Não é. Mas ainda pode ser o ano em que pensamos melhor na forma como as usamos. Durante estes 20 anos de uso intensivo e crescimento exponencial das redes sociais muita coisa mudou e temos pelo menos já duas gerações que não se lembram da vida sem ser a duas velocidades, a real e a digital. Discutir se é melhor ou pior com internet é tão idiota como discutir se preferimos viver com ou sem eletricidade, com ou sem água canalizada. Mas a forma como isso tem sido usado para impedir a discussão cada vez mais urgente sobre as redes sociais, espaço onde a maior parte das pessoas se encontra na dita internet, tem de mudar
POR RUTE SOUSA VASCO
Antes compravam-se jornais e televisões. Agora compram-se redes sociais.
Muitos podem ver nisto apenas mais um ciclo natural do progresso. O problema é que não é. Em primeiro lugar, porque nunca o poder de influenciar, condicionar, moldar esteve tão concentrado nas mãos de tão poucos e, em segundo lugar, porque nunca a tecnologia chegou de forma tão rápida a tantos. Ambas as circunstâncias são únicas na história da humanidade: a existência de monopólios da influência à escala global e a exposição diária de cada um de nós a uma quantidade de informação muito superior à que conseguimos sequer processar.
Nos jornais e nas televisões discutia-se muito sobre quem controlava a informação e, inevitavelmente, havia notícias de pressões e de pressionados. A forma como o mundo nos era (e é) apresentado era selecionada por vários crivos e não era perfeita – sabíamos disso.
As redes sociais sempre tiveram donos e foram sempre um negócio, mas convenceram os seus utilizadores que o poder estava nas suas mãos. Eram eles, os utilizadores, com os seus ‘gostos’ e partilhas e comentários que decidiam o que era bom ou mau, quem tinha sucesso, quem era crucificado, quem podia ser perdoado. Uma espécie de milagre tecnológico de exercício do poder popular.
A própria designação dos sujeitos de ação nas redes sociais – utilizadores – alterava as regras do jogo de media, mesmo que partindo de uma expressão funcional própria da engenharia [‘user’ ou utilizador]. Mas as palavras importam e esta também importou. Deixávamos se ser meros sujeitos passivos como os espectadores, ouvintes ou leitores, e passávamos a ter o poder de “utilizar” um meio e cada um de nós podia ser dono da sua audiência sem depender do crivo, e das conveniências, de terceiros. Finalmente livres do totalitarismo dos media.
Durante estes 20 anos de uso intensivo e crescimento exponencial das redes sociais muita coisa mudou e temos pelo menos já duas gerações que não se lembram da vida sem ser a duas velocidades, a real e a digital. Discutir se é melhor ou pior com internet é tão idiota como discutir se preferimos viver com ou sem eletricidade, com ou sem água canalizada. Mas a forma como isso tem sido usado para impedir a discussão cada vez mais urgente sobre as redes sociais, espaço onde a maior parte das pessoas se encontra na dita internet, tem de mudar.
Somos todos editores, temos todos audiências
Vamos por partes.
A ideia do progresso da internet foi fabricada por aqueles que realmente progrediram com a internet e elevada a Santo Graal pelos ressentidos do mundo dos media pré-internet que tinha os problemas que tinha. Não deixa de ser curioso que uma das primeiras profissões visadas pela ‘democracia’ das redes sociais tenha sido a de editor – aquele que escolhe o que vemos, o que ouvimos, o que lemos. Na música, na literatura, na informação, os editores foram as primeiras vítimas de um mundo onde todos são editores ‘for the greater good’.
Este movimento acompanhou o aumento exponencial de ‘conteúdos’ que encontramos a toda a hora, em todas as plataformas. Há uma espécie de ruído ensurdecedor e infindável de todos os seres humanos – somos 8 mil milhões e mais de cinco mil milhões a usar redes sociais – que todos os dias filmam, fotografam, escrevem. Não é estranho que muitas vezes seja só uma gritaria expressa em vídeos histriónicos ou nas formulações de ideias escritas mais absurdas – há demasiada gente a concorrer pela atenção e vale tudo.
Sendo que nunca se sabe bem o que ganhará espaço de atenção – ou porquê, ou com que dimensão. É uma espécie de cocktail de oportunidade atrás do qual correm marketeers convencidos que há ciência nisso.
O mundo que ia ficar muito melhor, porque todos tinham espaço de media, enfrenta hoje uma avalanche potencialmente incontrolável – pelo menos à data de hoje. Os cinco minutos de fama com que tantos sempre sonharam são agora uma realidade de milhões e um anseio de outros tantos. Ter seguidores não é um desafio de especial sofisticação. O maior YouTuber do mundo ganhou legiões a oferecer dinheiro e depois dele seguiram-se sucedâneos com mais ou menos escrúpulos.
O ‘vírus’ Hawk Tuah
O ‘vírus’ Hawk Tuah é uma boa medida do delírio digital. A jovem Hailey Welch era só uma miúda do Tennessee como qualquer outra até ser entrevistada por um Youtuber que tem por hábito fazer perguntas de cariz sexual a mulheres. Aconteceu assim um imprevisível vídeo “Hawk Tuah” e, da noite para o dia, literalmente, milhares de pessoas passaram a seguir uma desconhecida e a desconhecida fez disso um negócio.
A 4 de dezembro, elevou a parada e lançou $HAWK, uma criptomoeda. Em menos de 20 minutos, a moeda perdeu mais de 95% do seu valor e surgiram acusações de que a sua promotora tinha feito o que é designado como um “rug pull” ( esquema em que os criadores de um projeto o abandonam repentinamente e levam consigo os fundos dos investidores). Ou seja, que tinha roubado milhões aos seus fãs. Welch e a equipa de marketing digital (!) que, entretanto, tinha constituído em resultado da fama da personagem Hawk Tuah tentou salvar a situação através de uma transmissão ao vivo no X Spaces, mas o evento – assistido por milhões – ficou fora controlo, a protagonista saiu em modo abrupto e anunciou simplesmente que ia dormir. Sobre o dinheiro? Nada. A equipa de Tuah /Welch enfrenta agora vários processos judiciais, não voltou a publicar no X nem a apresentar o seu podcast Talk Tuah desde então.
Se estão a sentir-se um bocadinho como no filme “Tudo em todo o lado ao mesmo tempo”, não tem mal, é até bom sinal.
Revisitar a história. “Qual é o mal” de haver tanto lixo e ruído
Em 2024, o psicólogo social Jonathan Haidt publicou The Anxious Generation em que partilha dados sobre o impacto que os smartphones, as redes sociais e o tempo constante online têm na infância. Também no ano passado, o neurocientista Michel Desmurget publicou “Ponham-nos a ler: o antídoto contra os cretinos digitais”. Muitos pais levaram a sério os vários alertas, mais escolas estão a limitar a utilização de smartphones nos recreios e um país, a Austrália, deu mesmo um passo mais à frente e proibiu a utilização de redes sociais para jovens até aos 16 anos.
Vivemos provavelmente o tempo de maior relativismo da história da humanidade e, claro, que há quem questione estas medidas e os dados que as suportam. Há livros escritos a defender que a humanidade está muito melhor por causa da internet, mesmo que quando olhamos à volta tenhamos essa estranha impressão de que os humanos vivem tempos especialmente caóticos. As famosas perceções serão invocadas e os imbecis úteis perguntarão “qual é o mal” de haver tanto lixo e ruído naquilo que se convencionou chamar conteúdo.
Talvez ajude recuarmos na história para de novo verificarmos como se repete. É quase senso comum que a invenção da imprensa foi o trampolim para uma idade de progresso na humanidade com a partilha de conhecimento e a troca de ideias. É menos comum sermos rigorosos com esse calendário, exercício que o historiador Yuval Harari faz no seu último livro “Nexus”.
O livro Malleus Maleficarum (ou “O Martelo das Bruxas”) foi escrito em 1487 e era um guia para identificar e levar a julgamento bruxas, tendo sido usado por tribunais eclesiásticos e seculares. Continha um conjunto de diretrizes, como a aparência de uma bruxa, o seu comportamento e como deveria ser interrogada. Toda a informação – desde declarações de testemunhas até confissões sob tortura – era interpretada e organizada dentro desse enquadramento. É considerado um dos livros mais infames da história pelo papel que desempenhou na perseguição às mulheres acusadas de bruxaria na Europa durante a Idade Moderna.
Malleus Maleficarum foi também um dos livros mais vendidos nos séculos seguintes à invenção de Johannes Gutenberg, amplamente distribuído, em parte graças à tecnologia da imprensa. Foi reimpresso diversas vezes em diferentes edições entre os séculos XV e XVII, refletindo sua influência duradoura no contexto das perseguições. Acredita-se que cerca de 40 mil a 60 mil pessoas tenham sido executadas por acusações de bruxaria, e este livro contribuiu para muitas dessas tragédias. Não foi o livro, nem a tecnologia que o determinou – foram as pessoas que o fizeram e é com essa matéria humana que também hoje temos de lidar.
À data de hoje temos crianças, jovens e adultos a regredir na sua capacidade de aprender, de se relacionar e de ter empatia. Atributos fundamentais em qualquer contexto do progresso humano. Temos um aumento de problemas de saúde mental, os reais e os imaginados, e uma série de psicólogos, neurocientistas, sociólogos e historiadores a dizerem que há uma correlação com o tempo passado nas redes sociais. Temos pessoas de todas as gerações que querem ser seguidas, por vaidade, ego trip ou/e também negócio. O que é compreensível quando, sobretudo os mais jovens, percebem que se paga por posts e vídeos de que não vai rezar história aquilo que não receberiam em três ou seis meses de ordenado.
Há cerca de 70 anos fizeram-se os primeiros estudos a série sobre o tabaco, disseram-nos que mata e que as crianças não devem nunca fumar. Hoje há estudos que nos dizem que a utilização desregrada de redes sociais está a matar a nossa inteligência – não conseguimos reter frases com mais de 140 carateres ou ver vídeos com mais de 30 segundos – e sobretudo a nossa empatia.
Os donos das redes sociais não deixam os filhos passar muito tempo online, controlam telemóveis e as suas próprias plataformas. O que vemos – e o que não vemos – nas redes sociais não é um exercício de plena liberdade e em alguns contextos pode ser exatamente o inverso. As redes sociais são, além de um negócio, o exercício menos escrutinado de influência e o algoritmo não é uma entidade divina.
Muito do que se passa nas redes sociais perdeu o rumo – melhor será dizer o juízo. Podemos não seguir o mesmo caminho.
Artigo originalmente publicado no SAPO24. Republicado com permissão.
Jornalista e publisher na MadreMedia, uma empresa editorial responsável pelo SAPO24, site de informação do Portal SAPO, pelo The Next Big Idea, programa de televisão em exibição na SIC Notícias desde 2012 e por um conjunto de newsletters, podcasts e séries documentais. Autora de dois livros, “A sorte dá muito trabalho” (2012) e “Banco bom, Banco mau” (2014). Mãe do Miguel e da Margarida. Coisas que adora fazer: ler, escrever, cozinhar e discutir ideias.