A ideia vigente que a liderança é uma actividade separada – e superior – aos actos de gestão continua a definir muitas organizações, isolando os que se mantêm nas suas torres de marfim e minando, de forma crescente, o sentimento de comunidade e pertença que as deveria pautar. Fazer renascer a ideia da empresa enquanto uma comunidade de pessoas que trabalha em prol de um bem comum é um imperativo a seguir
POR
HELENA OLIVEIRA

A crise financeira e económica que abalou o mundo em 2008, apesar de muito dissecada no que respeita aos principais motivos que lhe deram origem, obrigou igualmente a que se tentasse interpretar uma outra crise que lhe estava – e continuar a estar – subjacente: a significativa desvalorização e depreciação das empresas enquanto comunidades de indivíduos que devem perseguir um objectivo comum.

Assente na perigosa perda de um sentimento de pertença e de “cuidado” por algo que deveria ser superior a qualquer interesse individual, e que se foi intensificando devido a décadas de gestão de curto prazo, a “empresa desumana” daria origem a um inflacionamento da importância e poder do CEO reduzindo, por seu turno, os seus demais elementos a meras “mercadorias”, as quais poderiam ser deitadas fora – graças ao sempre explicável downsizing – e/ou facilmente substituídas por outras. Assim, muitos executivos adoptaram o que se transformou num estilo predominante de liderança: do alto das suas torres de marfim, os líderes anunciavam os objectivos que outros deveriam, a todo o custo, alcançar, em vez de a eles se juntarem “no terreno” e, em conjunto, ajudarem a melhorar e a aumentar a performance da empresa. Como referia Henry Mintzeberg, num artigo publicado na Harvard Business Review apenas um ano a seguir ao deflagrar da crise, “os executivos não sabiam o que se passava e os empregados não se preocupavam com o que se estava a passar”. O que acabaria por resultar num gigantesco erro de gestão.

Em graus variados de gravidade, o mesmo erro ocorreu em todo o sector público e privado: a crença de que a liderança era uma actividade separada – e superior – aos actos de gestão mantinha-se bem viva, a qual acabou por isolar os que detinham posições de liderança e, consequentemente, foi destruindo de forma crescente o sentimento de comunidade que deveria pautar a organização.

[pull_quote_left]Como transformar uma empresa que se assume como uma colecção de recursos humanos numa organização que funcione como uma comunidade de seres humanos?[/pull_quote_left]

No entanto, a crise que iria colocar a economia global de joelhos acabou também por dar origem a uma urgência de se redefinir o papel do líder, da empresa, dos seus membros, dos seus direitos e deveres e, em particular, de se encontrar uma nova forma de gestão mais consonante com o bem-estar interno e externo da organização, sem se perder de vista os objectivos “tradicionais” que a definem. Muito já foi escrito e reescrito sobre o tema, mas a verdade é que são ainda muitas as empresas que teimam em desconhecer o valor de um ambiente assente na confiança, numa cultura que seja facilmente identificada e vivida pelas pessoas que nelas trabalham e a ideia de que as organizações funcionam muito melhor – sendo, por isso, muito mais lucrativas – em relações de cooperação que tenham como base o respeito.

Em finais de 2014, e no seguimento de um repto lançado pela ACEGE, Miguel Pina e Cunha, Professor na Nova School of Business and Economics (Nova SBE) e actualmente presidente do conselho científico da mesma, em conjunto com vários seus pares académicos, apresentou um paper que teve como principal objectivo explorar a forma como os líderes interpretavam uma “cultura de amor” nas organizações em que trabalhava. O paper, intitulado, “All You Need Is Love? A Contemporary Organizational Phenomenon”, sobre o qual o VER escreveu, teria como principal conclusão a ideia de que este “amor organizacional” nada mais é do que a prática de um espírito de comunidade no interior das empresas. Este tema será debatido no 6º Congresso da ACEGE, a ter lugar nos dias 5 e 6 de Junho em Lisboa, e o VER apresenta, de seguida, alguma fundamentação teórica, retirada da literatura de gestão, sobre este conceito, adoptado crescentemente por um número significativo de empresas, que encara a organização, e o seu funcionamento, como se o de uma comunidade – unida por interesses comuns – se tratasse.

Henry Mintzberg e o conceito de communityship

21052015_DosRecursosHumanosAcomunidadeDePessoasO reconhecido académico, autor e guru da gestão Henry Mintzberg “inaugurou”, em 2006, no Finantial Times, regressndo ao mesmo, em 2009, na Harvard Business Review, um novo conceito – sem tradução literal, na medida em que a palavra é igualmente inexistente na língua inglesa – denominado communityship, o qual abarca as principais características de uma organização que se rege por princípios “comunitários”.

Para o autor de vários best-sellers na área da gestão, sendo o mais recente o livro “Rebalancing Society: Radical Renewal Beyond Left, Right, and Center”, a melhor forma de se (re)construir uma comunidade no interior da empresa é acabar com as práticas que a desumanizam: nomeadamente, tratar os indivíduos como meros recursos humanos, despedindo-os em grande escala quando a empresa não atinge os seus objectivos de performance, mesmo que se mantenha lucrativa; deixar de tolerar os obscenos pacotes de compensações para os seus CEOs (especialmente nos casos em que estes servem como forma de “retenção”, recebendo bónus por fazerem aquilo pelo que são pagos através de um salário); deixar de exibir, e praticar, um desrespeito geral pelo passado da empresa, em particular pelos valores que compõem a sua cultura e, por fim, mas não menos importante, sobrevalorizar o peso e o poder da liderança.

Ou, por outras palavras, a organização tem de abandonar os seus comportamentos individualistas, em conjunto com muitas das suas medidas de curto prazo, a favor de práticas que promovam a confiança, o compromisso e envolvimento de todos os seus “constituintes”, e promovendo a colaboração espontânea que tem como objectivo crucial a sustentabilidade e o respeito para com todos os seus stakeholders.

Mas como transformar uma empresa que se assume como uma colecção de recursos humanos numa organização que funcione como uma comunidade de seres humanos?

[pull_quote_left]A ideia da empresa enquanto comunidade privilegia uma forma mais “modesta” de liderança[/pull_quote_left]

Em primeiro lugar, o conceito de communityship não “aceita” a figura do líder egocêntrico e “heróico”, o qual continua a prevalecer na maioria das organizações. A ideia da empresa enquanto comunidade privilegia uma forma mais modesta de liderança, a qual pode ser caracterizada por um maior envolvimento e por uma gestão “distributiva”. Para Mintzeberg, um líder de uma comunidade desta natureza precisa de estar pessoalmente envolvido com a missão e valores da organização para ser capaz de envolver os demais, no sentido de que cada pessoa pode e deve exercer a “sua parte”. Neste caso em particular, Mintzberg faz uma analogia com o funcionamento de várias operações em open source, como a Wikipedia ou o Linux. Em segundo, e como escreve “uma organização sem uma cultura convincente é como uma pessoa sem personalidade, apenas de carne e osso, mas sem vida ou alma”. Ou seja, uma organização funciona muito melhor se as suas pessoas trabalharem com base em relações de cooperação. Se este relacionamento é destruído, toda a instituição colapsa, o que, como sabemos, continua por demais evidente em muitas empresas da actualidade. No que respeita à liderança, o modelo tem de ser diferente, abandonando a ideia de que o líder tem de estar no topo – e exercer as suas funções deste para as bases -, passando a estar no centro, o que lhe permite “alcançar” mais facilmente todos os que o rodeiam, facilitando a mudança e reconhecendo que uma grande parte desta pode, e deve, ser levada a cabo pelos demais.

Elegendo a denominada “hierarquia aberta”, a qual tem uma ideia muito mais abrangente do que se passa no interior da organização, Mintzberg sublinha ainda a existência de outras vantagens que lhe estão associadas, na medida em que esta se encontra melhor posicionada para estabelecer as ligações necessárias entre as operações e a estratégia. E, para o académico e autor, os gestores intermédios têm um papel de relevo neste tipo de “comunidade”, estabelecendo pontes e levando a cabo mudanças que, por mais pequenas que sejam, quando plantadas por pessoas envolvidas e comprometidas com a missão do todo, dão origem a uma melhor compreensão, tanto das especificidades operacionais, como da “big picture”, contribuindo para alterar, para melhor, a própria estratégia da empresa.

Mintzberg defende assim a existência de pequenas equipas que promovem a mudança, transformando-se de seguida em exemplos a seguir por outros grupos, disseminando desta forma o sentimento de communityship por toda a organização. Este sentimento de compromisso torna-se contagioso quando as pessoas percebem não só os benefícios que o mesmo traz tanto à organização como a si mesmas. E uma organização sabe que a communityship está firmemente enraizada quando os seus membros atingem formas socialmente activas, responsáveis e mutuamente benéficas para a comunidade alargada. Aos empregados de uma empresa que não funciona como uma comunidade não pode ser exigido que se preocupem com quaisquer outras externalidades. Já os membros de uma empresa que possua um sentido forte de comunidade conseguem perceber o quão a sua organização depende de um envolvimento construtivo com as comunidades que a envolvem para atingir um sucesso e performance sustentáveis.

Assim, e como finaliza Mintzberg, o verdadeiro teste que permite a uma empresa definir-se como uma verdadeira comunidade reside na capacidade que as suas pessoas têm de se considerarem cidadãs responsáveis no ambiente que as rodeia e no qual têm um impacto real e positivo.

Sentimento de pertença e liderança de serviço

21052015_DosRecursosHumanosAcomunidadeDePessoas2Num livro publicado em 2008, intitulado “Community: The Structure of Belonging”, o consultor Peter Block, que trabalha com organizações variadas em prol do desenvolvimento do conceito de “comunidade”, encoraja uma mudança na forma como é costume defini-la e que expressa bem o seu significado no meio empresarial. Na verdade, o ideal de comunidade que pode unir uma empresa nada mais é do que o sempre ambicionado desejo de pertença.

E, de acordo com Block, o primeiro e mais urgente desafio é transformar o sentimento de isolamento, fragmentação e de auto-interesse vigente numa experiência de ligação e interesse pelo “todo”. Para que tal seja uma realidade, cabe aos líderes criarem estruturas que promovam o envolvimento de toda a empresa, criando um contexto que apele a um futuro alternativo que tenha como base a generosidade, a responsabilização e o compromisso, impulsionando um maior diálogo que inclua toda a organização e onde escutar e prestar verdadeira atenção faça parte do “serviço” da liderança.

Tal como Mintzberg, Block é apologista da criação de pequenos grupos, aos quais chama de “unidades de transformação”, que criam inicialmente um ambiente de intimidade nos membros que o compõem, tornando o processo mais pessoal. Ou seja, que forneça a estrutura necessária para as pessoas ultrapassaram o isolamento que sentem e iniciarem o processo de pertença. Existem já várias organizações que estão a adoptar esta estratégia, questionando os seus colaboradores sobre o contributo que gostariam de oferecer para ir ao encontro da missão da empresa e sobre o que gostariam de alterar na sua cultura, por exemplo, aumentando o seu grau de envolvimento e compromisso em prol do seu próprio bem e do bem comum.

[pull_quote_left]O ideal de comunidade que pode unir uma empresa nada mais é do que o sempre ambicionado desejo de pertença[/pull_quote_left]

Adicionalmente e inerente à noção de “comunidade”, existe também a denominada liderança de serviço, ou “guardiã” – no sentido de zelar pelos interesses dos seus membros e não colocar a ambição, os interesses pessoais e os benefícios próprios à frente dos da organização. Esta noção remonta ao período renascentista e, por contraditório que possa parecer, foi o cínico Maquiavel a insistir que a liderança só poderia ser uma “actividade” virtuosa se tivesse como objectivo principal o bem de toda a comunidade. Ou, por outras palavras, um bom líder era o guardião da comunidade, eleito para lutar por ela e servir os seus interesses.

Assim, e no abismo crescente a que assistimos entre o que se pretende e se espera de um líder e o que realmente se recolhe do mesmo, é natural questionarmo-nos se este é o tipo de liderança que melhor serve os interesses de cidadãos, empregados, clientes, comunidade e demais stakeholders.

Para os que advogam que a resposta só pode estar na liderança de serviço, há que ter em atenção que esta não tem a ver com os conceitos tradicionais de posse ou controlo, que não é uma técnica, mas antes uma atitude, uma forma diferente de olhar para o mundo. Não sendo por isso passiva é, ao invés, uma forma de manter a visão e a esperança de acordo com os ideias e sistemas de valores que sustentam a empresa, vivendo-os de forma a servir de exemplo para os demais. Significa também erguer a fasquia para os que são “liderados”, ajudando-os a alcançar o seu maior potencial, capacitá-los e convencê-los que é possível remover os obstáculos que muitas vezes os impedem de ir mais longe. Mas, para que tal aconteça, é necessário que o líder mantenha a noção do “todo”, bem como o rumo. Para benefício de todos.

Editora Executiva