Não é de agora o fenómeno “sempre ligados”, mas foi a pandemia que o fez emergir como um dos temas mais urgentes para manter a sanidade mental dos trabalhadores e para garantir uma linha divisória entre a vida profissional e a vida fora dela. Com uma proposta de resolução feita pelo Parlamento Europeu que “convida”os 27 Estados-membros a garantirem aos trabalhadores o direito a desligar das ferramentas informáticas utilizadas para realizarem as suas funções profissionais, também em Portugal o “Livro Verde para o Futuro do Trabalho”, apresentado recentemente, se refere ao mesmo tema como “uma das matérias mais importantes e mais complexas de se tratar na regulação do mercado de trabalho”. Resta saber quando
POR HELENA OLIVEIRA

Para muitos de nós e como tem vindo a ser escrito incessantemente, a pandemia levou a uma mudança sem precedentes no mundo laboral, nomeadamente o facto de, e de um dia para o outro, largos milhões de pessoas terem começado a trabalhar a partir de casa. A brusquidão e a escala desta alteração é já comummente referida como uma “experiência em massa”, mas a verdadeira prova ainda está para vir, na medida em que os sistemas e processos que foram rapidamente improvisados para se trabalhar de acordo com as restrições da Covid-19 não foram concebidos para um mundo pós-pandémico de trabalho híbrido.

E à medida que as organizações começam a preparar-se para o tão falado futuro do trabalho – que irá criar uma força laboral bipartida – os que poderão gozar da flexibilidade do trabalho remoto, mesmo que seja uma ou duas vezes por semana e os que não têm condições para o fazer – a verdade é que pouco ainda se sabe sobre como será esta nova vida profissional no dia-a-dia, de como os benefícios da flexibilidade poderão vir a ser uma realidade bem-sucedida e, mais importante que tudo, quais serão os principais desafios a médio e longo prazo desta transição que, para muitas empresas, se afigura como quase certa.

No campo das leis laborais, nada de concreto foi ainda estabelecido e, ao que parece, não será tão cedo que poderemos contar com nova legislação para esta transformação tão significativa que, e apesar de muitos empregadores e empregados já a julgarem conhecer, trará decerto imprevisibilidades de ordem variada.

De acordo com um artigo publicado na The Conversation, existem vários pontos positivos relacionados com o sucesso do teletrabalho que tanto empregados como empregadores gostariam de manter à medida que formos saindo da pandemia, a qual e na verdade, continua envolta numa enorme incerteza. Mas o que os empregadores querem reter (aumento da produtividade, adaptabilidade, redução de custos) e o que os empregados querem manter (melhor conciliação entre vida pessoal e profissional, flexibilidade e o tempo ganho em deslocações que deixaram de fazer para os locais de trabalho) podem nem sempre ser compatíveis. As formas de trabalho a partir de casa que foram adoptadas durante a pandemia serviram para um período específico, com características jamais imaginadas e resultados, na sua maioria, surpreendentemente bons (apesar de não faltarem exemplos de aspectos que correram muito mal). Mas os horários, os novos padrões de trabalho e os níveis de produtividade alcançados podem não ser tão facilmente sustentáveis no período pós-pandémico.

E é por isso que a discussão de novas normas e o estabelecimento de novas leis laborais não pode demorar a acontecer.

Do lado do Parlamento Europeu (PE) e a 21 de Janeiro deste ano, foi adoptada uma resolução “convidando” a Comissão Europeia a sugerir uma directiva que garantisse aos trabalhadores o direito a se desligarem das ferramentas informáticas utilizadas para realizar o seu trabalho – mas não só – e, por cá, o Livro Verde para o Futuro do Trabalho, que teve a sua apresentação no Parlamento a 22 de Junho, em conjunto com vários temas de política laboral que se encontram em cima da mesa, os quais terão de esperar por Setembro para serem discutidos.

No que respeita ao “convite” feito pelo Parlamento Europeu, esta proposta de directiva irá exigir que os Estados-membros assegurem que os empregadores tomem as medidas necessárias para proporcionar aos trabalhadores os meios necessários para o exercício do seu direito de desligar, reiterando a necessidade de estabelecer um sistema “objectivo, fiável e acessível” para medir o tempo de trabalho diário. Todavia, e no website do próprio Parlamento Europeu, não existem ainda quaisquer datas propostas nem para a discussão, nem para a sua entrada em vigor ou implementação efectiva. Ou, e em suma, à partida parece não ser algo prioritário, mesmo que o regresso ao trabalho presencial já esteja a acontecer e que uma parte significativa dos trabalhadores (de acordo com vários inquéritos já realizados) não esteja com vontade alguma de perder a liberdade e flexibilidade a que se acostumou ao longo dos últimos 17 meses.

Mesmo assim, vale a pena conhecer alguns dos argumentos e medidas propostas pelo PE e, de seguida, também algumas das que constam no Livro Verde português, ainda em debate com os parceiros sociais.

Principais pontos da directiva europeia

O projecto de directiva para os 27 Estados-membros da União Europeia começa por admitir que “a digitalização e a utilização adequada de ferramentas digitais trouxeram muitas vantagens e benefícios económicos e sociais aos empregadores e trabalhadores”. Os benefícios, alguns deles acima mencionados, sublinham uma maior flexibilidade e autonomia, o potencial para melhorar o equilíbrio entre a vida profissional e familiar e a redução dos tempos de deslocação, sendo contudo e também elencadas várias desvantagens que incluem um conjunto de problemas éticos, jurídicos e laborais, de que são exemplo, entre muitas outros, a intensificação do trabalho e o alargamento do horário laboral, esbatendo assim as fronteiras entre o trabalho e a vida privada, o que contraria o tal equilíbrio desejado entre a vida profissional e pessoal.

A proposta endereçada aos Estados-membros reconhece igualmente que as ferramentas digitais para fins profissionais aumentaram a flexibilidade em termos de tempo, local e forma de efectuar o trabalho, sem esquecer o lado negativo de terem sido muitas as empresas que se “esqueceram” dos horários de trabalho, dada a facilidade de se ter o computador ou outro dispositivo sempre ligado mesmo enquanto se faz o jantar, se brinca com as crianças ou se goza um período que devia ser de lazer.

Para o PE, a utilização adequada das ferramentas digitais pode ser uma mais-valia para os empregadores e os trabalhadores, no sentido de permitir uma maior liberdade, independência e flexibilidade para se organizar melhor o tempo de trabalho e as tarefas com o mesmo relacionadas, reduzir o tempo gasto em deslocações para o local de trabalho e facilitar a gestão das obrigações pessoais e familiares, criando assim um melhor equilíbrio entre a vida profissional e familiar. Mas não deixa de reconhecer igualmente que as necessidades dos trabalhadores diferem consideravelmente, salientando, a este respeito, a importância de se desenvolver um quadro claro que promova a flexibilidade pessoal e a protecção dos direitos dos trabalhadores em simultâneo.

O documento sublinha igualmente o facto de que a utilização crescente de ferramentas digitais para fins profissionais deu origem a uma cultura do «sempre ligado», a qual pode ter efeitos prejudiciais para os direitos fundamentais dos trabalhadores e condições de trabalho justas, tanto em termos de remuneração, como no que respeita à limitação do tempo de trabalho e do equilíbrio entre a vida profissional e familiar, sem esquecer a segurança, o bem-estar e a saúde física e mental no trabalho. Por outro lado, esta mesma cultura tem, e como tem vindo a ser provado, um impacto desproporcional no que respeita aos trabalhadores com responsabilidades de prestação de cuidados que, e como também sabemos, tendem a ser mulheres, as quais são também, em muitos casos, as mais gravemente afectadas pelas consequências económicas e sociais resultantes da crise de Covid-19.

A proposta do PE apresenta igualmente dados obtidos em pesquisas realizadas pelo Eurofound [Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho] que mostram que mais de um terço dos trabalhadores da União Europeia começou a trabalhar em casa durante o confinamento – em comparação com 5% que habitualmente o faziam – e que 27% dos inquiridos em regime de teletrabalho declararam ter trabalhado no seu tempo livre para satisfazer as exigências do trabalho. Para o Parlamento Europeu, espera-se que este ritmo de trabalho continue mais elevado face ao período que precedeu a pandemia e que possa vir a aumentar ainda mais quando esta se desvanecer ou desaparecer (e se é que isso irá acontecer).

Até agora, os feitos psicológicos e físicos mais visíveis decorrentes de longos períodos de trabalho incluem uma redução da concentração, bem como uma sobrecarga cognitiva e emocional, sendo que os gestos repetitivos e a postura estática durante longos períodos de tempo podem causar igualmente tensões e lesões músculo-esqueléticas. É igualmente sublinhado que, e de acordo com a OMS, a nível mundial, mais de 300 milhões de pessoas sofrem de depressão e perturbações mentais comuns relacionadas com o trabalho, com 38,2% da população da União a manifestar um qualquer transtorno mental a cada ano. Desta forma, parecem não existir dúvidas que a utilização excessiva de dispositivos tecnológicos pode agravar fenómenos como o isolamento, a tecno-dependência, a privação do sono, os estados de ansiedade e o esgotamento emocional.

Adicionalmente, e para introduzir o tema-chave desta proposta de directiva, é salientado que uma conectividade constante – combinada com exigências elevadas no emprego e a expectativa crescente de que os trabalhadores estejam contactáveis a qualquer momento – pode afectar negativamente os direitos fundamentais dos trabalhadores, o equilíbrio entre a sua vida privada e a sua vida profissional, bem como a sua saúde e bem-estar físicos e mentais.

Desta forma, o Parlamento Europeu considera o direito a desligar como um direito fundamental da nova organização do trabalho nesta nova era digital. E considera que este direito deve ser encarado como um importante instrumento de política social ao nível da União para assegurar a protecção dos direitos de todos os trabalhadores, sendo particularmente importante para os que são mais vulneráveis e para os que têm responsabilidades de prestação de cuidados. Complementarmente, o documento sublinha ainda que este mesmo direito é vital para a protecção da saúde e bem-estar físicos e mentais dos trabalhadores e também para a sua protecção contra situações de risco psicológico, reiterando a importância e os benefícios da realização de avaliações dos riscos psicossociais ao nível das empresas públicas e privadas, bem como a promoção da saúde mental e a prevenção das perturbações mentais no local de trabalho, criando melhores condições tanto para os trabalhadores como para os empregadores.

Como se pode ler na proposta de directiva, o seu principal objectivo visa estabelecer os requisitos mínimos para permitir que os trabalhadores que utilizam ferramentas digitais para fins profissionais exerçam o seu direito a desligar e para garantir que os empregadores respeitem esse mesmo direito. Aplica-se a todos os sectores, tanto públicos como privados, e a todos os trabalhadores, independentemente do seu estatuto e das suas modalidades de trabalho. Pena é que não existam datas ainda propostas para a sua apreciação e posterior implementação, numa altura em que todas as questões aqui focadas estão já a acontecer.

E por cá, o que propõe o Livre Verde para o Futuro do trabalho?

Este é um documento chave de investimento estrutural, que tem que ter o compromisso social de todos nas várias dimensões. No fundo isto é um caderno de encargos e será uma espécie de carta de princípios, para enquadrar próximas revisões da legislação laboral”. Foi assim que Ana Mendes Godinho, ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social descreveu o âmbito do Livro Verde para o Futuro do Trabalho, no dia em que o mesmo foi apresentado aos parceiros sociais e tendo estado em consulta pública até ao passado dia 22 de Junho.

Encomendado pelo Governo a Guilherme Dray e Teresa Coelho Moreira, ambos especialistas em Direito Laboral, e contando com a participação de académicos, pensadores, sociedade civil e parceiros sociais, o seu objectivo e de acordo com o Executivo de António Costa, assenta na criação de 21 linhas orientadoras, para preparar o país para os desafios do futuro do trabalho, nomeadamente no que respeita às novas formas de prestação de trabalho e de relações laborais, à necessidade urgente de requalificação dos trabalhadores, ao trabalho à distância, ao trabalho nas plataformas digitais, à atracção dos denominados nómadas digitais, ao direito à privacidade e protecção de dados e, no que constitui o tema principal deste artigo, também à conciliação entre vida profissional e familiar, com o direito è desconexão.

Tal como se pode ler no site do governo, e tendo em conta a revolução digital, a inteligência artificial e a automação, bem como as tendências aceleradas pela pandemia e que já estão a transformar o mercado laboral mediante formas significativas, o futuro do trabalho lança desafios de ordem variada, que se materializarão em mudanças substanciais, as quais terão impacto não só nas gerações da actualidade, mas também nas do futuro.

Um deles, que tem sido objecto de discussão um pouco por todo o lado – e tal como acima enunciado na proposta de directiva feita pelo Parlamento Europeu – é o direito à desconexão (ou a desligar, nos termos acima mencionados) dada a sua relação directa com os tempos de trabalho e consequente necessidade da conciliação entre vida profissional e vida familiar. É que, e como sabemos, as crescentes pressões para a eleição da flexibilidade como algo que os trabalhadores, e na sua grande maioria, não querem abrir mão, e tendo em conta a introdução e omnipresença das novas tecnologias que potenciam uma conectividade permanente podem originar, por um lado, uma melhor conciliação entre vida familiar, pessoal e profissional, mas, ao mesmo tempo, novos problemas com a limitação e delimitação dos tempos de trabalho.

De acordo com o Livro Verde, “a temática dos tempos de trabalho, da respectiva organização e duração, é marca de origem do Direito do Trabalho, sendo esta uma das matérias mais importantes e mais complexas de se tratar na regulação do mercado de trabalho”.

E a complexidade só aumentou não só com as exigências colocadas pela pandemia, mas tendo já como pano de fundo anterior a nova economia digital que tornou cada vez mais difícil a diluição das fronteiras entre o tempo de trabalho e o tempo de repouso dos trabalhadores. Este esbatimento das linhas que separam ambos os “tempos” foi particularmente provocado pela facilidade crescente das tecnologias de comunicação, mas também pela corrosão da separação entre o local de prestação de trabalho e os locais que tradicionalmente eram de não trabalho, nomeadamente o domicílio, por via das tecnologias que permitem o trabalho à distância.

O Livro Verde declara que esta questão, apesar de estar mais intimamente relacionada com formas de prestação laboral como o teletrabalho, é igualmente transversal à omnipresença

das novas tecnologias de informação e comunicação em vários domínios de trabalho, sendo neste âmbito que se tem vindo a defender – e não só por causa da pandemia – este direito à desconexão, bem como a sua regulação, como “uma nova frente de direito à privacidade no século XXI”. E sempre tendo em consideração a questão da conciliação.

Tal como também é exposto no Livro Verde, “não existe uma definição legal do direito à desconexão, mas é comum entender-se este direito como a faculdade que aos trabalhadores é assegurada de, fora do período de trabalho, desligarem os seus meios de comunicação electrónica (sejam estes smartphones, tablets, ou computadores portáteis) ou de, tendo-os ligados, não atenderem ou responderem a chamadas telefónicas, mensagens de texto ou mensagens de correio electrónico profissionais”. No que diz respeito, especificamente, ao direito à desconexão, têm existido iniciativas legislativas sobre esta matéria em diferentes países, de que são exemplo França, Itália, Bélgica ou Espanha, todos eles com enquadramentos legais específicos.

O Livro Verde para o Futuro do Trabalho cita também a proposta acima sumarizada por parte do Parlamento Europeu, chamando atenção para o facto de os Estados-membros deverem garantir que os trabalhadores que invoquem o seu direito à desconexão estejam protegidos contra eventuais repercussões e que existam mecanismos para responder a queixas neste âmbito. Adicionalmente, também as actividades de formação à distância devem ser consideradas enquanto actividade laboral e não devem, portanto, ter lugar em horários ou dias de não trabalho sem que haja lugar à devida compensação.

Em suma, tanto as alterações na lei laboral portuguesa, como a resoluções publicadas pelo Parlamento Europeu parecem estar em linha com alguns dos desafios que se colocam ao futuro do trabalho. O problema é que este futuro já começou e o tempo que irá demorar a discutir e, se tudo correr bem, a legislar e a implementar as medidas enunciadas não parece estar tão próximo quanto o que seria desejável.

Editora Executiva