POR GABRIELA COSTA
“Todos nós – pais, professores, comunidades, governos – devemos assegurar que a tecnologia e os novos Media ajudam à aprendizagem e ao desenvolvimento das crianças, e não a que se tornem presas de exploração e abusos sexuais” – Thorbjørn Jagland, Secretário Geral do Conselho da Europa (Novembro de 2017)
A exploração e o abuso sexual de crianças e jovens são flagelos que configuram violações sérias dos seus direitos e têm implicações profundas na sua saúde física e psicológica, que se perpetuam ao longo da vida.
Com o objectivo de apelar aos Estados-Membros do Conselho da Europa para que implementem medidas eficazes de combate à violência sexual contra os mais novos, em 2015 o Conselho da Europa instituiu o Dia Europeu contra o Abuso e Exploração Sexual de Crianças, a 18 de Novembro. A data visa simultaneamente aumentar a consciência pública da sociedade para a necessidade de prevenir e proteger as crianças da exploração e do abuso sexual; promover uma discussão aberta sobre esta matéria e ajudar a prevenir e a eliminar a estigmatização das vítimas; e promover a ratificação e implementação da Convenção de Lanzarote, ratificada por Portugal em 2012, e que obriga os Estados europeus a criminalizarem todas as formas de abuso sexual de crianças.
A decisão de dedicar, a nível europeu, este dia à protecção das crianças contra a exploração e o abuso sexual resultou da campanha “One in five”, associada a um estudo que revelou que uma em cada cinco crianças na Europa são vítimas de alguma forma de violência ou exploração sexual, como o abuso sexual no círculo familiar ou fora dele, a pornografia e a prostituição infantil, a corrupção e a solicitação sexual ou o aliciamento sexual via internet. Estima-se que em 70% a 85% dos casos, o agressor é uma pessoa conhecida e próxima da criança, e portanto em quem ela confia.
Em Portugal, mais de metade dos abusos sexuais reportados são feitos contra crianças e jovens. Só em 2015, as autoridades policiais registaram 1044 crimes de abuso sexual de crianças, adolescentes e menores dependentes, e 134 crimes de lenocínio e pornografia de menores, segundo a Direcção-Geral da Política da Justiça. Estes números vêm crescendo desde 2010, com maior expressão a partir de 2014, embora, e previsivelmente, devido a uma maior consciencialização e predisposição para a denúncia de actos de violência sexual, e não necessariamente porque existam mais crimes a serem perpetrados.
De acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna de 2014, a faixa etária com maior prevalência situa-se entre os 8 e os 13 anos, e em grande parte dos casos (60% a 70%), os agressores são pessoas conhecidas das vítimas, muitas vezes elementos das suas famílias nucleares, o que poderá contribuir para o silenciamento destes crimes, para a dificuldade em denunciar os abusos e apresentar queixa junto dos órgãos de polícia criminal e das autoridades judiciárias, e para a resistência em pedir apoio junto de instituições de apoio à vítima, como a APAV.
No âmbito da sua actuação no apoio às vítimas de crime e no desenvolvimento de políticas públicas, sociais e privadas que reconheçam plenamente o estatuto da vítima, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima desenvolveu, ao longo de dois anos (os quais foram prolongados com um novo financiamento até 30 de abril de 2020), o Projecto CARE – Rede de Apoio Especializado a Crianças e Jovens Vítimas de Violência Sexual.
Co-financiado pelo Portugal Inovação Social/PO ISE/Portugal 2020/União Europeia – Fundo Social Europeu e com o investimento social da Fundação Calouste Gulbenkian, com o objectivo de criar um modelo de implementação, funcionamento e supervisão de uma rede de apoio e referenciação de casos de crianças e jovens vítimas de violência sexual, o projecto permite, de forma integrada, aprofundar o conhecimento sobre o impacto da violência sexual, incluindo o que decorre da passagem da criança e/ou jovem pelo circuito interinstitucional; sistematizar respostas e boas práticas de intervenção junto destas vítimas e dos seus familiares; dar formação especializada de intervenção às entidades parceiras – Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), Polícia Judiciária (PJ), Departamento de Medicina Legal da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Casa Pia de Lisboa, Associação Chão dos Meninos, Casa da Ameixoeira e Projecto Spin -; e realizar a avaliação externa das metodologias de intervenção utilizadas junto de crianças e jovens vítimas de violência sexual.
A iniciativa tem vindo a implementar diversas actividades, como acções de formação especializada para a intervenção de técnicos e profissionais das organizações parceiras, encaminhamento de crianças e jovens para a APAV por parte da PJ e do INMLCF, materiais de sensibilização e informação para a comunidade em geral e manuais de procedimentos de intervenção na rede de apoio especializado, como é o caso do Manual CARE, uma ferramenta de auxílio a crianças e jovens vítimas de violência sexual que contextualiza, numa primeira parte, os conceitos e contextos associados aos vários crimes, as características de vítimas e agressores, os factores de risco e de protecção e os processos de vitimação, e apresenta, numa segunda, vários modelos de intervenção e de prevenção.
O VER entrevistou Carla Ferreira, gestora técnica do Projecto CARE – Crianças e Jovens Vítimas de Violência Sexual da APAV, para quem o trabalho da Rede CARE veio permitir uma “nova sensibilização relativamente à necessidade de intervir de forma especializada com estas vítimas”, garantindo, sobretudo, um apoio “voltado para a recuperação e prevenção de novas ocorrências”.
Entre Janeiro de 2016 e 31 de Outubro de 2017, a Rede CARE apoiou mais de 400 crianças e jovens. Como sublinha a responsável da APAV, esta actuação “tornar-se-ia seguramente mais difícil sem a articulação de sinergias e trabalho interinstitucional”.
Que balanço faz da actuação da Rede CARE no que respeita à resposta integrada que proporciona para casos de crianças e jovens vítimas de violência sexual?
O balanço é francamente positivo. Em 2015, aquando da aprovação da primeira fase do Projecto CARE, acolhido então pela Fundação Calouste Gulbenkian, a APAV partiu com a perspectiva de estar a apoiar menos de 10% das situações de crimes sexuais contra crianças e jovens denunciadas às autoridades competentes. Com efeito, as denúncias efectuadas eram, por ano, mais de mil, segundo estatísticas da Direcção-Geral da Política da Justiça, e a APAV, em 2015, havia apoiado apenas 100 crianças e jovens vítimas de violência sexual.
Estamos certos que o facto de existir uma rede de apoio efectivo e especializado, aliada a uma rede de referenciação que conta com entidades como a Polícia Judiciária (órgão de polícia criminal com competência para a investigação destes crimes), o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses e o Instituto Nacional de Emergência Médica, bem como com todos os outros parceiros formais e informais deste projecto, permitiu a chegada da Rede CARE a mais locais onde esta se afigurou necessária.
Neste momento, entre Janeiro de 2016 e até 31 de Outubro de 2017, a Rede CARE chegou a mais de 400 crianças e jovens, e perspectiva-se que, até Dezembro de 2017 se chegue a perto das 500 crianças e jovens apoiados. Esta actuação tornar-se-ia seguramente mais difícil sem a articulação de sinergias e trabalho interinstitucional.
Que valências destaca na actuação desta Rede face ao panorama nacional da violência sexual, nomeadamente quanto à integração destas crianças e jovens no circuito interinstitucional; quanto a boas práticas, formação especializada e manuais de procedimentos de intervenção; e quanto à sensibilização da comunidade em geral?
Além da prestação do apoio a crianças e jovens por técnicos com formação (inicial e contínua) especializada em matéria de violência sexual, temos procurado implementar algumas boas práticas. Foi possível editar, em Abril de 2017, o Manual CARE, de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, que desejamos que seja uma ferramenta de trabalho para a equipa da Rede CARE, mas também para outros profissionais que trabalham com crianças e jovens.
O apoio que a Rede CARE presta é não apenas no âmbito psicológico/emocional, certamente importante, mas também noutros domínios, como o apoio no exercício de direitos ou no pedido de indemnizações, a elaboração de relatórios relativos ao apoio prestado ou o acompanhamento em diligências. Nesse sentido, temos, por exemplo, feito esforços no sentido de evitar a revitimação, procurando que, nos casos em que a APAV já desenvolve um processo de apoio com aquela criança/jovem, o técnico da APAV seja a pessoa que acompanha a criança em diferentes diligências, como figura securizante (como por exemplo em diligências de Declarações para Memória Futura).
Felizmente, as autoridades judiciárias têm-se mostrado crescentemente sensibilizadas para esta necessidade, e têm acedido a estes nossos pedidos, mas têm também iniciado elas próprias contactos com a APAV no sentido de promover que um técnico da Rede CARE, que sabem ser especializado nesta matéria, acompanhe as crianças quando se afigure necessário no contacto com o sistema de justiça criminal. No nosso entender, este acto é não apenas um voto de confiança no trabalho da Rede CARE, mas também uma demonstração da crescente preocupação dos actores do sistema de justiça criminal com a participação das crianças e jovens no processo penal.
Sabendo que é necessário quebrar o silêncio em relação a esta problemática, e desenvolver o sentimento de intolerância face à violência sexual, temos ainda investido na formação de outros profissionais que trabalham com crianças e jovens, nos mais diversos domínios, e, mais ainda, das próprias crianças e jovens e da comunidade em geral, para que saibam identificar situações de eventual violência sexual, consigam pedir ajuda e denunciar estes actos, quer sejam perpetrados contra si, quer sejam perpetrados contra outras pessoas.
Na perspectiva da APAV, e depois de terem trabalhado nesta iniciativa, qual é o estado da arte das práticas de intervenção especializada nas crianças e jovens vítimas de violência sexual em Portugal? Que avaliação fazem das metodologias de intervenção utilizadas junto destas vítimas?
Acreditamos que ao longo deste tempo já se conseguiu olhar para as crianças e jovens vítimas de violência sexual de uma outra forma. Sabemos que o trabalho da Rede CARE veio permitir uma “nova sensibilização” – se é que podemos chamar-lhe assim – relativamente à necessidade de intervir de forma especializada com estas vítimas. A forma especializada é não apenas garantir que a criança e jovem tem um espaço onde pode falar do que se passou, mas, e sobretudo, o apoio mais prático e mais voltado para a recuperação e prevenção de novas ocorrências.
Quando um pai ou uma mãe, ou a figura que os substitui, tem conhecimento de uma situação de violência sexual contra o seu filho ou familiar, tem tendência a sentir-se perdido: Devo denunciar? Se denunciar, o que acontece a seguir? Como evitar que isto aconteça de novo? Muitas pessoas vão denunciar a situação e chegam-nos com um conjunto de documentos, entregues obrigatoriamente pela autoridade que recebe a denúncia, e, apesar de lhes ter sido explicado no momento, acabam por não “absorver” a informação aí contida. Precisam de alguém que lhes explique e, sobretudo, de alguém que lhes diga que, agora que denunciaram a situação, não é o fim da linha, e têm ali uma janela de apoio e esclarecimentos sempre que necessitam.
Outras iniciativas existem que procuram chegar aos mais diferentes intervenientes numa situação de violência sexual contra crianças e jovens – e ainda bem. Todavia, este trabalho deve ser contínuo e sempre adaptado às novas realidades que vão surgindo.
Como comenta o facto de a prevalência dos actos de violência sexual contra crianças e jovens comunicados ter aumentado continuamente desde 2010, particularmente a partir de 2014? Que discrepância estimam existir entre estes números comunicados às autoridades e os que efectivamente aconteceram?
Não é possível estimar um número relativamente às cifras negras que seja totalmente correcto, mas, de acordo com Carla Machado e Rui Abrunhosa Gonçalves, numa publicação de 2003 (Violência e Vítimas de Crimes. Vol. 2 – Crianças: Quarteto Editora), estimava-se que cerca de 30 a 40% dos abusos não eram denunciados.
Acreditamos que, felizmente, tem existido uma maior sensibilização e intolerância das comunidades relativamente à violência sexual, o que facilita as denúncias. Ou seja, existe uma menor probabilidade de se guardar a informação e não a revelar. Esta maior sensibilização acontece mesmo nos casos em que o perpetrador do crime sexual é alguém da família – ao contrário do que se poderá pensar, esta é a realidade mais frequente.
Além disso, atendendo às questões da idade, há que salientar que entre os 8 e os 13 anos (faixa etária com maior número de denúncias) há um maior “despertar” das crianças e jovens para o que é certo e errado, o que é o contacto bom e o contacto mau, e também um crescente desenvolvimento da linguagem, o que certamente agiliza os pedidos de ajuda e as denúncias de eventuais crimes de natureza sexual.
Cremos que neste momento a sociedade também tem presente, de forma mais clara, o que é um crime de natureza sexual, e que sabe que estes actos não englobam apenas aquilo a que a lei chama de actos sexuais de relevo qualificado (cópula, por exemplo) ou actos sexuais de relevo (toques, por exemplo), mas também outras condutas, como o lenocínio de menores ou a pornografia de menores (no âmbito da qual uma recente alteração penal permitiu que se criminalizassem actos como o simples acesso a material pornográfico envolvendo menores).
Em suma, um maior conhecimento do que é crime, uma maior sensibilização das comunidades e uma maior predisposição das crianças e jovens para denunciar os actos de violência sexual poderão ser a explicação para o maior número de denúncias, mas é de salientar que tal não significa que existam mais crimes a serem perpetrados.
Porque motivos as crianças e jovens do sexo feminino permanecem, historicamente, as principais vítimas dos diversos crimes de violência sexual?
Tanto crianças do sexo feminino como masculino poderão ser vítimas de violência sexual, ainda que as preferências dos autores dos crimes possam incidir sobre um ou outro sexo, ou mesmo ambos.
A acção dos autores poderá acontecer conforme as suas “preferências”, mas também conforme as crianças/jovens a que consigam aceder – pelo que se não detiverem preferência por um ou outro sexo, e se lhes for mais “fácil” chegar a crianças e jovens do sexo feminino, assim o procurarão fazer.
Jornalista