Um planeta árido e hostil habitado por um povo misterioso e vermes gigantes, uma droga que concede poderes sobre-humanos, um conflito intergaláctico que mergulha as suas raízes numa tragédia aos modos da Grécia Antiga ou de Shakespeare. Os principais ingredientes que formam a base de Dune, de Frank Herbert, explicam o seu sucesso: com estimativas que chegam aos 30 milhões de exemplares, será provavelmente o romance de ficção científica mais vendido do de sempre. E a sua originalidade sente-se em particular sob duas dimensões intimamente relacionadas: a da ecologia e a da economia, que explicam porque Dune, cuja escrita foi iniciada há mais de sessenta anos, continua a ecoar preocupações muito contemporâneas
POR PEDRO COTRIM

Não é por acaso que vários realizadores ponderaram a sua transposição para o ecrã antes de Denis Villeneuve fazer sua própria versão. A força da obra reside na extrema coerência do universo que desenvolve, no qual Frank Herbert trabalhou com um cuidado maníaco, suportado pela sua curiosidade enciclopédica. A sua originalidade sente-se em particular sob duas dimensões intimamente relacionadas: a da ecologia e a da economia, que explicam porque Dune, cuja escrita foi iniciada há mais de sessenta anos, continua a ecoar preocupações muito contemporâneas.

A representação que Herbert fez de Arrakis e dos seus ecossistemas mostra a complexidade dos ambientes desérticos. Salienta de como ambientes aparentemente inóspitos como os desertos podem albergar ecossistemas intrincados e frágeis. A interdependência entre várias espécies, como os vermes da areia, os organismos produtores de especiarias e os indígenas Fremen, realça o delicado equilíbrio necessário à sobrevivência.

«O poder sobre a especiaria é o poder sobre todas as coisas», anuncia uma narração no preâmbulo da segunda parte do filme. O acesso a esta substância com aroma a canela, apenas encontrada nas grandes extensões desérticas que cobrem completamente o planeta Arrakis (o outro nome do planeta Dune), é uma questão geoestratégica importante no início do romance de Frank Herbert.

A especiaria, um bem insubstituível, é utilizada como droga por várias castas poderosas do Império com o objetivo de prolongar a vida e aumentar as capacidades cognitivas, particularmente importantes para as viagens espaciais. No início do romance, a Casa Atreides, uma eminente família nobre dentro do império interestelar que abrange o mundo conhecido, é encarregue da gestão de Arrakis e, portanto, da responsabilidade pela produção de especiarias, isto num golpe de audácia perante o seu grande rival, a casa Harkonnen, que detinha o monopólio. É na realidade uma armadilha preparada pelos Harkonnen com a cumplicidade do imperador, com a intenção de derrubar esta casa por ele julgada demasiadamente poderosa.

A especiaria ilustra perfeitamente a distinção feita pela teoria económica entre valor de uso e valor de troca. Desde a sua publicação, muitos entusiastas da obra viram na especiaria uma transposição do petróleo, a droga da qual o mundo se tornou dependente para garantir a sua prosperidade. Uma interpretação que ganhou credibilidade pelo facto de o primeiro romance de ficção científica publicado por Herbert, O Dragão Submarino, ter em 1956 antecipado os conflitos globais em torno do acesso ao petróleo.

No entanto, podemos ver em Dune uma crítica mais global ao extrativismo, em que o autor descreve detalhadamente os diferentes aspetos da exploração da especiaria: desde os colossais investimentos à mecanização e o refinamento que exige, até à formação de um preço de mercado a nível global, incluindo as dimensões de colonização e predação que implicam para a população nativa do planeta Dune.

Aliás, e como acima enunciado a especiaria ilustra perfeitamente a distinção feita pela teoria económica entre valor de uso e valor de troca: se a especiaria, disponível em abundância no planeta Dune, tem pouco valor aos olhos dos Fremen, o povo indígena que vive na região desértica, alcança preços altíssimos nos mercados do resto do império, onde representa grande riqueza.

Contudo, e como sublinha Frank Herbert, a verdadeira riqueza de Dune não são as especiarias, mas a água, muito rara no planeta mas essencial à vida. O seu carácter precioso é afirmado desde as primeiras páginas do romance através do olhar dos Atreides, oriundos de um planeta onde está disponível em abundância: observam com espanto as práticas engenhosas implementadas pelo trabalho dos Fremen para recuperar ou reciclar cada gota de água.

Se a insistência de Herbert no valor da água ressoa acidamente no contexto atual marcado pela repetição e intensificação de episódios de seca, podemos imaginar quão distante estava a América dos anos sessenta destas circunstâncias. Foi a altura da publicação do primeiro volume do romance e esta visão do autor foi fruto de uma pesquisa por si realizada uns anos antes para escrever um artigo sobre as tentativas de retardar o avanço das dunas de Florence, no Oregon, que ameaçavam a vegetação e os recursos de água potável.

O interesse pelo ambiente foi uma constante na sua vida, pois, entre as muitas profissões que exerceu, foi observador de incêndios florestais e conselheiro social e ecológico em missão no Paquistão e no Vietname na década de setenta.

É lógico, assim, que Dune apareça retrospetivamente como o primeiro romance de ficção científica a dar tamanho ênfase à ecologia. Mas, sob a pena de Frank Herbert, tal não é compreendido do ponto de vista da preservação da natureza, mas do ponto de vista da ciência das interações entre os seres vivos. «A função mais elevada da ecologia é a compreensão das consequências», diz o autor pela voz de uma das personagens.

Se esta obra é frequentemente descrita como um universo-livro, é-o na verdade, e antes de mais nada, porque Herbert imagina o ecossistema do planeta Dune em todos os detalhes e mostra como este ambiente molda a sociedade humana em que vive, os seus hábitos e costumes, os seus valores e as suas crenças, mas também de como a intervenção humana pode ter, por sua vez, impacto neste ambiente.

Neste sentido, uma das personagens-chave do romance, cuja importância não foi acautelada nas adaptações de David Lynch e Denis Villeneuve, é Liet-Kynes, o ecologista imperial. Responsável por estudar a flora e a fauna do planeta e supervisionar a transição de poder entre os Harkonnen e os Atreides, o oficial está na realidade muito envolvido com os Fremen. Em particular, tem a ideia secreta de transformar o planeta num mundo mais hospitaleiro, verde e fértil, mas a concretização deste projeto a longo prazo traz consigo o desaparecimento do ecossistema desértico de Dune, e, portanto, dos vermes gigantes que o habitam e que estão na origem da especiaria.

Herbert não tem, portanto, uma visão estática da natureza, e a palavra-chave que parece percorrer a sua obra parece ser «adaptação», conforme anota Denis Villeneuve num prefácio bastante inspirado à edição revista e corrigida de Dune. Um termo que, uma vez mais, tem eco nos tempos atuais.

A originalidade do romance reside também na forma como o sistema político se baseia em fundamentos económicos. O corpo de poder mais poderoso no universo Dune é a «Combine of Honest Ober Merchants», uma empresa controlada pelo Imperador e pelas Grandes Casas com a organização que garante viagens espaciais, e as Bene Gesserit, uma ordem religiosa exclusivamente feminina como associados sem direito a voto, especifica Herbert no «Lexicon of the Imperium», por si adicionado ao romance. O CHOM é uma vasta rede comercial por onde passa a maior parte dos bens produzidos no Império e onde a especiaria proporciona a maior parte dos ganhos, dos quais as Grandes Casas dependem estreitamente para financiamento.

As Casas maiores, que detêm feudos planetários, são chamadas «empreendedores interplanetários» por Herbert, enquanto as Casas menores são «empreendedores planetários». «O capitalismo selvagem é avassalador, implacável, trapaceiro, com conotações colonialistas, gerando entidades corporativas psicopáticas; em suma, este sistema é Harkonnen», afirma Denis Villeneuve.

O universo de Dune é, portanto, governado como um conselho de administração multinacional numa situação de quase monopólio e o seu feudalismo económico não deixa de ter características comuns com o capitalismo de hoje.

Seguindo o mesmo caminho, podemos traçar um paralelo entre a Guilda, que detém o monopólio das viagens espaciais, e o Google, que domina quase completamente as pesquisas na Internet. E talvez mesmo com Elon Musk, que, dependendo das suas mudanças de humor, pode influenciar o curso da guerra na Ucrânia, favorecendo este ou aquele lado graças à sua constelação de satélites Starlink.

É claro que Frank Herbert, falecido em 1986, não testemunhou o surgimento destes titãs digitais liderados por multimilionários. Estava preocupado com a ascensão de empresas de monopólio como a AT&T e a IBM nas décadas de 1960 e 1970. Denis Villeneuve, muito atento ao tema, sabe que a superestrutura de Dune bem permitia esta comparação, mas acabou por mostrar muito pouco dela no seu filme. É a sua visão artística sobre o enorme corpo conceptual de Dune. Talvez outras análises possam dar novos filmes deste grande clássico.

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