própria orientação do investimento.
[pull_quote_left]Abordar as desigualdades consiste num passo vital para devolver a saúde à economia global[/pull_quote_left]
Crucial é também a transparência no sector financeiro: recordando que há 30 anos o gap existente entre os rendimentos dos CEOs e o dos demais trabalhadores se cifrava em 30 para 1, na actualidade este gap é de 300 para 1 – “o que não significa, de todo, que os CEOs tenham ficado 10 vezes mais produtivos” , ironizou, “ e, em alguns casos, de 1000 para 1”.
Como notas finais, o Nobel da Economia sublinhou que “abordar as desigualdades consiste num passo vital para devolver a saúde à economia global” e que “mudanças graduais não serão, de todo, suficientes, para que tal aconteça”. Ao invés, é necessário que se estabeleça uma “agenda abrangente”, que produza alterações nas leis do trabalho, nas políticas fiscais e na política monetária, na medida em que “as decisões tomadas hoje [se inalteradas] terão efeitos ainda mais perniciosos nas desigualdades do futuro”.
[pull_quote_left]A verdadeira questão não reside na economia, mas na(s) política(s)[/pull_quote_left]
Tendo contrariado também a visão do economista francês Thomas Piketty que, no ano passado e com o seu livro “O Capital no Século XXI” viu serem-lhe apontadas as luzes da ribalta, Stiglitz não concorda com a proposta deste no que respeita à tese que defende sobre o aumento da desigualdade: se para Piketty, este crescimento se deve a uma inevitabilidade das mecânicas subjacentes ao sistema capitalista – em que o capital cresce de uma forma mais rápida que a economia, dando origem assim a mais desigualdades – para o Nobel da Economia não existem dúvidas que a solução reside numa “reinscrição urgente das regras da economia de mercado vigentes”.
E como enfaticamente rematou no final da conferência, “a verdadeira questão não reside na economia, mas na(s) política(s)”.
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